quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O casal mais importante da literatura de ficção

José

Diz, Maria

Ouve-me, tenho algo importante para te dizer.

Fala



Então?

São dolorosas, as palavras…

Porquê? Que se passou?

É algo maravilhoso, mas…

Sim?

Espero que não te zangues…

Fugiu alguma cabra?

Não.

E a vaca?

Não.

E o burro?

Não. José…

Sim?

Eu estou grávida.

Maria! Que alegria! Deixa-me abraçar-te! … Mas… espera, tu não és…?



Maria? Maria, eu pensei que tu eras…

E sou!

Não me mintas! O que se passa? Diz-me a verdade!

A verdade é que… O filho não é teu.



José…?

O filho não é meu?

Não.

E estás a dizer-me isso com todo o descaramento?!

José, por favor…

Quem foi? Quem foi o malvado?! Vou apedrejá-lo!

José, por favor, deixa-me explicar-me!

Onde é que pus o meu granito Paquistanês?

José, pára com essa loucura!

Não me puxes pelo braço! O que foi?! Não chega já o que fizeste?

José, tem calma! O filho é Cristo, nosso salvador!

Desculpa?

José, senta-te aqui, olha-me nos olhos… Deixa-me contar-te. Um anjo desceu dos Céus e disse-
me que eu estava grávida, e que daria à luz o filho do Nosso Senhor, e que esta criança seria o Salvador da Humanidade!

Estás absolutamente demente!

José, deves acreditar em mim…

Que desculpa mais esfarrapada! Apareces-me grávida em casa, quando ainda esta manhã eras uma flor inocente, e dizes-me que foi um anjo?

Não foi um anjo, foi o Senhor!

Qual senhor?

O Senhor? Ele! O Nosso Senhor!

Maria, eu juro que não o apedrejo. Diz-me a verdade.

Eu estou a dizer-te a verdade.

Um anjo?

Sim! Ele desceu dos Céus com as suas asas brancas e puras para me dar a boa nova!

Como é possível teres engravidado assim?

Estás a duvidar dos poderes divinos de Nosso Senhor?

Como sabes que estás grávida? Tens a certeza?

Estou atrasada uma semana.

E como sabes que o filho é de Nosso Senhor?

Porque o anjo disse-mo, José! Não é incrível?



O que foi?

O Nosso Senhor vai assumir as suas responsabilidades como pai, certo?

José…

Maria, desonraste o meu nome e o da minha família, apareces-me grávida em casa e ainda por cima de Deus? Como queres que me sinta?

José, o nosso filho será o Cristo, irá limpar a humanidade do pecado!

A última vez que Nosso Senhor limpou a humanidade do pecado foi com uma inundação.

Deus escreve direito por linhas tortas.

Como é que ele te engravidou? Isso significa que já não és…

Não, não significa nada. Foi o Espírito Santo. Sou ainda pura como uma flor.

Ao menos isso! O Espírito Santo? Mas afinal…

José, preciso de saber se estás comigo.



José, meu marido…

O que é que queres? Sinto-me enganado! Traído! A Minha mulher, a ser engravidada por um
Espírito!

É para o bem da Humanidade!

E continuas… inocente?

Mais inocente que uma rosa.

Tenho de ir dormir. Tive um dia muito complicado na oficina e agora esta notícia está a mexer com o meu estômago. Estou a ficar com azia…

José, tens de acreditar em mim…

A minha mulher sai à rua para ir comprar queijo e dá de caras com um anjo, que lhe diz que está grávida do Espírito Santo mas que mesmo assim continua inocente… É de dar cabo de uma pessoa… Que enredo!

José, promete-me que ficarás comigo…

Ficarei, claro… Vou amar este filho como se fosse meu…

Ainda por cima ele veio para nos salvar, José…

Deus mandou o seu Filho para nos salvar? De quê?

Do castigo eterno e do pecado, penso eu…

Mas se é Deus que nos castiga quando pecamos…! Porque é que eles nos ameaça e depois nos salva logo a seguir? Aliás, porque é que ele te tem de engravidar para o fazer?

Não comeces com as blasfémias, José! Com certeza que o Filho do Senhor nos salvará de uma forma comovente, bonita e sem qualquer violência. A propósito, ouviste falar daqueles que foram crucificados ontem a tarde? Que horror, deviam proibir aquelas coisas!

Fim
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A Invasão

Uma trincheira estava encolhida entre duas rochas cinzentas, e à sua volta um deserto áspero e pouco simpático. Uma tempestade de areia varrera aquele local há umas horas atrás, mas agora tudo estava calmo. O sol era uma bola pastosa a escorrer pelo céu, e as sombras estavam compridas. Encaixada na trincheira, à sombra de uma das rochas, estava uma cápsula de ferro, como uma lapa à beira mar. Lá dentro, espetado entre o rádio e o enorme canhão que saía pela janelinha da cápsula, Número 10 esperava ordens.

Tinha o rádio ligado na frequência correcta, e segurava nervosamente as pegas do canhão. A janelinha à sua frente era a única fonte de luz da cabine: de resto, só via os pontinhos luminosos do rádio e o condensador energético do canhão. Sentia-se a tremer ligeiramente, mas tremia muito mais do que achava estar a tremer; e tinha muito, muito calor. Um pequeno termómetro pendurado a um canto marcava uma temperatura de fazer derreter o aço. Número 10 suspirou, segurou-se ao canhão e sondou a paisagem.

“Número 10? Responda, número 10.”

O rádio, pensou ele. Entusiasmado, largou o canhão, agarrou-se ao rádio, o canhão descaiu, voltou a segurá-lo para que não caísse e só aí carregou num botão triangular.

“Número 10 escuta! Estou aqui!”

“Está aí? Onde é que haveria de estar, Número 10?” perguntou uma voz furiosa por entre a estática.

“Desculpe, Ómega 6”

“Daqui Ómega 7, não Ómega 6. Faça o favor de se manter acordado e de ouvir as suas ordens, Número 10. Segue relatório de actividade esperada. Às 070 Central espera-se descida total do Astro Rei. Às 073 Central espera-se escurecimento a 100%. Ainda está acordadinho, Número 10?”

“Escuto, Ómega 7” respondeu Número 10, a suar de vergonha.

“Ah bom. Às 076 espera-se primeiro contacto com a nave invasora. Leituras preliminares confirmam a aproximação do corpo estranho e respectiva entrada na nossa atmosfera. Manter atenção máxima e constante sobre o terreno. Compreendo, Número 10?”

“Compreendido, Ómega 7”

“É para manter-se acordado, soldado. Estamos a ser invadidos, pelos céus. Mantenha os olhos abertos! Fim de transmissão”

Houve um click e Ómega 7 parou de transmitir.

Número 10 voltou a sua atenção para a janelinha à sua frente, transpirando mais do que nunca. Esperou.

O Astro Rei escorreu pelo céu como uma gema de ovo colada a uma parede. Agora havia uma neblina cinzenta a cair sobre o deserto, escura e depressiva.

“Estrelinhas”, pensou Número 10, a olhar pela janela para os subtis pontinhos dourados. Estava a ficar mais fresco. De volta a casa, pensava Número 10, a minha mãezinha estaria a preparar-me uma refeição quente e nutritiva, e tudo ficaria bem.

O frio e o escuro tudo cobriam, e Número 10 continuava agarrado ao canhão. Esperando. Foi num desses momentos em que passava os olhos do deserto para as estrelas lá em cima que viu uma delas, gorda e arredondada, começar a mexer-se e a crescer. Não parecia nada indecisa em relação à trajectória que queria seguir, nem em relação ao seu destino: ali. O ponto que era ponto cresceu para uma bola de luz, e finalmente houve um brilho intenso e um tremor pelo ar. A bola de luz descia dos céus, e Número 10 arregalou os olhos, maravilhado. Uma gigantesca nave, comprida e cheia de pequenas janelinhas, aproximava-se descendo a pique. Da sua extremidade mais perto do chão rebentaram cinco tremendos propulsores, que interromperam a queda da nave. Por momentos foi como se pairasse no ar, até que começou a descer devagarinho. O chão do deserto começou a tremer, e o corpo de Número 10 também. O canhão parecia uma máquina de lavar em pleno funcionamento, tremendo não sabemos se por causa da enorme nave que agora aterrava, ou se por causa do nervosismo do soldado que o segurava.

A nave tocou no solo do deserto, e houve um último estrondo. Os propulsores cessaram, e Número 10 abriu os olhos. Inacreditável, pensou. A nave estendia-se como uma coluna metálica. Cada uma das suas janelinhas cuspiu um feixe de luz, uma a uma, e os feixes corriam pelo deserto e tentavam furar por entre a poeira levantada como os braços de um polvo desorientado.

Número 10, paralisado, analisou as suas opções. Podia fugir, podia avisar Ómega 7 e fugir, ou podia começar a disparar e, portanto, marcar para dali a meia dúzia de segundos a sua completa aniquilação. As opções não lhe pareciam nada optimistas. Número 10 estava nervoso, e mal conseguia ver por entre as gotas de suor que lhe caiam para os olhos. Piscou-os e continuou a analisar a nave.

Agora uma pequena porta abria-se a um terço da altura da nave, e uma pista prateada estendeu-se por ali abaixo até ao solo do deserto como uma língua em caracol. De dentro da nave, vindas da portinha aberta, quatro figuras começaram o caminho até cá abaixo. Número 10 olhou para elas com absoluto terror. Os invasores eram horrendos.

À medida que desciam a língua de metal e começavam a caminhar pelo deserto, segurando pesadas armas à sua frente e uma pequena máquina que parecia sondar a areia, Número 10 reparou nos pormenores das estranhas criaturas. Tinham um par de pernas, um par de braços, e no topo do corpo um bolbo arredondado. Pareciam segurar as armas e os aparelhos com estranhos conjuntos de tentáculos, pequeninos e articulados. Vestiam fatos prateados, e o estranho bolbo no topo dos seus corpos estava coberto de um material transparente. As figuras aproximaram-se. Número 10, levando mais uma vez os seus três tentáculos ao manípulo do canhão, empurrou o corpo para frente e encostou o bico à janela da sua cápsula, tentando ver melhor. O seu quarto olho a contar da esquerda estava a tremer incontrolavelmente, e podia sentir gotas de suor a descer por entre as penas do seu corpo.

Os invasores viravam-se uns para os outros, opinando sobre o que os seus instrumentos pareciam registar. Número 10 constatou, com absoluto horror, que o bolbo no alto do corpo parecia coberto de pêlo até metade da sua altura e que, logo abaixo do tufo de pelo, os invasores possuíam um par de visores aparentemente biológicos, um outro bolbo mais pequeno a meio da face, e duas cartilagens amachucadas nos dois lados do bolbo. Seria por onde se alimentavam? Número 10 achava que sim. Um dos invasores virou-se de frente para a cabine, e Número 10 reparou finalmente num redondo buraco cor de rosa a meio do bolbo, dentro do qual um nojento verme cor de rosa parecia contorcer-se.

Número 10, suando, tremendo, gemendo entre dentes, levou um tentáculo ao botão de transmissão do rádio e esperou que o ruído de estática desaparecesse.

“Daqui Ómega 7. Número 10, o que raio quer de mim?”

“Ómega 7, eles são absolutamente… “

“Repita, número 10!”

Número 10, fascinado por aquelas estranhas criaturas, observava-as enquanto caminhavam de um lado para o outro, ridiculamente apoiadas nas suas duas perninhas articuladas. Estavam mais perto da cápsula, e aproximavam-se. Número 10 começava a perder a voz. Aquilo era demais para ele. Ainda há uns dias solares estava na gruta dos pais, ajudando-os a caçar insectos para o jantar. Não tinha sido feito para aquilo.

“Ómega 7” murmurou Número 10, com toda a coragem que conseguiu reunir, e com os dois corações a baterem como tambores no fundo do seu peito “Ómega 7, a invasão está em curso”

“Porque raio está a murmurar, Número 10? Fale!”

“Ómega 7” sussurrou Número 10, sem tirar os olhos das criaturas. Os seus aparelhos pareciam dar sinal de alguma coisa, e os quatro invasores caminhavam vagarosamente na sua direcção.

“Repita, que não o ouço!”

“Ómega 7, a invasão está em curso!” repetiu Número 10, abandonando a janela e debruçando-se completamente sobre o microfone. ”Os invasores estão armados e são absolutamente aterrorizadores!”

Do outro lado da transmissão, Ómega 7 empalideceu.

“Pelo Astro Rei… Consegue vê-los, soldado?”

“Estão mesmo…” começou Número 10, espreitando outra vez lá para fora “… à minha frente”

E estavam mesmo. Um dos invasores enfiou um comprido tubo prateado cheio de luzes pela janela da cabine, despedaçando o vidro. O tubo entrou pela cabine dentro, e ainda Número 10 estava a abrir o bico e a preparar-se para gritar quando uma bala saiu de dentro do tubo e lhe despedaçou a cabeça. O crânio pareceu propagar-se em todas as direcções ao mesmo tempo, dividido em pequenas peças. Da parte de trás da cabeça de Número 10 voou sangue, e toda a cabina ganhou uma pintura nova. O corpo do soldado caiu para trás, os tentáculos flácidos, todos o olhos abertos mas vazios por dentro.

“Número 10?!” gritava Ómega 7. “Número 10, responda! Núm…”

Houve um esguicho sonoro. Outra bala, esta no rádio.

Os invasores olharam para Número 10, agora falecido, e afastaram-se sem grandes cerimónias. Tinham o resto do planeta para conquistar; não podiam perder muito tempo.
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terça-feira, 29 de setembro de 2009

Momento de poesia: "Física"

Para onde vou tu não te chegas nem ao perto

Sou electrão e tu de carga positiva

Mas afastada a tua corpórea exactidão

Fica no ar o cheiro doce que cativa

Não sou o único, apenas um na multidão

Molécula corada e encaixada entre as outras

Num frasco submetido a altos valores de pressão

Encolho-me pelo mundo e procuro ver-te ao perto

Mas tu afastas-te em profunda aceleração

É-me difícil derrotar toda a inércia

Que me bloqueia os joelhos e o coração

Mas se num dia em que o sol dos céus molhar

Com o seu UV todos os corpos materiais

Tu te encontrares num sistema isolado

Acabrunhado e do mundo separado

Enxuga as lágrimas com seus sais minerais

Vem visitar-me nem que em fase transitória

Talvez um dia tu e eu e eu e tu

Nos encontremos numa mesma trajectória

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domingo, 27 de setembro de 2009

A minha geração



O meu irmão entrou agora para a primária, e com certeza vai ser uma pequenita vítima do Magalhães. Lembro-me perfeitamente de andar na primária. No meu tempo, onde não havia nada dessas modernices, a minha professora obrigava-nos a fazer as contas à mão. Tinhamos os cadernos cheios de divisões complicadíssimas. Lembro-me de passar tardes inteiras a fazer contas de dividir com a minha avó, porque ela achava piada a relembrar os tempos de escola e eu lá tinha de fazer os trabalhos de casa. Lembro-me de passar horas inteiras, a agonizar de um lado para o outro da casa, a decorar a tabuada. Lembro-me de olhar para dentro da sala dos Crescidos, que eram uma espécie de Elite. Eles lá estavam, sentados nas mesinhas, com umas máquinas enormes nas mãos: calculadoras. Os Crescidos, que não passavam de alunos da quarta classe, podiam usar calculadora! Para nós, os pequenos, aquilo era o êxtase escolar. Nunca mais pensar “Quantas vezes é que 4 cabe em 32?”, nem fazer colunas de multiplicações. Usar uma calculadora era algo inatingível.

Agora percebo tudo, quando olho para trás; e agradeço. Três anos a aprender a fazer contas de cabeça serviu-me de vantagem para tudo, não só para a matemática. Exercitar o cérebro é das melhores coisas que se pode fazer a um miúdo. Quem diz contas de cabeça diz desenvolver a leitura e o raciocínio, bem como a cultura geral. Fazer com que os miúdos aprendam a folhear livros e consultar dicionários, em vez de olhar para um ecrã.

De que maneira é que a introdução de um portátil no PRIMEIRO ano de escolaridade traz consequências para esta geração? E uma vez que há o Magalhães na primária e o portátil com Internet a partir do 5º ano, já não há um único ano de educação em Portugal SEM um computador? Porque é que a minha geração aprendeu no duro a ler, escrever e fazer contas de multiplicar de cabeça, e esta geração (e eu não sou assim tão velho, por isso não passou muito tempo) usa um portátil para melhor “compreender os conteúdos”?

Porque é que ainda não apareceu ninguém a explicar-nos como é que o bicho funciona, que tipo de conteúdos tem, para que serve, que tipo de formação terão os professores para os utilizar e ensinar a utilizar nas aulas; e principalmente o que raio vai trazer de tão moderno e inovador à educação? Aprender a mexer num portátil é uma prioridade quando um miúdo ainda nem sabe ler? Numa geração que passa 20 horas por dia à frente de televisores e monitores de consolas, de que forma é que um portátil (que só vai acrescentar aos electrodomésticos do género que já todas as famílias têm em casa) vai motivar os miúdos a estudar, a desenvolver o gosto pela leitura e pelo estudo?

E outra coisa: porque é que estas perguntas não são feitas pelos pais do nosso país? Serei eu o único a sentir estas comichões? Sou irmão de um miúdo na primária, e preocupa-me. No dia em que o vir fazer os trabalhos de casa no computador vou armar-me em velhote na fila do supermercado e resmungar que no meu tempo as coisas não funcionavam assim. No meu tempo é que era.
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O Grávido

Não se conseguia lembrar com precisão do que acontecera na noite anterior, mas tinha a certeza que havia uma boa explicação para o facto de ter acordado grávido. Quem o engravidou, não sabia. Sabia que estava de esperanças, e como é normal nessas alturas as hormonas levaram a melhor e começou a chorar. Depois irritou-se, e a seguir desejou um gelado de ananás com manteiga de amendoim. Levantou-se e foi à rua.

O supermercado da sua rua devia estar fora para férias, porque no seu lugar estava um enorme cartaz a indicar que, devido a uma campanha humanitária, o supermercado voara até aos desertos da Nigéria para distribuir comida aos meninos pobrezinhos. O Grávido, chamemos-lhe assim, recomeçou a chorar, e imaginou criar uma crianças naquelas condições, com tudo cheio de moscas e sem água potável com que hidratar a pele. Desde que saira de casa estava mais e mais preocupado com hidratar a pele. Sentia-se seco e áspero. Talvez seria por isso que a mãe do seu bebé o tinha deixado assim, de barriga, e depois o tinha abandonado pela madrugada. Chorou.

No lugar do supermercado estava uma pequena entrada para uma sub-cave, onde normalmente, quando o supermercado ali costumava estar, se podia estacionar o carro e os veículos de tracção animal. Estavam dois Mercedes, um Fiat Punto, duas carroças e um coche puxado por leões marinhos no parque de estacionamento. Um dos leões marinhos tinha cinco multas enfiadas num dos dentes, e parecia adormecido. O Grávido passou pelos animais, com cuidado para não os acordar, e caminhou até ao seu carro. Era o Fiat Punto. Assim, daquela maneira, estacionado entre o Mercedes cinzento platinado e a carroça com os póneis, o seu Fiat Punto parecia um carro de merda. E era, bem vistas as coisas. Se tivesse poupado durante a sua juventude poderia ter comprado uma carroça como aquelas, ou um coche com leões marinhos. Puxado por unicórnios, até. Chorou, depois entrou no carro e fez marcha atrás com cuidado para não derrubar os leões marinhos multados.

O Fiat Punto ronronava pela cidade vazia. Era feriado nacional e segunda feira, tudo ao mesmo tempo, pelo que o pessoal aproveitara o fim de semana prolongado para ir à praia. O Grávido não gostava de praia, o que lhe apetecia agora era um gelado de ananás com manteiga de amendoim. Virou uma esquina, e perdeu a vontade do gelado. Substituiu-a por um desejo de salada de queijo com coca cola gelada, fez uma perigosa manobra para mudar de direcção com o carro, e atropelou duas velhinhas indefesas. Por acaso não estavam na passadeira, mas mesmo que estivessem não havia nenhum polícia por ali para o multar. Estava tudo na praia. O Grávido perguntou-se porque é que aquelas velhinhas não tinham ido para a praia também, e como não sabia a resposta chorou. Agora desejava uma enorme omolete de camarão com gambas importadas, pelo que deu outra meia volta perigosa, em plena Avenida Principal, e foi até um pequeno restaurante que conhecia na Quinta Rua.

Lá toda a agente o conhecia, e nessa manhã não foi diferente. Todos elogiaram a sua barriga, e apesar de a menina ruiva do balcão ser praticamente infértil e estar a tentar engravidar há mais de sete anos de cada marmanjo que encontrava, o Grávido não a viu derrubar uma lágrima. Pôs-lhe a mão no ombro, chorou, e disse que assim é que era, miúda. Sempre em frente. A força é o caminho. Continua. Coragem. Um dia serás mãe. Agora faz me uma omolete com camarões.

Ela foi até às traseiras pescar os camarões e apanhar os ovos, e por segundos o Grávido ficou sentado numa das mesas do restaurante vazio, apenas acompanhado por um estranho homem que o observava de um canto. O homem parecia ser cego não só porque tinha um cão-guia sentado aos seus pés, mas porque estava a colocar pimenta no café com leite. O Grávido ainda pensou em ir lá corrigir-lhe o erro, mas desde pequeno que tinha pavor de gente cega. O cão guia olhava-o com toda a desconfiança, muito provavelmente dando-se conta de que aquele gajo grávido que para ali estava cheirava a noitada, e estava a gozar com o seu dono. O Grávido preferiu ficar quieto, com medo do cego e do cão do cego, e ver a reacção do cego quando levasse o café com leite à boca. O Grávido levou as mãos à boca, esperando ter de controlar uma gargalhada, mas não é que o cego engoliu uma golfada de café com leite e pimenta e nem respingou? O Grávido, curioso e em absoluto choque, enojou-se e fez uma careta.

- Vai fazer caretas à tua tia – disse-lhe o cego, bebericando do café com leite. - Diga? – perguntou o Grávido, surpreendido com a perspicácia do cego.

- Estava a dizer para ires fazer caretas à tua tia.

- Eu não fiz caretas nenhumas, caro senhor.

- Julgas o quê, que sou cego?

O Grávido não respondeu.

- Também me pareceu. Voltas a fazer isso e atiço o Pantufa na tua direcção.

- É o nome do cão?

- É pois. É cego, pobrezinho. Tenho de andar bem agarrado a ele para não esbarrar com ninguém na rua. Estás a ver aquele defeito na orelhinha esquerda? Foi contra um marco do correio.

O Grávido não disse nada.

- Porque é que não dizes nada, julgas que sou surdo? – perguntou o cego, com maus modos, olhando-o nos olhos.

- Estava a pensar na vida.

- Porque é que não estás na praia?

- Tive uma noite confusa e complicada, e acordei grávido.

- Percebo. Não fiques nervoso, a minha filha quando ficou grávida aos doze anos também ficou nervosinha e eu disse-lhe “Filha, desde que o puto tenha fraldas e papinhas, estará sempre bem”.

- Ainda não sei se fico com ele – respondeu o Grávido, e à medida que dizia isto começava realmente a pensar no assunto.

- Porquê?

- Hoje de manhã, ao ir buscar o carro, vi um cartaz sobre uma campanha dos meninos pobrezinhos nos desertos da Nigéria, e fiquei sensibilizado.

- Os miúdos lá andam cheios de moscas.

- Exactamente, e nem sei se têm televisão por cabo. Não percebo como é que os aguentam até serem adultos. Não acho que esteja preparado para a responsabilidade.

O cego que afinal não era cego voltou a colocar pimenta no café com leite, e bebericou mais um bocadinho. A rapariga ruiva do balcão, a tal que era infértil, chegou com a omeleta de camarão.

- Que merda é esta? – perguntou o Grávido, olhando para o prato à sua frente. Era uma omeleta flácida e sem personalidade alguma.

- É uma omolete de camarão – disse a menina.

- O que estás aqui é uma omolete. Não vejo aqui nenhum camarão.

- Está aí, pois. Ora veja lá.

- Aquilo é um bocado de tomate.

- E ali debaixo? Olhe, são os bigodes de uma gamba.

- De uma só? E só os bigodes? Acha isto aceitável?

- Claro que sim. Isto aqui não é uma marisqueira - disse a rapariga do balcão, aquela que era infértil.

- Não a ouça, ela é infértil – disse o cego que afinal não era cego – Está sempre a evitar desculpas para tudo.

- É muito má educação falar assim da minha empregada – disse o dono do bar, que entretanto se aproximava. Depois olhou para a rapariga – Oh Estér, vai lá para a cozinha que eu resolvo isto.

- A rapariga chama-se Estéril? – perguntou o Grávido.

- Ah ah! – fez o cego que afinal não era cego.

- Estér. É Estér, o nome dela – esclareceu o dono do bar.

- De qualquer maneira, a Estéril trouxe-me uma omeleta terrível. Olhe para isto. Só bigodes de gamba.

O dono do bar olhou para a omeleta, e o Grávido percebeu rapidamente que naquele bar estavam todos feitos uns com os outros.

- A omolete parece-me óptima – disse-lhe o dono do bar. Tinha tomates para estar a dizer aquilo .

- É preciso ter tomates para dizer isso – disse o cego que não era cego – Até eu vejo daqui do fundo que isso é só ovo.

- Está a ver? É só ovo – disse-lhe o Grávido. O dono do bar não parecia convencido. Do fundo do bar apareceu Estér, a rapariga do balcão, a tal que era infértil, segurando um pauzinho de plástico branco com uma manchinha de cor de rosa em forma de +

- Estou grávida! – declarou ela, com lágrimas pelas bochechas abaixo.

O cego que não era cego levantou-se com um salto, e o dono do restaurante também se sobressaltou. Olharam um para o outro, depois olharam para a rapariga, e a rapariga, aquela que era infértil mas que pelos vistos não era tão infértil assim, olhou para eles.

- E agora, quem é o pai?

***

Passaram-se nove meses complicados, e finalmente os partos chegaram. De mãos dadas, o Grávido e a rapariga do balcão, a tal que era infértil, abriam as pernas e respiravam com força. O cego que não era cego, que era caucasiano, e o dono do restaurante, que era africano, esperavam pacientemente o nascimento da criança da rapariga infértil. Debruçados sobre as suas pernas abertas, observavam a vagina palpitante como quem observa uma baliza antes de um penalti, e suavam também.

O Grávido começou a sentir as primeiras contracções quando se levantara nesse dia para urinar, e sentira a bexiga apertada. O puto estava a dar pontapés. Depois o seu pénis começou a inchar ao longo do dia, adquirindo o aspecto de um pepino sob altas concentrações de fertilizante, pelo que foi até à maternidade. O médico obstetra nunca vira um caso como o seu. A coisa mais estranha que lhe acontecera no serviço fora um homem com uma barata no nariz, pelo que um homem grávido parecia ser uma enorme novidade. Os estudantes de medicina estavam também no local, tirando apontamentos, e as cadeias de televisão nacionais esperavam o desfecho da gravidez do homem grávido lá fora, com inquietação.

A rapariga do restaurante, a tal que não podia ter filhos, entrou em trabalho de parto, gritou, chamou nomes a toda a gente, mordeu o dedo a uma enfermeira e continuou a bufar, até que a crianças deslizou cá para fora e o cego que não era cego, o tal que era branco, e o dono do restaurante, o tal que era preto, saltaram de alegria: o miúdo era asiático. Enquanto a rapariga que era infértil abraçava a sua criança e começava a pensar nos asiáticos que conhecia, o pénis do homem grávido estava inchado como uma bola de bowling. A cabeça da criança despontou pela glande, e espreitou com toda a curiosidade para este novo mundo. O grávido fez toda a força que podia, e o seu bebé saiu pelo buraquinho como se estivesse ali escondido só na brincadeira. Os médicos precipitaram-se sobre a criança, estudando o seu estado de saúde. Os cirurgiões plásticos dobraram-se sobre o pénis alargado do grávido, procurando forma de o cicatrizar. Confusão de médicos e doutores, enfermeiras e trapezistas, enquanto o homem grávido abraçava a sua criança e chorava. Era o milagre da vida. O dono do restaurante emocionou-se, e o cego que não era cego levou com um bisturi no olho e ficou cego de uma vez.

FIM

nota: história escrita de improviso, sem paragens, de uma ponta à outra. Nada planeado. Espero que isto explique o constante sentimento de caos e as personagens profundamente complexas.
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Eu e a Democracia


Momento de Poesia: "Num futuro"

Inaugurando esta segunda temporada do Trajectória Aleatória, um poema. Não há cá métricas nem rimas regulares. Há algumas, no entanto; por isso procurem-nas.


Num futuro, daqui a alguns anos
Quando os carros voarem e vivermos em Marte
Um homem e uma mulher, amigos e amantes
Vão casar, e comprar uma casa, tentar ter filhos
E vão comprar um robot

O robot é útil e amigo
Lava a loiça e a roupa
Muda o óleo do carro
Limpa as cinzas do cigarro
E consegue analisar
Com enorme exactidão
O tempo de amanhã

Faz as camas
e lasanhas
Aquece e a arrefece
Alinha e desentorta
Ninguém nota que ele lá está

Como dizia no reclame
Arruma-se sem esforço
Debaixo da cama

E o marido, satisfeito
Sai de casa bem disposto
Vai para o seu posto, no emprego
Confiando que em casa
Deixa a esposa e o robot
Na maior alegria
Ouvindo música e limpando
As folhas secas do jardim

Mal sabe ele que de dia,
Ao mesmo tempo que se entende
Com os extractos de contas bancárias
E beberica o café que a secretária traz
Jaz a sua esposa na cama
Com tudo desabotoado
Esperando que do outro lado da porta
Surja o robot e diga, na voz de platina oleada
“Encontra-se preparada?”

A mulher semi despida
Solta os caracóis, atrevida, e sorri sensualmente
Com o seu marido frio e esguio
Nunca tinha tido daquilo
Uma tal actividade, de energia sem igual
e robótica precisão
Abre os lábios vermelhos e ordena
“Prosseguir com a introdução”
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