sexta-feira, 30 de abril de 2010

A colher é para ser metida, minha senhora

A notícia do dia parece ser a do casal que não só violava os filhos como os obrigava a fazer sexo entre si. Parece um filme de terror, eu sei. A mulher foi já libertada, à boa maneira da justiça portuguesa, uma vez que se dizia obrigada pelo marido a violar os filhos. O pai das crianças está preso, e nega as acusações.
Não chegava o choque desta notícia. Estou neste momento a ver a Praça da Alegria, onde o repórter Hélder entrevista os vizinhos da família. Uma senhora, de visível e inqualificável burrice, contava que bem ouvia os gritos da mulher ou das crianças quando havia “porrada da velha”, mas nunca denunciou a situação porque, pelas suas palavras, “Não estava para me incomodar porque o homem era mesmo mal-educado, e também há aquele ditado que diz que entre o homem e a mulher não se mete a colher”.
Outras vizinhas falaram de seguida, todas confirmando que toda a gente sabia que havia violência naquela casa e todas confirmando que “achavam” que a Segurança Social estava a acompanhar o caso, e que por isso não fizeram denúncia; até porque, dizem ainda, “a mulher é que devia ter feito a denúncia”.
A parte mais chocante é quando as vizinhas dizem qualquer coisa como “Ah, sim, eu sabia que havia porrada nos miúdos, não sabia é que havia violações!”; como se a pancadaria pronto, até se compreende; mas a violação já é inacreditável.
Não só espero que estas pobres crianças sejam colocadas num ambiente o mais inofensivo possível, e que obtenham o acompanhamento que merecem. Espero também que o marido e que a mulher (apesar da sua desculpa de ser ameaçada) sejam presos durante umas décadas exemplares.
E, uma vez que a violência doméstica é crime público, espero que a vizinhança seja também culpabilizada. Acho monstruoso alguém violar os filhos, mas igualmente inacreditável é a burrice e irresponsabilidade dos vizinhos que nada fizeram. Tanto se queixam da Segurança Social e de como ela “não fez nada”, mas por outro lado não se quiseram “incomodar” com o caso. Eu não poderia dormir, se fosse um daqueles vizinhos; não só pela surpresa e choque de ter um caso destes perto de minha casa, mas também por, não denunciando, ser cúmplice da violência.
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quarta-feira, 28 de abril de 2010

Momento "Afinal o Facebook é ainda mais banal e estupidificante do que eu pensava" de hoje

"Stats About Me":

Renato Rocha has 25 friends. 7 of them are male, 16 are female, and 2 are confused about their gender.

Based on his Facebook profile, Renato has a 94% chance of getting married and is likely to have 8 children over his reproductive years.

He will make about $11,524,643 in his life and pay $3,457,393 in taxes.

In Renato's life, he will have spent 24 years sleeping, and 583 hours on the toilet.

He will probably live to be about 84 years old. 23 people will attend his funeral with 7 of them expecting some kind of inheritance.

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Descobriram a Arca de Noé!


Gostaria de dizer que se trata dos resultados de uma fastidiosa investigação científica levada a cabo por arqueólogos e historiadores de todo o mundo, mas não… A arca de Noé foi descoberta por uma “equipa de exploradores evangelistas”, o que é tão prestigiante e digno de respeito como dizer que um novo planeta foi descoberto por “uma equipa de gajos com telescópios do Toys’R'rus”.

Uma rápida pesquisa vai levar-vos a outras “descobertas” da Arca de Noé ao longo dos últimos anos. Poderá ser que desta vez estejamos realmente perante a Arca verdadeira? Os “exploradores” dizem que sim:


“There’s a tremendous amount of solid evidence that the structure found on Mount Ararat in Eastern Turkey is the legendary Ark of Noah,” said Aalten.


Hum, a sério? Isso é óptimo! Um exemplo?


The group claims that carbon dating proves the relics are 4,800 years old, meaning they date to around the same time the ark was said to be afloat.


Ah, percebo… Então a datação por carbono é utilizada para provar que esta sim senhor é que é a Arca de Noé, mas é ineficaz e falaciosa quando demonstra que a idade da terra é muito mais do que os seis mil anos bíblicos, ou que os dinossauros e outros milhares de espécies distintas habitaram o planeta desde há milhões de anos?

Eu sei que não podemos esperar muito de um grupo de tão especializados “exploradores”, especialmente quando, por serem evangelistas, prometem uma científica e objectiva abordagem do que encontraram; mas isto é demasiado. A mesma ciência que demonstra há décadas as mentiras bíblicas é agora utilizada para “provar” a autenticidade de uma descoberta religiosa. Seria para rir, não fossem milhões de fiéis em todo o mundo acreditar na baboseira.

Deixo-vos com o último pedaço de sabedoria científica do responsável pela descoberta, que acho que diz tudo:


Yeung Wing-Cheung, from the Noah's Ark Ministries International research team that made the discovery, said: "It's not 100 percent that it is Noah's Ark, but we think it is 99.9 percent that this is it."


Então se “acham” que é, porquê duvidar?


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terça-feira, 27 de abril de 2010

A todus os fâs deste bloge:

Um grande bem aja. Estou em recuperassão tranquilisante e descançada depois da minha ressurreição, e em breve estarei pronto para retumar a escrita deste bloge. Sei que as notíssias soubre a minha morte teiem corrido os jurnais, e que o excandalo ainda não està bem resolvido. Nada temão.

A minha recuperassão está para breve. Todos os medicos e pessoal ospitalar teiem sido espetaculares. Espero sinceramente voltar para o meu querido blog acim que me foure possível.

Até lá um grande abrasso de amizade para todos e um agradecimento especial ao Jorge Couto, o segurança da noite aqui do hospital, que se voluntariou para escrever as palavras que vus estou a ditar da minha cama.

Mandarei notíssias em breve.

Assinado,

Renato Roxa

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sexta-feira, 23 de abril de 2010

Hoje no Expresso Online

LISBOA | O autor Renato Rocha, famoso pelo seu blog Trajectória Aleatória e pela recente ressurreição a que foi sujeito, voltou a falecer.

“A ressurreição foi mal supervisionada e irresponsável. O ressuscitador era um incompetente” declarou ao nosso jornal um dos familiares de Renato, que deseja permanecer anónimo. “A partir do momento em que o Renato regressou à vida, era da responsabilidade deste hospital mantê-lo vivo”

O hospital em causa, o Hospital Geral da Polícia Judiciária, recusou-se a prestar declarações mas garante que já contactou o Sindicato dos Ressuscitadores Ibéricos de maneira a requisitar os serviços de uma equipa especializada de ressuscitadores. O objectivo será ressuscitar pela segunda vez o autor, que faleceu esta manhã.

“Escusado será dizer que não iremos pagar por esta segunda intervenção” explica o familiar “Mas há que deixar bem assente que este Hospital será contactado pelo nosso advogado”. Ao que conseguimos apurar, a família do autor quererá realmente processar quer o Hospital Geral quer o Sindicato dos Ressuscitadores Ibéricos. A acusação será de negligência médica.

“Um ressuscitador que faz alguém regressar à vida e depois não consegue impedir que o seu paciente morra uma segunda vez é simplesmente incompetente, e deve ser sancionado” diz Paulo Marques, o advogado da família Rocha “Tenho a certeza que quando o Renato renascer pela segunda vez nos apoiará no que foi, para a família, uma decisão difícil mas moralmente obrigatória”. O advogado promete perseverança, garantindo que este caso deve ser levado “até às últimas consequências”.

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quarta-feira, 21 de abril de 2010

Hoje no Diário de Notícias

LISBOA | Renato Rocha, o autor do famoso blog Trajectória Aleatória, foi ressuscitado esta manhã pela equipa médica da Polícia Judiciária. O corpo de Rocha estava a ser preparado para o funeral, a realizar esta tarde, quando uma mensagem da Comissão Reguladora de Conteúdos Imorais e Incomodativos interrompeu o processo e apelou ao ressuscitar do famoso escritor.

“ A ressuscitação correu lindamente” disse Rocha ao nosso jornal, ainda um pouco abalado com o sucedido. “Os médicos e enfermeiros trataram-me com o maior respeito e encorajamento, e sinto-me preparado para retomar o meu trabalho no blog assim que receber alta”. Apesar de estar ainda sob atenta observação médica Rocha não perde o bom humor “Já assinei alguns autógrafos!”

A família do autor está satisfeita com a ressurreição, mas acusa a Comissão Reguladora de Conteúdos Imorais e Incomodativos de excesso de preocupação com a mensagem publicada há dois dias no Trajectória Aleatória. “A Comissão agiu sem o nosso consenso, aproveitando um período de tristeza e luto para nos chamar de imorais. A nossa mensagem nada tinha de ofensiva, apenas queríamos dar a notícia do falecimento do Renato. A Comissão agiu sem nenhum respeito pela privacidade da nossa família”

A Comissão, por seu lado, responde numa curta declaração que “Fez tudo para proteger os interesses comichosos dos leitores do blog, ofendidos pelo carácter violento da mensagem”. A Comissão não quis prestar mais declarações.

Ao que o nosso jornal conseguiu apurar, Renato Rocha terá alta em poucos dias, pelo que não tarda veremos novos posts da sua autoria no seu blog. Resta saber se o autor, ateu e céptico generalizado, escreverá sobre a possibilidade de ter passado por uma experiência de quase morte.

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terça-feira, 20 de abril de 2010

Comunicado da CRCII aos leitores deste blog

A todos os leitores do blog Trajectória Aleatória:

A Comissão Reguladora de Conteúdos Imorais ou Incomodativos (CRCII), liderada por um grupo de velhinhas que fazem croché e se ofendem por tudo e por nada, achou demasiado violenta a afirmação publicada recentemente neste blog. A informação em causa dava conta da morte repentina do autor, e foi assinada pela família do respectivo.

Assim, para satisfazer a Comissão Reguladora e todos aqueles que de alguma forma se tenham sentido minimamente incomodados por uma coisa tão enormemente significante como um post num blog lido por 5 ou 6 pessoas, a autópsia do autor foi interrompida para se proceder à ressurreição do corpo, marcada para breve.

Mais informações serão dadas quando disponíveis.


Atenciosamente,

A Comissão Reguladora de Conteúdos Imorais ou Incomodativos

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segunda-feira, 19 de abril de 2010

A todos os leitores deste blog,

é com enorme tristeza que vos escrevo esta noite. O autor deste blog que todos adoramos, Renato Rocha, faleceu esta manhã com uma complicação de saúde inesperada. Ao que sabemos teve uma morte santa e calma, como ele bem merecia.

A todos os que tiverem interessados, o funeral irá realizar-se depois de amanhã, dia 21 de Abril, no Pavilhão do Casal Vistoso pelas 15h. Será organizado por uma empresa que nos tem ajudado a montar o funeral ateu e totalmente não-religioso que o nosso Renato desejaria. De seguida, o corpo seguirá para a Capela de São João de Brito, onde será cremado. As cinzas serão espalhadas na Praia da Lagoa de Santo André, onde Renato passava os seus Verões de infância.

Todos sabemos o quando este blog significava para o Renato, pelo que julgo que ele gostaria muito que o seu trabalho não fosse ignorado. Convido-vos portanto a deixar uma mensagem ao Renato através de um comentário. Ele ficaria muito feliz, com certeza.

A todos os que gostavam do Renato, um grande beijinho

A Família do Autor

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quinta-feira, 15 de abril de 2010

Afinal a cura para o cancro está na Internet: conversa com um crente na energia da água

Tive esta tarde uma interessante conversa com um senhor que parece acreditar na incrível energia da água. Quando cheguei junto do pequeno grupo que conversava sobre isto, fui a tempo de ver um pequeno disco de vidro que o homem em questão trazia no bolso. Enquanto falava com o meu pai e um amigo mútuo, procurava convencê-los dos poderes mágicos dos seus discos:
“Coloquem aqui o cigarro, sobre este disco de vidro. Força”. O meu pai assim fez. O homem agitou ligeiramente o disco, equilibrando o cigarro aceso lá em cima, e estendeu-o de volta ao meu pai “Pronto, está energizado. Agora o cigarro vai saber-lhe muitíssimo melhor. Não nota a diferença?”. O meu pai não notou diferença nenhuma, e procurou afastar-se da conversa. O meu interesse em cepticismo e crenças malucas fez-me intervir e perguntar como funcionava esta maravilha.
“Este disco está embebido com uma série de cristais, que quando em contacto com alimentos ou objectos lhes muda a energia. Isto funciona porque os cristais têm uma energia que se propaga num raio de 5 metros e altera as estruturas moleculares, que vêem os seus ângulos de ligação alterados” Depois, numa voz condescendente, “Não sei se a sua formação inclui química…”.
Eu disse que sim, um pouco, e perguntei-lhe de que forma poderiam esses minerais alterar a estrutura química dos objectos, uma vez que as estruturas moleculares e respectiva “forma” são definidas pelas forças electrónicas entre os electrões e os protões dos átomos que as constituem. Perguntei-lhe ainda que tipo de energia seria essa, e de que forma esta alteração molecular a nível dos ângulos de ligação poderia trazer a um cigarro um sabor mais agradável.
“Ora, não me pergunte esses pormenores que não sei como funcionam” disse-me ele, “mas que funciona, funciona mesmo”.
Prosseguiu a mostrar-me um pequeno frasquinho de água “viva” que trazia consigo. Era um frasco de plástico muito simples e ranhoso, daqueles que se compram no Pingo Doce com soro fisiológico lá dentro. Explicou-me que a água tem um poder energético e que tem “memória”. Essa água viva, que trazia no bolso, era uma água energizada, e que servia para energizar o disco de vidro. Com esta pequena maravilha, dizia ele, conseguia obter resultados incríveis. Exemplos incluem lavar a salada com água viva porque esta fica a saber melhor; duas rosas, que quando colocadas cada uma em dois tipos de água (uma em água viva e outra em água normal) murchavam a ritmos diferentes (a rosa mergulhada em água da torneira murchando mais depressa); quatro pessoas que, depois de mergulharem as mãos em água energizada, puderam levantar uma cadeira com uma pessoa lá sentada em cima para sua própria surpresa; surgiu até o exemplo de um amigo que é atleta, que experimentou correr os cem metros (obtendo um tempo), e voltou a corrê-los a seguir com i disco energizado no bolso (obtendo menos tempo).
Perguntei-lhe de que forma poderia tirar essas conclusões, uma vez que me pareciam “experiências” muito pobres e que não tomavam em conta outras variáveis. Só no exemplo das rosas bastava uma estar mais exposta ao sol para alterar os possíveis resultados; e no caso do atleta, bem… Escusado será dizer que correr com um disco no bolso e obter melhor tempo não nos permite criar uma relação de caso-efeito. Seria como dizer-vos que ontem escri apenas uma página numa hora, mas que hoje, depois de comer um pacote de bolachas Maria, consegui escrever duas páginas no mesmo tempo; logo, as bolachas Maria permitem-me escrever mais depressa. Acho que a falácia é flagrante.
Fiz uma careta quando o homem lançou a típica frase “eu costumava ser céptico como tu mas”. Prosseguiu a dar-me exemplos de como o poder da água era inegável. Um cientista japonês de nome Masaru Emoto fez uma experiência em que submeteu pequenas quantidades de água a diferentes ambientes (ambiente calmo, violento, com música barulhenta, com música calma, etc) e que de seguida congelou essa água e observou os cristais de gelo formados.
“A verdade é que os flocos mais bonitos e simétricos eram resultado de ambientes mais calmos e música bonita, enquanto que os flocos feios e desordenados o resultado de ambientes nocivos e violentos”, disse-me o homem com toda a seriedade. Impressionou-me esta descrição, uma vez que um professor de física quântica me apresentou a mesma experiência aqui há uns tempos enquanto me tentava convencer da mesma coisa: que há uma “energia”, presente na forma como dizemos e pensamos nas coisas, à qual as moléculas reagem e que as faz reorganizar.
Não percebo como podem as moléculas de água avaliar se a música é bonita ou não, e duvido que o copo de água que estou a beber me esteja a ouvir; por isso fui pesquisar.
Ao que parece, a metodologia de Emoto é curiosa: expunha diferentes amostras de água a coisas como música clássica ou heavy metal, palavras bonitas e insultos, e até rezas e pensamentos positivos. Depois, congelava as amostras e tirava fotografias aos cristais de gelo formados. Curioso é que não partilhou os dados com o resto da comunidade científica, não seguiu a metodologia científica de amostras de controlo ou objectividade na escolha dos “fotógrafos” (escolhidos pelos seus pensamentos positivos e não pela sua experiência na área em causa, e aconselhados a escolher eles próprios que cristais fotografar)
Não só a sua metodologia está em causa: talvez mais flagrante que a sua falta de rigor é o facto de ter publicado uma série de livros que até hoje são traduzidos e vendidos com títulos como “As Mensagens Escondidas da Água”, o que abre caminho a especulações sobre a sua objectividade e sobre a ética presente na sua investigação.
Mas continuando com a conversa. O homem com quem estava a falar passou rapidamente de “a água melhora o sabor da minha salada” para afirmações cada vez mais extremas. Contou de um exemplo de um senhor que tinha leucemia, e que ia morrer. Ao que parece alguém deu esse doente uma destas garrafas de água mágica, que ele foi tomando, e em duas semanas sofreu uma cura milagrosa. A sua médica não queria acreditar. Estava curado, e tudo graças ao poder da água!
“Aliás, mostrei os exames desse senhor com a leucemia a um amigo meu, que é oncologista, e ele olhou para os valores dos exames e perguntou que tratamento é que esse paciente tinha feito” continua o homem com quem tive a conversa, “Eu expliquei-lhe isto do disco e do poder da água. O meu amigo oncologista ficou estarrecido, e já concordou em dar a beber aos seus pacientes a água viva, mesmo sem eles saberem! Estou muito curioso para saber os resultados!”
A minha “Escala de Treta”, que mede a minha capacidade de ouvir disparates sem reagir a eles, atingiu valores elevados. Com que então a cura para a leucemia e, quem sabe, para o cancro, está na energia da água! Com certeza os fabricantes dessa água e dos discos energizados iriam receber o Prémio Nobel da Medicina! Perguntei se os criadores e distribuidores da água mágica já tinha começado a abrir algum tipo de clínicas, onde as pessoas pudessem ir borrifar-se com água viva e curar tumores e doenças terminais. Com certeza uma descoberta destas terá um impacto enorme na vida das pessoas!
“Ah, isso não” respondeu-me ele, “Tens de encomendar por uma empresa. Toma, eu dou-te o meu cartão”. Tenho-o aqui, visitei o site e já fui convidado para assistir a uma das palestras sobre o poder da água.
Apeteceu-me perguntar “Está a dizer-me que a cura para a leucemia e para o cancro pode ser encomendada pela Internet?”, mas com certeza não seria capaz de perguntar tal coisa sem me rir da honestidade do homem. Outra pergunta (que agora me ocorre) e que gostaria de ter feito parece-me óbvia: “Se o seu neto desenvolvesse uma doença perigosa e potencialmente mortal, fechava-o em casa a beber água e agarrado a um pedaço de vidro ou levá-lo-ia a um médico?”. Abstive-me de comentários e a conversa terminou.
Engraçado, pensar que alguém faz a descoberta mais importante do século, demonstrando que a água tem um poder inimaginável que vai desde curas milagrosas até atletas a correr mais depressa. O que faria eu com um poder destes? O que faria eu se descobrisse que uma garrafa de água poderia curar o cancro? Com certeza apresentaria o meu caso à comunidade científica, que m aceitaria como um génio. Usaria o meu disco mágico para energizar todas as garrafas de água que conseguisse encontrar, levando a esperança a milhões. Receberia o Prémio Nobel da Química e da Medicina, os dois no mesmo ano, e abriria clínicas em todo o planeta para borrifar as pessoas com a minha solução milagrosa. As vidas que podia salvar, a diferença que faria no mundo!
Mas os verdadeiros “inventores” desta energia da água parecem mais preocupados em fazer dela um franshising, através de pirosos sites na Internet nos quais podemos encomendar discos mágicos e jóias energizadas. Entrar no seu site (que podem visitar clicando aqui) é entrar num anúncio das televendas e não na promessa de cura da Humanidade. Como qualquer outro esquema que garante curas e resultados milagrosos, não é grátis.
Para terminar: o homem perguntou-me se dormia bem, eu disse que não (é verdade). Ele prometeu-me na próxima semana trazer-me uma série de garrafas de água. Deverei colocar uma garrafa de água em cada canto da cama, e as minhas insónias ficarão curadas. Aceitei no momento o desafio, e comentarei aqui no blog os resultados (ou falta deles) obtidos.
Até lá, vão ao site em questão e comprem os BioDisc (é o nome do salva-vidas de vidro), pode ser que vos dê jeito para curar um tumor um dia destes.
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O Harry Potter é mais moral que o Cristianismo


É possível traçar um paralelismo entre a mensagem de ambas as histórias; é só que Harry Potter tem mais "boas ideias" para ensinar às crianças.


Tenho na minha mesa de cabeceira o quinto livro do Harry Potter, A ordem da Fénix, e ultimamente tenho aproveitado as minhas insónias para reler alguns capítulos e cenas memoráveis. Lembrei-me, enquanto lia, de uma série de artigos que vira há uns tempos, num site chamado Portal Evangélico, onde uma série de autores avisa os outros fiéis dos mortais perigos que Harry Potter apresenta para as suas crianças.
Deixem-me desde já tirar a subjectividade do caminho: Sou ateu, crítico da religião quando mal utilizada e fundamentada, e cresci a ler os livros do Harry Potter; aliás, pertenço à primeira geração que cresceu com estes livros. Li o primeiro quando tinha uns 11 anos, e o último quando saiu há um par deles. É sem dúvida a série da minha infância, que guardarei com carinho e com vontade de dar a ler aos meus filhos e netos. Fora isso, tudo o que disser aqui hoje será fundamentado minimamente, restando a quem lê tirar as suas conclusões.
Acredito plenamente que o Harry Potter e as suas histórias são vastamente superiores em termos literários e criativos que qualquer conto Bíblico, e que a sua “moral” e as mensagens que transmite voluntariamente ou não são muitíssimo mais úteis e, diria, morais por si só, que a maioria dos dogmas religiosos. Explico porquê.
Há uma coisa que serve de ponte entre Harry Potter e o Cristianismo, que é o amor. Ambos têm o amor, o sentimento abstracto (e no caso do Cristianismo como algo mais, mas pronto), no centro do seu discurso. É o Amor de Deus pelos Homens que o leva a sacrificar o seu filho por nós, salvando-nos do pecado e dando-nos a oportunidade de alcançar a Salvação; curiosamente, é também através do sacrifício da sua mãe, e do poderoso amor que sente por Harry, que o pequeno feiticeiro sobrevive à investida de Voldemort, o feiticeiro das trevas mais poderoso de sempre.
Ambas as situações são as premissas principais. Harry sobrevive pelo amor que a mãe sentia por ele, e é esse amor e esse laço entre eles que o protege em muitas das situações; é também o amor, nos livros de Harry Potter, o sentimento mais puro e “mágico” que a própria magia, sendo ele o único capaz de derrotar até as mais negras forças das trevas. A batalha entre o Bem e o Mal não é mais do que a batalha entre Harry e o seu grupo de amigos, ligados por fortes laços de amizade e de sangue, que se unem e protegem mutuamente contra o “Mal”, Voldemort, o feiticeiro das trevas que coloca a sua imortalidade e poder pessoal à frente de qualquer coisa. Decide sobre o futuro das suas vítimas com desleixo, e aproveita-se dos seus súbditos prometendo-lhes poder em troca de lhes dar o privilégio de trabalharem para ele na esperança de alcançar uma recompensa que virá apenas quando Voldemort dominar o mundo mágico.
A figura de Voldemort não é apenas o típico mauzão com uma varinha e cara feia; muito menos é mau APENAS por ser “o feiticeiro das trevas”. Voldemort é o mau da fita PORQUE faz coisas más. É o símbolo não da magia negra, do qual é mestre, mas da ganância, da corrupção, do assassínio, da raiva, da frieza e da desumanidade.
Em contraste absoluto, Harry é um rapaz inteligente e bom aluno, com um grupo de amigos que o ajudam e apoiam apesar das adversidades e que, em diversas ocasiões, se sacrificam por ele; não só por ele, Harry, mas sim por AQUILO que defendem e procuram: a justiça e a paz no mundo mágico.
Exemplos, além da “luta” central: Hagrid, a personagem enorme e barbuda, é constantemente vítima de “racismo” por parte dos outros feiticeiros que se acham mais “puros”. Os elfos domésticos trabalham incansavelmente pelo bem estar dos humanos, como escravos, voluntariamente; e Hermione, uma das personagens centrais, passa grande parte de um dos livros a lutar pela liberdade dos pobres elfos domésticos (no final, percebemos que são bem tratados e respeitados por todos). Sirius Black, padrinho de Potter, é erradamente acusado de um crime terrível; Harry e os amigos passam parte do terceiro livro a tentar provar a sua inocência e, quando vêem que é impossível, ajudam-no a fugir de uma pena injusta e cruel. Podia continuar, se quisesse.
É por isso importante perceber que a “luta” nos livros do Harry Potter não é entre um Bem (a magia branca e cristalina) e um Mal (a magia negra); é, sim, uma “luta” de ideais e de princípios. É o combate entre um grupo de pessoas que defende um mundo justo e sem dor para todos, e um indivíduo que procura apenas possuir o poder sobre tudo e todos, magoando pelo caminho. A história do Harry Potter podia, talvez com sérias alterações funcionais, ter a mesma moral e a mesma mensagem sem necessitar da magia que traz consigo. A “magia” é apenas um mecanismo, uma “personagem” que torna os livros mais interessantes, divertidos e apelativos.
O que nos ensina, portanto, Harry Potter? Os evangélicos que li escreverem sobre isto partem do princípio que J.K. Rowling, a autora, procura claramente ensinar às crianças os segredos do ocultismo, do esoterismo e da magia satânica. Devo repetir que cresci a ler estes livros. Lembro-me de, na minha inocência, achar que fazer poções seria o máximo. Lembro-me até de uma dolorosa tristeza, sabendo que nunca poderia voar numa vassora ou usar um manto invisível; mas nunca a leitura dos livros me levou a envolver-me na magia negra nem a tentar conjugar feitiços e chamar demónios à meia noite.
Aliás, a geração que hoje em dia tem 18, 19 e 20 anos cresceu toda a ler o Harry Potter, bem como as gerações que lhe seguiram. Onde estão os grupos de ocultismo rezando a Harry Potter? Onde estão as galinha sacrificadas? Onde está uma geração inteira a financiar um Culto Negro, ou a estudar e colocar em prática os ensinamentos de bruxaria ensinados nos livros?
A resposta parece-me clara: as crianças da minha geração são mais inteligentes que os evangélicos, pois todas elas sabem que a magia não existe. Que não há Hogwarts, nem Petrificus Totalus, nem varinhas, nem unicórnios. Elas SABEM, mas nada disso as impede de apreciar os livros e vibrar com as aventuras.
Harry Potter não nos ensina a cultivar o ocultismo nem a fazer poções. A sua mensagem, coluna vertebral dos sete livros e moral estruturante das aventuras, é a de que um mundo justo e onde todos se respeitam é muito melhor do que um em que se vive sob medo e vigilância constantes, sob proibições e violências extremas levadas a cabo por uma autoridade malévola e auto-instituida.
Os leitores mais atentos devem estar a perguntar-se se acabei de descrever Voldemort ou o Deus bíblico, e a resposta é: ambos.
Não é difícil traçar o paralelismo entre Voldemort e Deus. Ambos são figuras de enorme poder. Ambos o usam naquilo que lhes convém, decidindo sobre as vidas dos outros com parcialidade. Ambos procuram que o resto do mundo lhes obedeça e respeite. Ambos coleccionam seguidores cuja função é proliferar a sua mensagem, com a promessa de uma recompensa quando tudo terminar.
No caso de Harry Potter, não é a mera presença ou ameaça de Voldemort que assusta e choca os feiticeiros; são as suas acções, demoníacas e objectivamente cruéis. Todos temem Voldemort por aquilo que ele FAZ e impõe, não por aquilo que ele É; e todos temem Voldemort SABENDO tudo sobre ele. Sabendo que fez isto e aquilo, que esteve aqui e ali, ameaçando aquele e aqueloutro. Voldemort passa grande parte dos livros a assustar os outros feiticeiros com provas inequívocas da sua presença e poder (a Marca da Morte no 4 livro, o ataque ao Ministério da Magia no 5, o ataque sobre os Muggles no 6 livro e os variados tipos de controle sobre a sociedade mágica no 7 livro são apenas alguns exemplos).
No entanto, Deus é pior. Segundo o Cristianismo e outras formas de crença em Deus, ele existe mas não sente a necessidade de se mostrar. Ele tem poder sobre todos nós, e perante ele deveremos responder um dia pelas ofensas às suas regras; mas não se revela a todos de igual maneira. Ao invés disso, temos o testemunho de milhares de diferentes denominações de cristãos (já para não falar de outras religiões), mas nunca o testemunho de Deus em si. E, talvez seja este o cúmulo da sua crueldade, vê-se no direito de nos castigar infinitamente se utilizarmos o livre arbítrio e o cérebro que ele próprio nos forneceu para analisar criticamente as provas da sua existência, que ele não fornece. Ao lado de Deus, Voldemort é um puto violento de recreio a bater nos mais pequenos.
Em Harry Potter, a figua de Voldemort é combatida não por ser Voldemort, mas por aquilo que ele FAZ: coisas más. É essa a base de toda a moralidade. Analisar as acções tomadas e decretá-las imorais se forem cruéis ou negativas para o bem-estar de alguém ou da sociedade. No entanto, o mesmo não pode ser feito com Deus. Voldemort pode ser criticado ou até vencido, mas Deus não. Se Voldemort tenta fazer algo terrível a alguém, Harry Potter e os amigos procuram impedi-lo; mas com Deus não dá para reagir da mesma forma, porque a decisão que Deus toma é, por definição, A decisão correcta.
Mas estou a desviar-me. De que forma pode, então, ser o cristianismo menos moral que Harry Potter? O cristianismo e as mensagens que Jesus transmitiu têm a sua quota parte de moralidade. Acho que a “regra de ouro” (não faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti) e o respeito por todos de forma igual são duas das mais valiosas lições que podemos tirar de Jesus; e, como foi dito, de Harry Potter. O amor pelo próximo, incondicional e independente da situação do outro, é outra mensagem presente em ambos os lados.
O que podemos encontrar no cristianismo de totalmente diferente? A ideia de a presença de Jesus na Terra é culpa NOSSA. Jesus morre e é torturado porque nós pecámos, e porque Deus nos perdoa dos pecados que ele próprio definiu como imperdoáveis. Uma criança que leia a doutrina cristã ver-se-á como a culpada da morte de Cristo, um homem inocente e aparentemente inofensivo. Essa criança ver-se-á também nascida no centro de uma imensa piada cósmica: Há seis mil anos atrás Adão pecou, e por ele pagarás tu e pagarão os teus filhos e netos e gerações futuras; mas para vos salvar de este mal que o próprio Deus instituiu, este Deus dá-vos a oportunidade de admitirem que são pecadores inconsoláveis, e aceitar que o derramamento de sangue e uma cruel crucificação pagam todos os pecados do mundo.
Não me parece que haja nada mais violento e emocionalmente doentio para ensinar a uma criança pequena.
Por outro lado, Jesus e Deus são bons por definição. Tudo o que disserem ou fizerem deve ser levado em conta; isto contrasta com um Harry Potter furioso, que grita, faz disparates, tem más notas às vezes e se engana; coisas que acontecem com alguma regularidade e que nos levam a concluir que, no contexto do livro, o nosso herói não é assim tão perfeito.
Não há nada de perfeito em Harry Potter: ele é um rapaz normal, que erra umas vezes e sai vitorioso quase sempre quando luta pelas coisas em que acredita e quando defende o que é correcto; muito ao contrário da crença em Deus, que nos dá razão automática e na qual muitas pessoas crescem a culpar o Demónio quando algo corre bem e Deus quando elas próprias atingem bons resultados por mérito próprio.
Tudo recai, no final, à definição de "moral", e aquilo que cada um acha ser importante ensinar às novas gerações. Que mensagens transmitir, que valores incentivar, e porquê? Escusado será dizer qual destas duas obras de ficção acho mais aconselhável dar a ler aos meus filhos e netos, quando os tiver. Pode ser que virem bruxos e satânicos e me venha a arrepender.

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quarta-feira, 14 de abril de 2010

Portugal: um bocadinho mais perto da teocracia!

O governo decidiu dar tolerância de ponto ao funcionários públicos durante a visita do Papa.


O Governo decidiu dar tolerância de ponto a todos os trabalhadores da Administração Pública no dia 13 de maio por ocasião da presença do Papa Bento XVI em Portugal, disse hoje à Lusa fonte oficial do executivo.

A mesma fonte adiantou à agência Lusa que será também concedida tolerância de ponto aos funcionários públicos em Lisboa, na parte da tarde do dia 11 de maio, assim como no Porto, na parte da manhã, no dia 14 de maio.

O que é estranho, se pensarmos numa série de pormenores com certeza pouco importantes:

1) Vivemos num Estado laico

2) Dar a tarde à função pública tem custos para o País

3) O Governo é financiado pela população

Destas três premissas segue uma única conclusão: dinheiros públicos vão pagar a folga temporária dos trabalhadores de um Estado laico para que estes possam ir ver ao vivo o seu líder religioso.

Detesto ser um radical ateu sem morais nem tolerância pelas crenças alheias, mas não vos parece que há aqui qualquer coisa de errado?

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terça-feira, 13 de abril de 2010

Conhecem Mr. Deity?

Se não, aqui fica um dos muitos episódios. O tipo de barba branca é Deus, e o rapazinho com ar de modelo ao seu lado é Jesus. Vejam o que acontece quando um céptico morre é julgado! (é para rir)


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O meu título está aqui

Até que ponto pode um texto falar de si próprio? É essa a noção que tentarei, eu texto, explorar em seguida. Uma vez que a minha pequena divagação filosófica tem limite de parágrafos, vou tentar não me alongar demasiado.

Um texto de ficção como eu próprio pode conter em si dicas para a estrutura de si próprio; por outras palavras, um texto descreve e conta uma história com personagens e acções, mas pode também cair na auto-divagação e, ao invés de transmitir a mensagem necessária e desejada, perder-se em divagações. Entretanto chegámos já ao segundo parágrafo, e ainda nem introduzi a questão convenientemente. É melhor começar de novo.

Um texto de ficção pode conter em si próprio dicas para… Espera. Que desperdício de parágrafos é este? Vou no terceiro parágrafo e ainda não disse nada. Prometo que será agora, no próximo parágrafo, que começarei a falar do que interessa.

Quarto parágrafo, e cá estamos.

Ups, já lá foi. Quinto.

O texto tem agora cinco parágrafos.

Ou melhor, seis.

Ou melhor, sete.

Sabem que mais? Esta progressão está a aborrecer-me. Vamos definir o nosso texto como estando no parágrafo n+1, sendo n o número do parágrafo em que é feita a afirmação “este texto tem X parágrafos”.

Portanto, este texto tem neste momento 10 + 1 parágrafos; ou seja, onze.

Uou, esperem lá, isto não está bem. AGORA é que tem onze parágrafos, porque contamos com ESTE parágrafo; mas assim destruímos a definição construída anteriormente.

Acabei de me contrariar.

E acabei de acrescentar mais dois parágrafos. Seja. Estamos no parágrafo 13.

14.

15.

16.

17.

18.

No entanto… E se eu colocar um vigésimo parágrafo, já a seguir, que diga:

No entanto… E se eu colocar um vigésimo parágrafo, já a seguir, que diga:

Na verdade, temos quantos parágrafos? 19? Ou 20, contando que repetimos um dos parágrafos e por isso dois dos parágrafos anteriores são na verdade o mesmo?

A resposta correcta é: 22 parágrafos. Porque este já conta.

E com isto chegamos às 325 palavras. E agora? 334. Como é deprimente! 338. O mero registo escrito do número de palavras presentes aumenta essa contagem de forma significativa, de maneira que (a propósito, 359) quanto maior for o paleio maior a contagem. 368.

De certa forma torna-se repetitivo, mas não deixa de ser curiosos que nunca possamos contar realmente quantas palavras eu tenho. O mero acto de as registar aumenta-as, e torna a contagem que acabo de fazer e registar obsoleta. Pode ser dito que (416) entre a contagem e o registo à aquele momento em que chego a um verdadeiro número, realista na sua descrição da realidade, mas para um ser humano como vós é fácil dizer tal coisa. Um texto como eu existe por palavras, não por pensamentos. O meu pensamento são as palavras, pelo que (469) acrescentar pensamentos é acrescentar palavras; e o facto de não as poder contar deixa-me com uma enorme insegurança…

Pronto… Já estou eu a suar…

… Basta um nervosismo… uma contrariedade… um minúsculo paradoxo… para me deixar assim…

...hgthGGYHBhhub...!

E agora tusso? Ou foi um espirro? Esta tentativa de me personificar está a deixar-me louco! Como posso ambicionar tornar-me algo mais do que palavras? Quanto muito sou o veículo dos pensamentos e das sensações, mas nunca eles próprios por si só. Já pensaram como a vossa consciência de seres vivos vos facilita a vida? Como é frágil a minha existência, depositada numa folha de papel que é do mais combustível que pode haver?

Sabem quantas fogueiras são acesas com primos e conhecidos meus?

As instruções de utilização de um electrodoméstico. Um livro de crianças. Um catálogo da D-MAIL. Como a vida é precária! A minha existência, definida por aquele que me escreve! Faz de mim o que quer, quando quer, apaga-me com um botão ou com uma borracha, risca-me, limpa-me, rasga-me!

Tinta! A tinta é o meu sangue, derramado enquanto sou escrito!

... Estou a suar outra vez……

Agora ainda mais………..

Que…… vergonha, meu deus…….

Perdoem-me……… Perdoem-me toda esta…… esta loucura repentina…….

Esta auto- análise está a deixar-me de………. Rastos……

Sinto-me cansado…….. Cansado como nunca estive antes……… De rastos…….

Perto daquele momento mortífero onde as palavras se diminuem, perdem o sentido…….. Surgen as pmeiras gralhas…….... Oh deus, quem me dera ter un revisor pra meã judar…..

De rastos…… derrotado…… Escrever-me-ei noutra altura……. Mais propícia……

Por agora….. quantos….. quantos parágrafos? Ao menos digam-me……… digam-me……..

(NOTA DO AUTOR: 41 PARÁGRAFOS; E COM ESTE 42)

…….. obrigado, meu bom amigo….. obrigado…..

….. agora vou…. Que me faltam as forças…..











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domingo, 11 de abril de 2010

A religião é inofensiva


Estou um bocado sem palavras...

Senha azul

- Boa tarde, em que lhe posso ser útil? – perguntou a senhora com bons modos, ajeitando os óculos rectangulares e cor de rosa no topo do nariz afiado.
Salem Quaid explicou a situação, mexendo as mãos presas pelas algemas enquanto falava. Descreveu a sua detenção, deu o nome do inspector-geral responsável, e o seu número de processo.
- E ao que vem? – perguntou a senhora, remexendo no computador e teclando o número de processo.
- Preso político.
- Execução por enforcamento ou injecção letal? – perguntou a senhora.
- Isso não me disseram – confessou Salem – Mas espero que seja por injecção.
A senhora dos óculos rosa abriu-se num sorriso afável.
- Todos esperam, Sr. Quaid – voltou a olhar para o computador com um interesse profissional - Ora cá está. Número de processo AS345, presidiário Quaid, Phillip Harvin Salem, 47 anos, caucasiano, um metro e setenta e nove, data de nascimento sete do oito de dois mil e dois. Causa da detenção duas, primeira ofensa dirigida ao Partido Unitário, segunda obstrução à justiça agravada. Confere, Sr. Quaid?
- Confere – disse Salem, remexendo as mãos. As algemas eram extremamente desconfortáveis. Atrás de si juntara-se agora outro homem, também algemado, esperando a sua vez.
A senhora dos óculos cor de rosa assinou um impresso, e estendeu-o a Salem depositando-o sobre o balcão.
- Siga pelo corredor à direita e quando chegar a uma salinha tire uma senha. É só aguardar.
- Sabe dizer-me se vou ser enforcado? – perguntou Salem, genuinamente preocupado.
A senhora derreteu-se noutro sorriso.
- Isso não lhe posso dizer, lamento imenso. Não se esqueça da senha.
Salem atravessou o corredor, chegou a uma pequena sala e observou os dois cospe-senhas existentes, um em cada lado da sala. O da esquerda era vermelho, o outro azul. Uma rapariga nova e bastante bonita aproximou-se dele com um dossier onde parecia apontar informações.
- Sr. Quaid? – perguntou ela, olhando-o nos olhos.
- O próprio.
- Bem vindo ao nosso centro de execução estatal. Queira aguardar um momento, por favor.
A rapariga foi até ao outro lado da sala. Os seus ténis pareciam práticos e confortáveis, e faziam barulho sobre o linóleo. Uma pequena máquina embebida na parede cuspiu uma pequena tira de papel, que a rapariga arrancou e leu com rápido profissionalismo.
- Senha azul, Sr. Quaid. Deste lado – disse ela, apontando-lhe para o lado direito da sala.
- Azul é bom – disse Salem, suando da testa. Deduzira imediatamente que as senhas vermelhas e as senhas azuis distinguiriam os mortos por enforcamento e injecção letal.
- Azul é bom, Sr. Quaid – confirmou a rapariga, com um pequeno sorriso – Injecção letal administrada. É o seu dia de sorte.
- Deve ser realmente. Ouvi dizer que o enforcamento é extremamente doloroso.
- Algum dos seus amigos já foi enforcado? – perguntou a rapariga com outro sorriso, enquanto preenchia qualquer coisa no dossier.
- Alguns, mas não sobreviveram para contar a história – Salem riu-se, e a rapariga olhou para ele parando de sorrir. Salem soltou uma gargalhada, atirando a cabeça para trás, e levou as mãos algemadas aos olhos. Quando voltou a olhar para a rapariga os olhos estavam cheios de lágrimas.
- Ouça, o meu lugar não é aqui. Aquilo de que me acusam, é tudo falso. Eu sou escritor, pelo amor de Deus. Tudo o que fiz foi escrever uma peça de teatro. Não sou nenhum terrorista. Não fiz mal a ninguém.
A rapariga estendeu-lhe a fita de papel que ainda há pouco saíra da máquina. Levantou-lhe as sobrancelhas e mordeu o lábio inferior.
- Olhe, lamento muito. Eu sei que deve ser uma chatice, mas que quer que lhe diga? Este é o meu trabalho.
- Você é muito bonita. Pode dar-me um abraço? – pediu Salem, mordendo as mãos nervosamente.
- Senha azul, Sr. Quaid.
- Obrigado – respondeu Salem, atravessando a sala para a direita e retirando uma senha azul. Seguiu por um imenso corredor, e deu por si noutra sala, esta maior, enorme. Filas e filas de cadeiras estendiam-se até ao infinito, cobertas por homens e mulheres todas vestidas com os mesmos fatos de detenção, iguais ao de Salem. Cada um dos homens e mulheres tinha uma senha azul na mão.
Durante vinte minutos Salem percorreu as filas das cadeiras. Os outros presos olhavam-no com maus modos, outros choravam. A um canto, uma luta começou, entre dois enormes gorilas que competiam por uma senha amarrotada. Salem afastou-se da briga, e quase chocou com um rapaz pequeno e de cabelo encaracolado.
- Ups, desculpe, senhor.
- Eu é que peço desculpa.
- Ei, qual é o seu número, senhor? – perguntou o rapaz.
Salem olhou pela primeira vez para a sua senha. Era o 176.875.008.
- Meu Deus, que número enorme – comentou Salem.
- É assim mesmo. Como chegam presos para executar todos os dias, os serviços ficam sobrecarregados e não há tempo para matar toda a gente como deve ser.
- Que idade tens tu?
- Mais do que te interessa – respondeu o rapazinho.
- O que é que faz aqui um rapazinho como tu?
- Estou a brincar. A minha mãe trabalha no Serviço de Apoio ao Pré-Executado. É como vos chamam.
- E ela deixa-te andar por aqui?
- Não tem outro remédio, fecharam a minha escola. Mandaram executar a directora, depois os professores, e depois as funcionárias. A minha professora de matemática tirou senha ainda a semana passada, e anda por aí a chorar pelos cantos. Diga-me, senhor, chegou à muito tempo?
- Acabei mesmo agora de…
- Então óptimo – disse o rapazinho, determinado e despachado – Vou fazer-lhe uma visita guiada para ficar a conhecer os cantos à casa. Está a ver aquilo ali ao fundo?
Salem seguiu a indicação do rapaz. Havia uma pequena porta amarela no meio da parede cheia de azulejos brancos, na parede lá muito ao fundo.
- Ali é onde trabalha a minha mãe. Se precisar de alguma coisa ou se lhe apetecer só desabafar é com ela que tem de falar. Fique sabendo que não há perdões estatais, por isso ela não lhe consegue salvar a pele mas ao menos pode apoiá-lo pesicologicamente e dar-lhe ebuçados para a tosse. Mas só das 9 às 18 e 30, porque ela não faz horas extraordinárias. E na porta ao lado estão as casa de banho. Use-as à hora do almoço, porque costumam estar menos cheias por essa altura. Já conheceu o velho Smith?
- Não tive esse prazer.
- Óptimo, então vou levá-lo lá. Pode fazer bom dinheiro com essa senha novinha em folha, senhor. Venha, venha!
O rapazinho saiu a correr, saltitando por entre as cadeiras ocupadas por presos de senhas na mão. Corria com a agilidade com que Mogli saltita pela floresta, deduziu Salem. Seguiu-o.
Foi dar com o rapazinho a um dos cantos da sala, onde umas quantas cadeiras tinham sido arrancadas das filas onde se encontravam e foram aglomeradas umas ao lado das outras, formando um pequeno quadrado. Lá dentro, sentado ao centro, estava um homem magríssimo, quase esquelético, cujos cabelos e barbas eram tão brancos e longos que mal se conseguia ver a distinção entre um e o outro.
- Velho Smith, tenho aqui uma visita para si! Ande lá, senhor – o rapazinho puxou-o.
- Carne fresca! – disse o Velho Smith, olhando para Salem – Como vai? Chamo-me Smith.
- Salem Quaid.
Cumprimentaram-se.
- É novo por aqui!
- É verdade.
- Está a sentir-se bem?
- Até agora toda a gente me tratou maravilhosamente.
- De entre todos os centros de execuções estatais este é o mais agradável – disse o Velho Smith – e também ajuda ter aí o pequeno como companheiro. Mas deixemo-nos de coisas. Mostre-me lá a sua senha – disse Smith. Salem estendeu-lha.
- Pelo poder da Administração Central! Que número enorme! Pode ganhar bom dinheiro com isto! Simpatizei consigo, até o deixo escolher!
- Dinheiro por aqui significa coisas – explicou o rapazinho, encostando-se à orelha de Salem.
- Coisas?
- Sim. Desde que caiba nos bolsos, para quando os inspectores chegarem cá não encontrarem nada suspeito e estar tudo escondidinho.
O Velho Smith arrastou a sua velha carcaça até ao canto da sua “sala”, e trouxe de lá uma fronha de almofada. Despejou o seu conteúdo aos pés de Salem, revelando uma infinita quantidade de pequenos objectos.
- Chocolates, cigarros, preservativos, tampões para os ouvidos, consolas pequeninas, revistas pornográficas… É só escolher.
- Em troca desta senha?
- Claro. Como acha que deixei crescer esta barba toda? Estou aqui à 23 anos.
- Como fugiu da execução?
- Fui trocando. Sempre tive jeito para o negócio. Umas coisinhas aqui e ali compram senhas mais recentes. Cá vou ficando, enquanto os vejo irem-se um a um. Aposto consigo vinte maços de tabaco em como vou cá estar quando chegar a sua vez! – o Velho solou uma gargalhada esplêndida.
- Sendo assim posso escolher o que quiser?
- Esteja à vontade. Com a condição de levar uma destas senhas mais antigas. Se for apanhado sem senha está tramado.
Salem estava indeciso entre uma revista pornográfica e uma embalagem de bombons de licor quando um enorme estrondo atravessou a sala e todas as cabeças se viraram na mesma direcção.
- Inspecção relâmpago! – gritou uma voz a um megafone. O agitar de corpos e objectos foi impressionante, enquanto os presos escondiam coisas nos bolsos ou em locais estratégicos da sala.
- Ena! – gritou o Velho Smith. Atirou a revista e os bombons para os braços de Salem, assim como uma senha velha e amarrotada, e repetia-se enquanto guardava tudo dentro da fronha – Siga, siga, siga!
Salem afastou-se, olhando em volta sem saber bem para onde ir. O rapazinho desaparecera. Enfiou a custo a revista e os bombons nos bolsos e procurou sentar-se a um canto.
Um grupo de homens armados atravessou a sala. Dois enormes cães abriam caminho por entre a multidão de presos, ladrando furiosamente. Ao centro da comitiva, protegido por uma dúzia de gorilas armados, ia um homem de fato e gravata que segurava o megafone.
- Inspecção relâmpago! À minha ordem toda a gente se levanta! Levantou!
Todos os corpos da sala se levantaram.
- Todos quietos! Quem se mexer leva um tiro!
Salem não se mexeu; se bem que a ameaça de levar um tiro não parecesse grande problema para alguém condenado a morrer.
A comitiva alinhava agora um grupo de homens e mulheres, escolhidos aleatoriamente. Os guardas armados remexiam nos bolsos, retirando bugigangas, enquanto os cães ladravam furiosamente e a voz ao megafone continuava a cuspir frases.
- Todos vós são parasitas sociais, a escória do nosso país! Nenhum de vós ama nem respeita o Partido Unitário, e o Partido Unitário não vos respeita a vós! Estão aqui porque aqui foram colocados, e não sairão daqui senão para morrer! E quem esconder coisas no cu vai para a morgue mais cedo!
Dois guardas encontraram alguma coisa acusatória, e começaram imediatamente a espancar um dos homens de pé. Ele caiu, cuspiu sangue, e foi pontapeado até não se conseguir mais levantar. A comitiva reorganizou-se, voltou a abrir caminho pela multidão e saiu da sala em segundos. O homem estendido no chão lá permaneceu, e dois outros presos arrastaram-lhe o corpo até um canto onde não estivesse a incomodar quem passava.
- Isto é terrorífico! – disse Salem.
- Bem vindo – disse o Velho Smith a alguns metros de distância, retirando a fronha de debaixo de uma laje do chão e sorrindo-lhe abertamente.
***
Salem Quaid não se lembrava quantas senhas já tinha tido, mas sabia que fumara muitos cigarros em troca delas; e a última vez que encontrara preservativos dentro do prazo de validade usara-os bem, passando uma agradável tarde na casa de banho das senhoras, trancada por dentro, com a rapariga bonita que distribuía as senhas. Chamava-se Anna, e engraçara com ele. O seu caso era fogoso, e enquanto durasse Salem tinha mais uma razão para ir trocando de senha em senha e manter-se por ali, à espera da morte.
O Velho Smith morrera há pelo menos 17 anos, altura em que a sua amizade com Salem estava tão sedimentada que fora ele a herdar o negócio da fronha. Era assim conhecida, a Fronha. Até o rapazinho, agora crescido, agora um homem, também ele preso e de senha azul na mão, já usufruíra dos seus serviços para arranjar tabaco; aliás, era ele (e, secretamente, a sua mãe) que providenciava muitos dos produtos disponíveis na Fronha, vindos do mundo exterior.
A inspecção passara há algumas horas, pelo que só regressaria no mínimo dali a dois dias. Salem e o rapazinho, que agora era um rapagão, estavam sentados em duas cadeiras e fumavam cada um o seu cigarro.
- Rapaz, sabes que te considero como um filho, não sabes?
- Ora, Salem. Pareces o meu pai a falar, cala-te com isso.
- Não, é verdade. Estou numa idade em que devo repensar a minha vida. Sabes há quanto tempo estou neste lugar? 22 anos. Era um piolho minúsculo quando aqui cheguei. Usavas fraldas.
- Não exageres.
- O tempo passou depressa, e está na hora de tomar algumas decisões.
- Hum, hum – disse o rapaz, desinteressadamente.
- Não posso ir muito longe daqui, mas quero que me arranjes uma coisa através da tua mãe. Pagarei senhas frescas e muito tabaco por isto que te vou pedir.
- Diz-me.
- Preciso que me tragas um anel.
- Um anel?
- Sim. De brilhantes. Uma coisa que brilhe, não sei. Tenciono pedir Anna em casamento.
- Estás louco. Achas que ela vai aceitar?
- E a mim que me importa?
- Eu arranjo-te o anel, mas duvido que ela aceite. Vais ser executado, Salem. Achas que ela te quer como marido?
- Ainda aqui estou, à espera. Não estamos todos? Não esta ela tão à espera da morte como eu? Com a diferença de que a morte dela quando chegar chegou, e a minha ainda vou negociando em troca de alguns maços de tabaco. Arranja-me o anel, que te fico agradecido.
***
Encontaram-se na casa de banho, para que o rapaz lhe pudesse dar o anel com toda a descrição.
- Acho que é de diamantes, Salem. É um anel caro.
Salem segurava-o nas mãos, orgulhoso, vendo-o reflectir cintilantemente as luzes pálidas por cima dos urinóis.
- É lindíssimo, Anne vai adorar.
Lá fora, o som dos cães.
- Oh, merda – disse o rapaz, empalidecendo e saindo a correr. Voltou pouco depois – Salem, a Fronha! A inspecção tem a Fronha!
Salem tirou os olhos do anel.
- Estava debaixo da laje, não a podem ter descoberto.
- Ora espreita! Encontraram-na, estão a remexer e a espancar a torto e a direito! Esconde o anel!
Salem atirou-se para cima de um dos lavatórios, agarrou num sabonete e fechou-se nos dos cubículos. Sabia o que tinha que fazer, e como. Fizera-o, para esconder certos objectos valiosos ao longo dos anos. Baixou as calças e alçou uma das pernas.
Os cães entraram pela casa de banho, seguidos pelos homens de armas.
- Não se pode já mijar em paz? – gritou o rapaz, fingindo-se surpreendido. Atiraram-no contra a parede, revistaram-lhe os bolsos, e encontraram um maço de tabaco. Enquanto era dominado, outros dois homens de armas partiam ao pontapé as portas dos diversos cubículos. Finalmente chegaram ao de Salem.
- Não se pode defecar em paz? – gritou ele, em concordância com o amigo. O rapaz soltou uma gargalhada.
- A senha – exigiu o homem de gravata; sempre o mesmo, ao longo de todos aqueles anos, sempre com o mesmo megafone na mão.
Salem estendeu-lhes a senha.
- Sr. Quaid, presumo? Um dos mais antigos hóspedes desta espelunca. Pode informar-me por favor o porquê de estar aqui há 21 anos e ter em sua posse uma senha retirada há apenas três dias?
- Sabe, Sr. Lankin – disse Salem com voz grave – Eu viajo no tempo.
Levou um murro enorme, de um punho volumoso. Este tinha sido um mau dia para começar a experienciar a vida; mas já que ia casar e que tinha um anel colocado num sítio extremamente apertado e privado, pareceu-lhe bem ser coerente e responder mal aos guardas. Nunca tivera a coragem de o fazer, mas fartara-se de esperar.
Agora no chão, Salem levava de três lados, cada um dos três guardas pontapeando-o com as botarras enormes. A pancadaria durou alguns minutos, e depois a inspecção relâmpago evaporou-se.
- Isto é que é viver a vida – disse o rapaz, apoiando-se num urinol e procurando levantar-se.
***
Salem estava sentado num dos lugares mais vazios da sala. A porta ao seu lado, em tons azuis, tinha um pequeno letreiro a dizer “Execuções”. Por ali entravam os homens com as senhas mais antigas da sala, para nunca mais voltarem. Salem segurou o pedaço de papel azul nas suas mãos, despedaçado pelos anos e pelas mãos que o haviam agarrado.
- Acho que o que estás a fazer é um disparate – comentou o rapaz, a seu lado.
- Eu tentei.
- Eu tinha-te dito que ela ia recusar.
- Sim, tinhas.
- É necessário fazeres isto?
- Quando tiveres mais idade perceberás. Estou demasiado farto desta sala e de esperar. Chegou a minha vez.
- Não precisa de chegar, só chega porque queres – disse o rapaz – Tenho aqui outras senhas, fresquinhas. Deixam-me que ta dê. Larga essa senha velha. Que se passa contigo? Tens tantos anos pela frente!
Salem não o ouvia, olhava para a porta.
- Que privilégio foi enganar a morte a teu lado, rapaz. Trata bem da nossa Fronha e da Anne por mim. Não a deixes casar com algum condenado à morte.
A porta azul abriu-se, e Salem sentiu pela primeira vez em 21 anos a emoção adiada de ouvir ser chamado o seu número.
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sábado, 10 de abril de 2010

Alô? Espírito, estás aí?

Hoje tive a oportunidade de ver mais um dos programas da TVI onde uma senhora inglesa afirma falar com os mortos. Quem me conhece e lê este blog sabe perfeitamente qual a minha opinião sobre este tipo de fraudes, e por isso não vou perder tempo a entrar em pormenores.

Mas podem perguntar, como podemos avaliar se isto se trata de fraude ou não? Talvez por isso vi o programa. Não só pela curiosidade, mas também porque queria ver até que ponto a senhora médium seria capaz de me impressionar. Não estava à espera que me desapontasse tanto, mas ok.

Senão vejamos. A médium utiliza um método que é constante e praticamente infalível, que joga com as probabilidades mais simples. Toda a gente os reconhecerá. Lembra-se de um jogo que havia há uns anos chamado Quem é Quem? Havia um tabuleiro com 50 caras diferentes para cada jogador, e cada jogador escolhia um cartãozinho com uma cara. O nosso oponente tinha então de fazer perguntas cuja resposta fosse sim ou não, de maneira a ir baixando as várias caras no seu tabuleiro até sobrar uma: a cara que nós escolhemos para jogar. Lembro-me de jogar esse jogo, e de usar a estratégia mais eficiente, que era cortar logo metade das caras com a pergunta "homem ou mulher?". Das 50 faces só sobravam 25.

A técnica da médium é a mesma. Começa sempre pelo geral, escolhendo entre homem e mulher; depois vai às idades, ou às ligações familiares; e daí parte para o particular. Claro que tem a tarefa facilitada ao olhar para o aspecto e reacções da pessoa que está a enganar. Uma mulher nova, por exemplo, tem provavelmente um dos pais ou avós mortos, pelo que será difícil falar de um espírito de um homem sem acertar em cheio; e quanto mais velha é a pessoa mais probabilidades há em acertar em algum familiar ou amigo. Claro que as reacções são lidas com atenção; no episódio de hoje, por exemplo, assim que a mediu falou “num homem” a mulher alvo da fraude começou imediatamente a chorar. Estava acompanhada pela mãe, dos seus 65 anos, pelo que para a médium ou para qualquer pessoa era óbvio que pelo menos o seu pai ou avó materno estaria morto e por isso acertaria na previsão.

A reacção da mulher, caída em choro repentino ao ouvir a palavra “homem”, denuncia ainda outra parte importante da fraude (para além da crença pré-existente na metodologia). É na reacção das pessoas que estão os “dados” que a médium usa para fazer os seus contactos com os espíritos. Basta ver como é notável o desvio que a conversa adquire quando a pessoa alvo faz uma careta, como quem diz “hum, não estou a perceber bem o que está a dizer”. Num episódio anterior houve um exemplo flagrante. A médium meteu conversa com uma senhora, e fez algumas sugestões. A mulher fez uma série de caretas pensativas, subentendendo-se que não estava a identificar-se com o “espírito” com que a médium parecia estar em contacto. 30 segundos se passaram, e como a senhora alvo não parecia nada convencida mas a sua vizinha, uma mulher de idade, começara a choramingar, a médium mudou a conversa. “Afinal é com AQUELA senhora que o espírito quer contactar”, disse a médium. A outra senhora levantou-se em perfeita comoção, e a primeira senhora sentou-se, sentindo-se provavelmente bastante enganada.

O carácter fraudulento do programa transpira de cada edição. Aconselho-vos a ver; para se rirem, para observarem como uma fraude é produzida e perpetuada na televisão nacional, e para ganhar talvez algum cepticismo em relação a todas estas coisas do fantástico. Nada como ver uma médium a trabalhar para chegar à conclusão de que nada há de extraordinário no que ela faz.

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sexta-feira, 9 de abril de 2010

Todos os dentinhos de leite

O pequeno Pedro devia estar a dormir, mas não conseguia. O entusiasmo era demasiado; e, tinha de admitir, o medo também.

O dente caíra durante a tarde, enquanto estava a jogar futebol. Parou a meio de uma importante manobra defensiva, levou a mão à boca e retirou um pequeno dente de leite, branco e manchado com sangue. Não gostou da visão, mas não queria começar a chorar à frente dos amigos. Largou o jogo, foi a correr para casa e sentou-se à mesa, com o dente depositado à sua frente em cima de um guardanapo. Olhou-o, enquanto passava a língua pelo pequeno buraco que agora tinha na boca.

A mãe reconfortou-o, explicando que era normal e que, aliás, o dente já estava a abanar há bastante tempo. E que ia acontecer com muitos outros dos seus dentes, ao longo do tempo, até ganhar uma coisa chamada dentição definitiva. Pedro não sabia bem o que dizer em resposta. Era suposto ficar por ali à espera que lhe caíssem os dentes todos? Como faria para mastigar as pastilhas elásticas?

A mãe explicou-lhe que havia um lado positivo naquilo tudo, que era a Fada dos Dentes.

- Estás a enganar-me – disse Pedro. Era miúdo, mas não era burro. Apesar de ainda acreditar no Pai Natal com todas as forças do seu ser, estava na idade de questionar tudo o que lhe diziam.

- Não, não estou. Porque faria uma coisa dessas? A Fada dos Dentes existe. Ela tem um exército de ratinhos que te vêem buscar os dentes que caíram, e em troca deixa-te uma prenda. Pergunta ao teu irmão, a ver se não é verdade.

- Pois pergunto mesmo. É que pergunto mesmo – disse Pedro, subindo as escadas. O irmão estava no quarto, a jogar consola. Interrompeu-o:

- Diogo, é verdade que há a Fada dos Dentes?

- Sai daqui, deixa-me jogar.

- Diz-me!

- Sim, sim.

- E o que faz ela?

- Manda os seus ratos buscar o dente que te caiu e deixam-te qualquer coisa. Uma nota, ou assim.

- Porque me haveriam de dar dinheiro em troco de um dente?

- Porque os dentes na terra dos ratos valem muito dinheiro.

- Como os jogadores de futebol?

- Sim, pois – disse Diogo, sem tirar os olhos do ecrã.

Ora, isto fora exactamente o que a mãe lhe dissera. Pedro estava convencido. Voltou a descer as escadas.

- O que faço agora com o dente? Meto-o numa caixa?

- Não, basta colocá-lo debaixo da almofada.

- E como é que me conseguem tirar o dente de debaixo da almofada sem me acordar?

- Porque… é magia.

- Ah.

- Agora vai lavar as mãos para irmos jantar.

Agora aqui estava ele, à hora de se deitar, olhando placidamente para o tecto do quarto à espera que algo acontecesse. Não podia dormir pensando que ia ser invadido por uma trupe de ratos, mas a ideia de receber uma prenda ou até uma nota agradava-o. Levantou mais uma vez a cabeça, enfiou a mão por debaixo da almofada e posicionou melhor o pequeno dentinho. Voltou a deitar-se. Sabia que a coisa não resultaria se não estivesse a dormir, porque, tal como o Pai Natal, os ratinhos não gostariam de certeza de serem apanhados a fazer o seu trabalho. Fechou os olhos e adormeceu sem se dar conta.

Os ratinhos já tinham entrado pela janela quando o acordaram com o seu barulho. As suas patas faziam um ruído arrastado e irritante no parapeito da janela. Pedro abriu os olhos, praticamente em pânico, mas não se mexeu.

- Caramba, não há luz – disse uma minúscula voz.

- Anda com isso, queres que te empurre? – disse uma segunda minúscula voz.

- Por onde descemos?

- Tens ali o cortinado. Agarra-te.

- Ai, merda.

- Cuidado senão acordas o puto. Desce lá isso.

As patinhas dos ratos arranharam pelos cortinados abaixo, e Pedro podia agora senti-los a atravessar o quarto na sua direcção.

- Quantas casas faltam?

- Não vai chegar, já te disse.

- Não foi isso que te perguntei, perguntei quantas faltavam.

- Umas sete, sei lá eu.

- Não vai chegar.

- Pode ser que este tenha mais do que um. Subo eu, fica aqui quieto.

Pedro parou de respirar. As patinhas subiam agora pelo seu cobertor, e podia sentir as pequenas garras do ratinho a furarem pelos seus lençóis. O ratinho entrou por uma pequena frecha entre a almofada e o colchão, ficou de rabo de fora durante uns segundos e voltou a sair.

- Merda, é só um e pequenino.

- Ouve-me, e agora? Fazemos como?

- Deixa-me pensar!

- Quero que me digas o que fazer! – quase guinchou o ratinho em cima do tapete, olhando para o ratinho ao lado da almofada – Não vou perder o meu emprego por causa de uma coisas destas, percebes? Arranja-te! Denuncio-te, se for preciso! O primeiro era teu, não era meu!

- E eu denuncio-te a ti, sua ratazana! O primo era meu mas tu também recebeste a tua parte pelo trabalhinho, e meio queijo da serra não me parece nada mal para manteres a boca fechada!

- Vai meter o nariz na ratoeira, seu filho de um ganda gato! – guinchava agora o ratinho em cima do tapete, agitando os pequenos bracinhos - Tenho quarenta e três filhos pequenos para criar, e não tenho a tua idade! Combinámos que desviávamos aqueles dentes mas só aceitei porque TU me disseste que a Fada não controlava as quantidades! Sabia lá eu que estavam com falta de dentes para a merda do castelo!

- Quem é que te mandou aceitar, então? Mete a ratoeira no rabo.

- Se não te calas eu vou aí e mordo te o…

- Já sei! Vai lá fora!

- Lá fora?

- Vais lá fora e chama os outros. Tive uma ideia. Vamos conseguir os dentes que devemos num instante. Vai lá!

O ratinho atravessou o quarto, desapareceu pelos cortinados acima e momentos depois regressou com uma dúzia de outros ratos, todos eles correndo atrás uns dos outros.

- Ajudem aqui! – disse o rato que estava mesmo ao lado da cabeça de Pedro. Deu um salto, subiu-lhe para cima do nariz e mordeu-o ameaçadoramente. Pedro deu um grito.

- Ao ataque! – disse o rato, mordendo-lhe o nariz outra vez. Os outros ratos treparam pelo cobertor e cobriram Pedro em segundos. Ele gritou outra vez, agitando os braços, fechando os olhos, sentindo a cara coberta por um exército de garras e pelos espessos. Tentou abrir a boca para gritar outra vez, mas um dos ratos enfiou-se entre os seus lábios e abafou-lhe o berro. Um segundo rato entrou-lhe pela boca, enquanto um terceiro se esticava para alargar os lábios.

Pedro não conseguia abrir os olhos. Já não via nada, não ouvia nada, só podia mexer os braços em pânico e procurar cuspir os ratos que lhe entravam pela boca. Sentiu as pequenas garras a enterrarem-se nas suas gengivas, e um dos seus dentes foi arrancado como uma rolha de uma garrafa. Sentiu os pêlos dos ratos ficarem misturados com o sangue quente, e começou a chorar. Queria chamar pela mãe, mas mal se conseguia mexer. Os ratos continuaram o seu trabalho, e Pedro ia sentindo os dentes a sair como que arrancados à força.

- Já os temos! Fuga, fuga! – gritou um dos ratos, molhado até à cintura de sangue e saliva, tirando a cabeça de dentro da boca de Pedro. Os ratos dispersaram, carregando orgulhosamente um dente nas patas pequenas. Atravessaram o tapete na corrida, deixando pequenos ratos de sangue pelo caminho em forma de minúsculas patinhas.

Pedro levantou-se de um salto, cuspiu para o chão e finalmente pôde gritar. Levantou-se da cama, agitou em pânico o colchão e a almofada, no terror de encontrar outro rato. A almofada voou até ao outro lado do quarto, e os lençóis foram arrancados. No meio da confusão e dos gritos, uma azulada nota de cinco euros desprendeu-se da almofada e planou até ao chão do quarto, onde ficou até à manhã seguinte.

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Porque é que eu acho que a criança-prodígio está errada

Sendo fã de um site chamado TED.com, que produz palestras de gente fascinante sobre assuntos variados, vi com curiosidade a palestra de Adora Svitak, uma rapariga de 12 anos obviamente super inteligente e provavelmente sobredotada. Na sua palestra, a pequena defende que os adultos deviam ouvir e aprender com as crianças, e que isso faria toda a diferença para poder mudar o mundo.



Isto vindo de alguém sobredotado não parece grande conselho, uma vez que a maioria das crianças de doze anos não tem grande coisa interessante ou utilitária para dizer aos adultos. Talvez por isso os miúdos andem na escola, a aprender e não a ensinar. Mas Adora tem argumentos de peso: diz ela que coisas terríveis como o Imperialismo, Guerras Mundiais e o Goerge W. Bush (incluído na lista por piada, com certeza) são tudo culpa dos adultos, e não das crianças; e os pequenos, por sua vez, deram-nos personalidades como Anne Frank e um pequeno rapazinho ciclista que, ao que parece, ajudou a juntar milhões de dólares para apoiar o Haiti (milhões esses dados por adultos, não por crianças).

Duvido que estas generalizações sejam muito correctas. Pelo mesmo raciocínio, poderia dizer que os adultos são responsáveis por coisas como a descoberta da penicilina, o desenvolvimento da medicina, ou a construção dos primeiros frigoríficos; enquanto que se as crianças mandassem no mundo toda a gente comia pastilhas elásticas ao jantar.

Adora usa um exemplo flagrante da ingenuidade e estupidez infantil, que na sua opinião é uma coisa boa e a atingir. “Nós crianças não temos medo de estabelecer metas irracionais ou aparentemente impossíveis, como acabar com a fome no mundo ou viver num mundo onde tudo fosse grátis. Quantos de vocês ainda acreditam nesta possibilidade?”. A verdade é que só mesmo uma criança, ou uma Miss Universo, podia olhar para a realidade de hoje em dia e construir a sua vida à volta de tão utópico objectivo. É preciso ter 12 anos para acreditar realmente que a Humanidade poderá atingir tamanhas façanhas. Não há problema em acreditar nisso, muito menos em procurar fazer a nossa parte para nos aproximarmos desse objectivo; mas acreditar que um mundo sem fome é virtualmente impossível não é um problema de mente fechada que os adultos têm; é a conclusão lógica quando se olha para o nosso planeta.

Para Adora, esta capacidade de imaginar objectivos sem limitações é uma boa ideia; e até pode ser. A criatividade é eficiente, quando alguém a deixa idealizar e criar à vontade. Talvez por isso as grandes empresas publicitárias tenham vindo a perceber a vantagem inerente a dar aos seus funcionários um ambiente mais descontraído e estimulante, de maneira a deixar a criatividade o mais “livre” possível. No entanto, isto é pouco eficiente quando lidamos com o mundo real. Mesmo dentro da publicidade, os publicitários podem imaginar qualquer coisa dentro de certos limites. Estes limites são necessários, uma vez que ninguém trabalha com orçamentos ou materiais infinitos e ultra-manejáveis. Lembro-me de ter estudado a “metodologia projectual”, uma espécie de ciclo de regras a seguir quando se cria um projecto artístico; e a primeira coisa a fazer é algo chamado “Recolha de Informação”, de maneira a sabermos de que forma estamos limitados pelos materiais e ideias que vamos utilizar. Isto não serve para nos tirar criatividade, mas sim para a direccionar.

Adora quase compara ainda os adultos com os regimes totalitários, no sentido em que, defende ela, os adultos não deveriam ser capazes de fazer as regras em relação aos miúdos; em vez disso, essas regras, como s regras dentro da escola ou do acesso à Internet, deveriam ser decididas quer pelos adultos quer pelos miúdos, em conformidade de opinião. Isto é provavelmente o maior disparate da palestra, e penso que não é difícil perceber porquê.

A verdade é que há razões para tratarmos as crianças como crianças, e os adultos como adultos. As crianças não estão preparadas, ou por falta de desenvolvimento ou por falta de conhecimento, a lidar com muitos dos problema e desafios que se apresentam à Humanidade; e é da responsabilidade dos adultos a sua educação para que um dia sejam adultos responsáveis. Por alguma razão as crianças não podem votar, não podem beber álcool, não podem casar, não podem conduzir e não podem concorrer à Presidência da República. Será esta uma forma de discriminação? Afinal, diz-nos Adora, a idade não tem nada que ver com os ideais e acções de cada um!

Claro que ninguém está à espera que uma criança de 17 anos, ao fazer anos e atingir a maioridade, ganhe subitamente capacidades que não tinha anteriormente; mas certas fronteiras têm de ser montadas de maneira a preparar os miúdos para certas coisas. Por isso os adultos dão-lhes educação e estabelecem regras que, para uma criança, podem parecer loucas ou irrelevantes, mas que na sua maioria são importantes para o seu desenvolvimento. É por haver adulto a criar os miúdos que os miúdos são alimentados, educados e podem livremente aprender e desenvolver as suas ideias.

Claro que para Adora é fácil falar, uma vez que se trata de uma criança obviamente sobredotada e bastante curiosa e capaz; o mesmo não pode ser dito de todas as crianças de 12 anos. Lá por ser impressionante ver uma criança desta idade falar e pensar assim, não podemos babar-nos e aceitar o que ela diz sem antes destilar as suas mensagens positivas do meio dos outros disparates.

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terça-feira, 6 de abril de 2010

Bate bate levemente (e ainda por cima na Páscoa)


Há certos momentos que marcam a vida de uma pessoa, daqueles que toda a gente refere como “os” momentos. O dia do casamento, tirar a carta, a primeira casa, o primeiro desastre amoroso. Há uns dias atrás aconteceu-me um destes momentos: Um casal de Testemunhas de Jeová bateu à minha porta, e eu fui abrir.

Tratava-se de um homem e uma mulher, na casa dos seus 50 ou 60 anos, de guarda chuva metidos debaixo do braço e Bíblia na mão. O homem, dos dois o único que participou na conversa, trazia uma mala a tira colo, enorme, cheia de folhetos e livros. Assim que abri cumprimentei-os e eles avisaram-me que estavam ali para me falar do que Deus fizera por mim na terra através do seu filho, Jesus. Eu disse que não era crente, mas que estava pronto a ser convencido.

A conversa durou cerca de uma hora, e foi interessante mas estranhamente previsível. Não houve nada que o homem me tivesse dito que eu não esperasse já, desde utilizar passagens bíblicas para justificar o seu ponto de vista até defender como são ridículas as posições científicas.
O homem começou por me dizer que Jesus morrera por mim, e que Deus me dera a sua morte como forma de me oferecer a salvação; prova disso era que a Bíblia referia isto mesmo. Argumentei que não tinha razão alguma para acreditar naquilo, e depois de ouvir muitas passagens da Bíblia perguntei-lhes porque deveria levar o que aquele livro me estava a dizer a sério.

O homem pareceu surpreendido, sorriu-me e disse “Ora, meu amigo, Jesus disse que…” e continuou a ler da Bíblia. Interrompi-o, perguntando-lhe se me podia apresentar alguma razão, fora da Bíblia, segundo a qual eu deveria acreditar que aquele livro tinha sido escrito por Deus. O homem sorriu-me outra vez e leu da Bíblia qualquer coisa como “Este livro é escrito por Deus e pronto”.

“Ok”, respondi, “Mas o que me está a dizer é que a Bíblia diz que a Bíblia está certa. Como posso comprovar isso? Onde está uma terceira fonte, que me permita comprovar que Deus inspirou este livro?”; e o homem fez mais uma citação; da Bíblia, claro.

Desisti. Começámos a falar sobre o porquê da Salvação. Ao que parece, Adão, o primeiro homem, pecou, e por isso Deus enviou o seu próprio filho para nos salvar desse pecado. Disse-lhe que me parecia extremamente injusto levar com as culpas de uma coisa que um antepassado meu fizera há milhares de anos, e a seguir perguntei porque é que Deus, sendo omnisciente, colocara o fruto mesmo à mão de semear, sabendo que ia trazes problemas. O homem partiu para o argumento do livre arbítrio. Como podia Deus proibir que Adão tomasse a sua decisão sem destruir a sua liberdade? “Então Deus sabia dessa decisão?”, “Claro, mas queria que Adão tomasse a sua decisão sozinho”, “Então Deus sabe o resultado das nossas decisões antes de acontecerem?”, “Não”, “Então como pode ser omnisciente?”, “Não, mas ele sabe o que vamos decidir antes de o decidirmos!”, “Então Deus já sabia que Adão ia decidir tomar o fruto, porque é que simplesmente não tirou o fruto do Jardim do Éden?”, “Porque Deus não sabia que Adão o ia tomar, deixando a decisão inteiramente nas mãos do Primeiro Homem”.

Tentei mostrar ao homem que estava a contradizer-se, mas ele desviou a conversa outra vez e começou a falar sobre ciência. “Há muitas coisas que as pessoas hoje em dia acham que sabem mas fora da Bíblia não sabemos nada de nada. Por exemplo, você acredita que o homem veio do macaco?”

Eu disse que obviamente que não, porque os homens e os macacos são primos, descendentes de um mesmo ancestral, e não pai e filho. O homem olhou para mim com um sorriso sarcástico e disse-me que a evolução era mentira, e que se eu tivesse alguma informação sobre isso que ele agradecia muito.

Eu disse-lhe que havia uma série de provas interessantes, começando pelo registo fóssil que demonstrava uma evolução gradual desde primatas até seres humanos, e que os cientistas estavam a construir um modelo cada vez mais realista sobre as origens da nossa espécie; mas o homem interrompeu-me. Ele disse que não acreditava em nada disso porque os cientistas estavam sempre errados. A sua prova? “No meu tempo”, disse ele, “Diziam-me para bebermos muita água, porque fazia muito bem. Ainda no outro dia veio no jornal uma notícia a dizer que os especialistas aconselham a bebermos água apenas quando tivermos sede. Está ver?”. O homem abriu-se num sorriso e numa expressão facial transparecendo “Duh!”.

“Esta casa” continuou ele, apontando para a parede atrás de mim “Existe porque alguém a fez. Você não pode ter uma casa sem ter sido feita por alguém, e assim é com o homem”.
Ao que parecia, a minha casa e um engano de nutricionistas sobre o consumo de água podia destruir o conceito da evolução. Pareceu-me que estava a falar com um potencial prémio Nobel, pelo que lhe perguntei se poderia falar com Deus, da mesma forma que podia falar com o arquitecto e engenheiro que construíra a minha casa. Ele disse que não, e continuou a insistir que a evolução era mentira e que, se eu lhe pudesse explicar alguma coisa sobre isso, agradecia. Falou-me com tamanho sarcasmo e com tamanha certeza que eu não ia poder dizer nada contra ele que em vez de me interromper esperou uma resposta, e eu dei-lha.

Expliquei-me como funcionava a selecção natural, e como uma experiência com E. Coli, a decorrer há 25 anos nos EUA, tinha provado de forma bastante conclusiva que as mutações genéticas beneficiais a uma espécie são transferidas para as gerações seguintes, para benefício da espécie em causa. Por esta altura reparei que ambos, quer o homem quer a mulher, olhavam para mim com olhos de vidro, vazios de conteúdo, como robots acabados de desligar. Perguntei-lhe se sabiam sequer o que era o ADN, na esperança de poder continuar a explicar como o material genético de diferentes espécies apresenta semelhanças proporcionais à sua proximidade na árvore da vida. O homem pareceu acordar de um transe. “Não sei nem me interessa, mas também não preciso de nada disso para saber que a Bíblia está certa”.

Depois de tamanha desonestidade intelectual, percebi que a conversa era inútil. Eu fizera perguntas e interessara-me sobre o seu ponto de vista, mas assim que o homem me pediu explicações e eu lhas dei com toda a descontracção, ele ou desvia a conversa ou contradizia-se. Deu-me um folheto, agradeceu-me a “boa educação” durante a conversa, e cumprimentou-me com um aperto de mão. A senhora que ia com ele também parecia impressionada, talvez não só porque fiz conversa com eles mas também porque não lhes fechei a porta na cara assim que abriram a boca; algo que, penso eu, deve ser raro.

Foi uma conversa interessante, mas bastante vazia. Agora que penso nela, lembro-me de dezenas de coisas que gostaria de ter referido, e que responderiam a muitos dos argumentos que me foram apresentados. O homem era bem falante, simpático, e apesar dos numerosos gafanhotos que cuspiu ao longo da nossa conversa, uma boa companhia; mas deixava transparecer aquilo que mais me assusta no pensamento religioso.

A sua total desonestidade intelectual, que o deixava incapaz de ouvir sequer o que eu estava a dizer a partir do momento em que achava que eu discordaria com ele, abriu-lhe caminho para repetir a ladainha que, mais do que sincera, parecia previamente decorada e repetida vezes e vezes sem conta. Pareceu-me totalmente ignorante de muitas das coisas que tentava atacar, e incapaz de justificar a fé cega e parcial na Bíblia; e pior, quando confrontado com algumas perguntas sobre aquilo em que acredita, ou foi incapaz de as responder por não perceber o que estava a ser perguntado ou simplesmente não queria responder.

Receber aquele casal à minha porta foi positivo, mas ao mesmo tempo triste. Eu estava pronto para ser convencido, e ouvi o que tinham a dizer com atenção mesmo sabendo de antemão muitas das coisas que iriam ser discutidas; e mesmo assim, saí daquela conversa ainda mais afastado da ideia de crer num Deus; não por teimosia ou radicalismo, mas porque as “provas” que aparentemente convencem as outras pessoas me parecem pobres e insustentáveis.

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