quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Voluntários?

Estou a começar a escrever e desenvolver ideias para a PAA, e um dos erros que muita gente comete e que eu quero evitar a todo o custo é fechar-me numa masturbação artística tão elevadamente egocêntrica que perco toda e qualquer objectividade e noção de perspectiva em relação ao meu trabalho. Por isso, inauguro hoje oficialmente o grupo d'As Cobaias.

Eu explico:

O objectivo é angariar voluntários (não precisam de perceber patavina de cinema ou de escrita de argumentos, mas se for o caso até agradeço) para servirem de cobaias (daí o nome) às minhas ideias. Quando tenho um argumento terminado, envio-o ou faço-o chegar aos vários elementos do grupo, cada um lê (quando lhe apetecer e se quiser), e de seguida dão-me feedback. Isto inclui críticas, sugestões, e todo o tipo de comentários.

E se é para fazerem só elogios não me interessa. "Está muito giro" é bonito de se ouvir, mas não me ajuda em nada. Por isso, tenham em consideração que se quiserem ser uma d'As Cobaias terão de jurar a pés juntos que a vossa opinião será sincera. E se isso incluir "Acho que este argumento está pavoroso" ou "Eu sei que gostas muito desta personagem, mas ela é simplesmente inacreditável e imbecil", seja.

Quem se quiser voluntariar pode deixar-me um comentários aqui no blog, ou contactar-me através do meu mail, renato.rocha16@gmail.com. Ou através do Facebook. Ou pessoalmente, se me virem na rua.

Agradecido pela atenção,

O Autor

Smith e as Sereias - episódio 26

Previamente, em Smith e as Sereias: KABOOOM!


Smith acordou e abriu os olhos. A primeira coisa que viu, ao seu lado, foi um peixe desfalecido, aberto ao meio como que por um talhante com convulsões. Os seus interiores eram agora exteriores, espalhados pelo chão. Mais à frente, um atum tinha um pedaço de pedra espetado numa guelra, e pedia com gritos para alguém o acudir.

Smith tentou levantar-se, e por momentos pensou que, numa reviravolta irónica do destino, a sua quase cicatrizada ferida no ventre estaria hoje outra vez aberta com algum pedaço de madeira ou de pedra. Não estava. Smith olhou em volta, e percebeu que não estava a ouvir nada. Era como nos filmes. Um leve zumbido, lá muito ao fundo, era só. Mais peixes estendidos, sereias a nadar desgovernadas, pó e algas levantadas ocultando a identidade das figuras.

- Ariel! – gritou, sem saber bem porquê. Queria saber onde estava Ariel. Queria vê-la. A ela, completa, não às suas entranhas espalhadas e misturadas com os canapés e com o champagne entornado. Uma sombra moveu-se nas poeiras em suspensão.

- Smith – uma voz, a tossir.

- Ariel!

- Smith!

Agarraram-se. Smith olhou a figura de frente. Era Jack.

- Sou o Jack – disse ele.

- A Ariel? Onde está? – perguntou Smith.

- Smith? – uma voz, à esquerda.

- Ariel!

A figura negra aproximou-se e os seus contornos definiram-se. Era Lilith.

- Caramba – resmungou Smith – Onde está a Ariel?

- Também estou feliz por te ver vivo, obrigado – disse Lilith, sacudindo a poeira de cima da barbatana.

- Quero encontrar a Ariel. Ariel!

- Smith? – outra voz.

- Não é ela, com certeza – disse Jack.

À direita, a figura dona da voz aproximava-se. Era mesmo Ariel.

- Ariel! – gritou Smith.

Abraçaram-se.

- Estás bem?

- Torci a barbatana, com certeza – disse ela. Tinha vidros no cabelo e algumas feridas nos braços.

- O nosso pai? – perguntou Lilith.

- Ele está bem, estava a ajudar o Namor a levantar-se – respondeu Jack.

- Eu avisei. Foram os atlantes – disse Smith. Ariel olhou para ele seriamente. Sabia que tinha razão. O estranho não era a informação em si, nem a bomba; era Smith ter razão em alguma coisa.

A poeira começou a assentar. Figuras iam-se levantando. Alguns peixes soltavam choros, outros gritos histéricos de quem viu algum conhecido desfeito pela bomba. A poeira assentou mesmo. Todas as criaturas na sala olharam umas para as outras, e depois todas olharam para Poseidon. O Rei dos Mares estava de pé, agarrado a um pulso e com as pontas das barbas chamuscadas.

- Há que tratar dos feridos e enterrar os mortos – declarou, na sua voz profunda.

- Eu já ouvi isso em algum lado – comentou um salmão, historiador especialista em Desgraças em Contexto Marinho.

- Alguém me ajude! – gritou um carapau, esmagado entre duas tábuas.

- Ariel! Lilith! Reunam imediatamente a Junta Médica! – ordenou Poseidon.

- Até já – disse Ariel, nadando apressadamente atrás de Lilith. Smith viu-se sozinho ao lado de Jack, que baixou a cabeça.

- Que foi? – perguntou Smith.

***

Era óbvio, pensava eu, mas mesmo assim Smith insistiu e perguntou-me, “Que foi”? O que foi?

- O que foi é que a busca pela Rose vai ser com certeza cancelada – disse eu. Olhei em volta, à medida que a confusão se espalhava. Peixes nadavam de um lado para o outro, desesperados, sem saberem dos seus entes queridos. Peixes gordos procuravam as suas amantes mais novas, peixes gordas procuravam os seus maridos ainda mais gordos. Uma pescada, de peruca e boca decorada com um batom cor de rosa, chorava desconsoladamente. E agitava as barbatanas. E gritava, “Onde está o meu amor”?

A minha veia de artista sensível rebentou, e comecei também eu a chorar. Por pouco tinha escapado a uma bomba, semanas depois de ter sobrevivido a um naufrágio. E mesmo que as pessoas feitas parvas me perguntassem porque é que não tínhamos dividido a porta flutuante entre os dois, eu continuaria a responder: porque amo a Rose. E morreria por ela mais uma vez. E meter-me-ia num submarino tecnologicamente avançado com um monhé que cheira a loja de indianos só para a procurar. O submarino…

- Quê? – perguntou-me Smith, distraído pela confusão.

Exactamente. Distraído pela confusão. Como toda a gente.

Comecei a correr.

***

Lá ia ele, salão abaixo, a correr como um doido.

- Hei! Onde vais? – perguntei-lhe. Mas Jack não me ouviu. Acelerou, até. A mim pouco me importava, queria era procurar a Ariel e ver se precisava de ajuda.

“Caramba”, pensei. “Estou mesmo a ficar altruísta”.

***

- Foi trovoada – defendeu um tripulante.

- És parvo ou quê? – respondeu outro com maus modos – Trovoada debaixo de água? Isto foi uma flatulência de baleia.

- Ou uma explosão – disse um terceiro.

- Dentro de água? Uma explosão? És parvo ou quê? – disse o segundo tripulante.

- Isto é uma história de ficção. Nós, no fundo, também não existimos realmente – filosofou o primeiro tripulante.

- Tu és mazé parvo. É o que é.

Os três tripulantes do Nautilus estavam debruçados sobre uma das janelas do submarino, estacionado atrás do Palácio, tentando perceber o que tinha feito vibrar o solo aquático. Até ali, nenhuma pista. Foi aí que bateram à porta do submarino e um dos tripulantes torceu o pescoço para pesquisar quem era o visitante.

- Eia, parece aquele actor famoso…– disse ele, com o nariz colado no vidro.

- Um actor famoso, aqui debaixo de água – o tripulante com maus modos levou as mãos à testa – És mesmo parvo.

E parvo foi o outro tripulante que desceu ao porão do submarino para abrir a porta ao visitante, que atrás das costas escondia uma comprida espada dourada e, estampado na cara, um sorriso de menino bonito.

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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Só para perceberem porque é que o blog anda meio abandonado

Lista de prioridades:

1. As aulas

2. A dança

3. Fazer os trabalhos para a escola

4. Preparar a FCT e a PAA

5. Alimentar-me

6. Respirar

7. Dormir algumas horas

8. Tratar da minha higiene pessoal

9. Queixar-me por não ter mais horas para dormir

10. Queixar-me por estar sempre a queixar-me demasiado e com isso perder tempo que podia aproveitar para relaxar

11. Escrever no blog

Smith e as Sereias - episódio 25

Previamente, em Smith e as Sereias, Poseidon sugere a Smith e ao moço louro que de vez em quando se chama Jack uma viagem dedicada (finalmente) a encontrar Rose, a namorada perdida. Essa viagem será feita no submarino mais conhecido de todos nós: O Submarino Amarelo, dos Beatles. Estou a brincar. É o Nautilus, o submarino de um certo capitão monhé.


- Não gosto de submarinos – disse Ariel. Estavam no quarto, ela e Smith, sentados na cama e a conversar sobre a possível viagem épica do quarteto.

- Eu nem sei o que isso é, só andei de barco – respondeu Smith – Mas é a forma que temos de encontrar a namorada do Jack.

- Tu queres mesmo encontrar essa rapariga.

Smith olhou-a nos olhos.

- Porque é que dizes isso?

- Porque não é a primeira vez que insistes. E além disso não vamos propriamente passear às traseiras do palácio. É uma viagem que pode durar muito tempo. Sabe-se lá onde anda a rapariga, se é que ainda está viva.

- Viva deve estar, o Jack contou-me que a deixou a boiar em cima de uma porta e que por isso é que morreu.

- Não percebi.

- É que a água estava fria e ele queria salvá-la. Morreu congelado, com queixo apoiado na porta.

- E porque é que não se foram revezando?

- Isso – disse Smith, agitando um dedo – é uma óptima pergunta.

***

- Hoje estamos aqui reunidos para nos despedir de uma campanha corajosa e emocional – declarou Poseidon, no pódio do salão de banquetes. Ao seu lado direito estava Namor, do outro a enorme figura do monhé. Eu e Ariel jantávamos juntos, ao lado de Jack e Lilith. Jack continuava a desenhar mais uma das suas centenas de reproduções do desenho original de Rose, só que agora com uma cauda de sereia em vez de pernas. Eu achava aquilo esquisito, e por pouco não lhe disse que se calhar ele começava a ver-se seduzido por mulheres-peixe. Ou então estava a ficar doido. Não, isso não.

- É com prazer que anuncio a partida do Nautilus, comandado pelo nosso indiano favorito…

Houve gargalhadas. O monhé chamado Nemo permaneceu quieto e com ar de quem acabou de ser pisado no metro.

- … E com o objectivo de encontrar a noiva de um dos nossos mais recentes companheiros aqui do palácio: Tom Cruise.

Houve palmas. O moço louro agradeceu, e perguntou a Lilith num murmúrio porque raio é que ninguém percebia o seu nome. Uma pescada enorme ao meu lado perguntou em voz alta se se referiam à Katie Holmes. O marido, um bacalhau gordíssimo, arrotou e não respondeu.

A festa de despedida estava populada por figuras grotescas. Eram peixes gordos e importantes, uns com medalhas, outros com laços ou brasões de famílias importantes. Seguravam em copos minúsculos, com bebidas fortes. Eram acompanhados pelas suas senhoras, algumas delas tão mais novas que parecia suspeito, com enormes laços à volta das guelras e batom de alva vermelha do Ártico na boca.

- O meu pai decidiu convidar todas as grandes figuras do Atlântico norte para esta festa – explicou-me Ariel ao ouvido, enquanto um espadarte gordíssimo passava a nadar ao meu lado a mastigar um aperitivo – Toda a gente admira muito o Capitão Nemo e é uma forma de trazer uma maior estabilidade política à posição do meu pai.

- Pensava que o teu pai era o tipo musculado de trinta metros e dono dos oceanos. E que não devia satisfações a ninguém.

- E não deve. Mas toda a gente lhe pede satisfações na mesma, porque todos estes peixes se acham muito importantes. E o meu pai alimenta-lhes a inocência.

- Por alguma razão em especial?

- Claro. É por causa dos atlantes.

- Quem são esses?

- Não sabes? O que não faltou foi referências nos últimos episódios.

- Que é isto? – perguntei, apontando para uma bandeja que um carapau de lacinho me apresentava.

- Canapés, sinhor – disse o carapau numa voz fininha.

- Com quê?

- Caviar, sinhor.

- Isso é aquele pão de forma barato dos supermercados – afirmei, apontando para o canapé; e era verdade. O carapau ficou nervoso.

- Mas isto é pão de forma chique, sinhor. Repare, foi cortado em forma de concha. E este em forma de estrelinha do mar. O pão de forma dos pobres tem a forma que vem na embalagem, mas este não.

- Ah, ok – disse eu, esclarecido. Meti três canapés na boca – O que estavas a dizer?

Ariel continuou:

- Os atlantes e o meu pai têm uma relação de ódio quase oficial. O meu pai manda em todos os oceanos, menos no Império Atlante. Isso a ele pouco lhe importa, mas para os atlantes é uma espécie de castração emocional. Ficaram doidos quando o meu pai lhes destruiu o seu pequeno continente.

- Porque é que fez isso?

- Vai ler o episódio anterior.

- Ok – engoli o resto dos canapés mastigados e levantei as mãos – Chega. Chega de piadas e referências aos episódios. Já farta.

- Tens razão – Ariel encolheu os ombros e tirou uma bebida cor de laranja de cima da bandeja de um peixinho pequeno que ali ia a nadar – De qualquer forma, zangaram-se os dois impérios e agora só há turras entre os dois. A última e aliás única tentativa de conciliação foi o meu casamento com o Namor, que como todos sabemos correu lindamente – Ariel levou a bebida à boca.

- Então suponho que os atlantes estejam furiosos com a ideia de ver o Namor e o teu pai assim. Como que casados.

- Exactamente.

- E não podem tentar alguma coisa?

- Alguma coisa?

- Sei lá. Um atentado.

- Ui, que exagero – disse Ariel com um sorriso – Eles não são assim tão bárbaros.

***

Retirado do jornal Diário Anémona,

ESCANDALOSA EXPLOSÃO NO PALÁCIO REAL | A homossexual corte de Poseidon sofreu ontem à noite um severo golpe no seu "Orgulho Gay". Numa festa que, segundo repórteres sérios do nosso jornal, foi dedicada à projecção de filmes gay e lésbicos, uma bomba colocada debaixo de uma mesa repleta de doces elitistas rebentou, transformando doze dos vários barões, condes e capitalistas da corte de Poseidon em filetes desfarelados. Pelo menos sete sereias também ficaram feridas. Poseidon não quis prestar declarações, muito menos o seu amante semi-nu Namor. Uma equipa de médicos foi destacada ao local, incluindo o Dr. Polvo, para tratar os feridos. As autoridades dizem que a bomba foi, com certeza, um atentado terrorista, mas dificilmente para matar Poseidon uma vez que a mesma foi colocada demasiadamente longe do trono onde este se sentava. O nosso jornal não quer ser parcial, mas se o Rei dos Mares tivesse batido a barbatana não se teria perdido nada.


Todas as Terças e Quartas, mais episódios de Smith e as Sereias.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Momento de Poesia - "Poesia Contemporânea"

Sentir. É ser
É ser-se
Sentir.
.Fazer.
.Agir.
Porque não
A dor
A Dor
de sentir
nos olhos
na boca, nos cabelos
(nos teus cabelos)
Pente, cabo, corda
.jogo de palavras, sensações, estímulos
Estimulados
Estimulantes
Uma paisagem, fria
Calculada
Frita
Insonsa
Croquete
Sentir. É ser. É dar. É fazer.
Fazer a cama
A lasanha
Pasta
Italiano
Um italiano
(com bigode)
O homem é a medida das coisas
Das emoções
Dos gritos
Um grito num corredor
(vazio, como eu)
Vazio como todos
Flatulência
Sabias?
Saber
É ser
E Poder
Ecoponto
As embalagens no amarelo
Os vidros no verde
Verde, como uma planta
És uma planta?
SOU
És
Só que não sabes
a raiz presa na terra e a cabeça presa nos sonhos,
caídos como cartas
as cartas da VIDA
O frio, o calor, o vento. os braços à volta dos ombros. um beijo no escuro
É tudo, é nada
E o que é deixa de ser
Para que o que nunca foi,
Passe a ser também
tão real como o que foi,
mas que deixou de ser
e a fazer
Azul
o céu.

as nuvens


o céu e as nuvens,
(só)

Smith e as Sereias - episódio 24

Previamente, em Smith e as Sereias, o Profeta Salmão vai ao Império Atlante falar com o respectivo Rei, e vemos como os atlantes até têm uma boa razão para odiar Poseidon.


O Profeta Salmão e o Rei Atlante estavam de pé, lado a lado, observando uma gigantesca projecção holográfica comemorativa de um aniversário da destruição da Atlântida. À esquerda, uma reprodução de Poseidon, enorme, violento, mau e com um sorriso sádico, dominava o enquadramento. Cada um dos espigões do seu tridente atravessava o estômago de um inocente e sofredor bebé atlante; e, com o seu pé enorme, pisava a cabeça de uma mulher e de dois idosos. Uma onda gigante varria a cidade, arrastando também ela bebés que choravam e agitavam os bracinhos. As torres da cidade, ao fundo, caíam como peças de dominó.

- Esta foi a reprodução mais realista que conseguimos – declarou o Rei – de um dia de horrores inimagináveis. Poseidon destruiu a nossa cidade, humilhou-nos perante um mundo que rapidamente nos esqueceu, e foi o responsável pela queda do maior Império do planeta.

- E é homossexual, ainda por cima – completou o Profeta Salmão.

- Compreende agora o tamanho da minha humilhação? Serei gozado pelos meus inimigos políticos. O meu filho, príncipe do Império, na cama com o nosso maior inimigo!

- O meu caro Rei tem inimigos políticos?

- Qualquer grande governante os tem. São seres mesquinhos, que acreditam em ideais como a democracia ou a liberdade de pensamento. Veja bem que pensam ser capazes de pensar por eles mesmos!

- Ateus, portanto. E homossexuais.

- É importantíssimo restaurar a confiança dos atlantes na figura da autoridade, e nada melhor que basearmo-nos em falsa ou distorcida informação para assim levantar suspeitas, intolerâncias ou discussões em relação a quem pensa de forma diferente da nossa. O Profeta é religioso, saberá com certeza do que estou a falar.

- Meu Rei, ainda bem que se refere ao meu peixe. Vim aqui ao seu palácio exactamente para lhe oferecer os meus préstimos, assim como os da Pescada, na sua luta contra o deboche que ocorre no Palácio de Poseidon. Chega de vergonhas!

- E assim que humilhasse o meu filho e assim restaurasse a confiança e respeito dos atlantes por mim, poderia finalmente vingar-me do inimigo eterno do Império – reflectiu o Rei Atlante, olhando para cima. Na imagem holográfica, Poseidon abria e fechava a boca, mastigando os fémures de meninos inocentes.

- De acordo? – o Profeta Salmão estendeu a barbatana ao Rei.

- De acordo, meu caro – O Rei cumprimentou o Salmão com um aperto de mão-barbatana e sorriu maliciosamente.

- Curioso – acrescentou o Salmão – Lembrei-me agora mesmo que este momento já me tinha sido revelado anteriormente pela Pescada, numa grande visão cheia de luzes e música celestial. Sabe como é, premonições de profeta. E senti na altura que apertaria a mão a um grande rei, forte, corajoso, muito competente...

- Ora essa, meu caro!

- Não, não, juro-lhe pela Pescada! – houve uma pausa – E como tenciona derrubar Poseidon e a sua corte de sodomitas? A julgar por esta representação artística – o Salmão apontou para o holograma – Poseidon sabe defender-se e bem.

- Nada temas, profeta. Acontece que tenho certos contactos no interior do Palácio Real de Poseidon.

- Quem?

- Você.

- Ah, pois é.

- E mesmo que o meu caro Profeta falhe, por alguma razão, a sua missão de me trazer constantes e actualizadas informações sobre a corte inimiga, tenho um outro agente infiltrado que poderá com certeza fazer o trabalho sujo de que necessitarmos.

- Esta conversa está a tornar-se muito estereotipada, meu Rei.

- Hoje sinto-me um vilão de BD. Acontece-me, às vezes.

***

O Profeta Salmão subiu ao seu púlpito na Igreja do Palácio Real de Poseidon. A reunião com o Rei Atlante tinha corrido bem, e agora estava na altura de dar uma última oportunidade àquelas sereias depravadas. Se não as conseguisse convencer que o seu querido pai, a criatura que mais amavam no mundo, era na verdade um verme vergonhoso por se ter apaixonado por outro homem, então nunca o conseguiria e mais valia desistir. No entanto, não podia esquecer-se da importância da sua posição como Profeta Real: estava numa posição próxima o suficiente de Poseidon para lhe sacar informações importantes. E começava a pensar que seria uma boa aquisição para a sua igreja um daqueles projectores holográficos. Imaginava-se já, gordo e resoluto, gritando a palavra da Pescada enquanto uma projecção holográfica decorria atrás de si, mostrando figuras de pecadores nojentos a arder nas grelhas da perdição eterna. E tudo em tempo real, e com música a condizer!

- Bons dias, minhas filhas, e que a Pescada esteja convosco. Hoje… - O Profeta levantou os olhos. A Igreja estava praticamente vazia. Uma sereia morena e gorda estava na primeira fila, a coçar o interior de uma orelha. Mais meia dúzia de sereias tinha-se espalhado pelo resto dos bancos, sentada com a postura de quem está numa sala de espera há muitas horas.

- Hoje vou falar-vos sobre os ateus – disse o Salmão, erguendo a cabeça gorda – Os ateus são as pessoas que garantem a cem por cento e com todas as certezas do planeta que não só a Pescada não existe, como a Pescada é uma criatura vil e horrenda. São criaturas tristes, porque tiveram um forte trauma na infância e por isso ficaram zangados com Deus. Podem ter batido com a cabeça, ou viram o animal de estimação a ser atropelado. São pessoas que atribuem a Deus toda a culpa por tudo o que lhes acontece. Eles defendem que a Pescada não existe, e que isso é provado pela Teoria da Evolução. E que qualquer pessoa que seja religiosa é burra. Se virem um ateu na rua, não lhe falem, porque pode bater-vos. Perceberam?

O sermão estava a correr-lhe mal. A sereia gorda na primeira fila tinha adormecido, e estava a apenas alguns centímetros de deslizar pelo banco e cair de queixo no chão. As outras sereias pareciam estar a conversar, trocando risinhos.

- Afinal hoje vou falar-vos sobre a dissidência – cortou o Salmão, com frieza – E sobre onde vão parar as pessoas que não vêm à Igreja, ou que não tomam atenção ao que lhes digo.

- Grelhador! – gritou uma sereia ao fundo, se levantar a cabeça de um jogo de cartas.

- Perdão?

- Vamos parar ao Grelhador. Acertei?

- Acertou, minha filha, mas não é só i…

- Já podemos ir embora?

O Profeta suspirou.

- Deixo-vos só com alguns flyers sobre o novo Concurso Freira da Pescada deste ano – O Profeta Salmão pousou um pequeno maço de papelinhos em cima do banco à frente do pódio - Relembro que é uma oportunidade única para as jovens promíscuas como vós tentarem a vossa sorte num convento fechado, onde a vossa função será unicamente orar e servir a Pescada.

- Ou seja – resmungou outra sereia – já podemos ir embora.

***

- Pessoalmente – disse Namor – acho má ideia.

- Porquê? – perguntou Poseidon. Estava sentados lado a lado na sala do trono, a comer uns mexilhões peruanos como lanche.

- Despedires o Profeta parece demasiado severo. Pode enviar uma mensagem errada de intolerância religiosa. Além disso, perderíamos uma das personagens mais divertidas.

- E isso que te importará? O Salmão acha-nos um nojo. Não tenciono dar guarida a um fundamentalista. Ele é que é o intolerante, não sou eu.

- Bem visto, bem visto – reflectiu Namor – Mesmo assim…

- Tu no fundo gostas é de ouvir as suas loucuras. Acho que hoje o sermão era sobre a forma como a Pescada nos salva todos os dias de uma morte terrível.

- Ainda bem para nós – comentou Namor, com um sorriso.

E o Profeta não foi despedido.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 23

Previamente, em Smith e as Sereias, Namor muda-se para o palácio e apresenta-se em público como amante de Poseidon. O Profeta Salmão, oficial religioso da corte, está indignado. Ainda mais previamente do que isso, foi introduzido o poderoso Império Atlante, o supra-desenvolvido e glorioso antagonista de Poseidon e a sua corte.

- Deixa-me ver se percebi bem – resmungou o Rei Atlante com o seu forte sotaque açoriano, no topo do seu glorioso trono hidráulico movido a hidrogénio, e à volta do qual se distribuía um grupo de criados semi-nus, segurando folhas de palmeira, jarros de fruta, colares de ouro e fragrâncias exóticas – O meu filho Namor está neste momento a viver no Palácio do meu inimigo mais desprezado?

- E dormem com certeza na mesma cama, ofendendo a tradição ancestral, caro Rei – disse o Profeta Salmão. Segurava numa barbatana a sua cópia do Evangelho da Pescada, e na sua boca gorda e olhos brilhantes percebia-se a sua enorme frustração e terror; uma quase tristeza e desapontamento. Tinha a cabeça e as guelras enfiadas numa espécie de aquário cheio de água, uma vez que no Palácio Atlante, enorme construção no centro do Império Atlante, respirava-se pelo ar e não pela água; aliás, respirava-se pelos pulmões, isso sim, e não pelas guelras. Uma maravilhosa conquista da engenharia atlante tinha permitido criar uma bolha de ar gigante que envolvia a cidade e permitia aos seus milhões de habitantes viverem harmoniosamente nas profundezas oceânicas, e ainda assim respirarem o mais puro e fresco ar atlântico.

- Inacreditável – comentou o Rei, mexendo nas suas longas barbas – Uma uva, imediatamente.

Um dos criados ao seu lado dobrou-se todo numa complexa e ágil imitação de uma árvore ao vento e levou um cacho de uvas à boca do Rei. O Rei arrancou cinco uvas com os dentes amarelados e mastigou-as incessantemente.

- É uma afronta para mim e para a minha corte – rosnou o Rei Atlante, com um murro no trono – Uma humilhação.

- E uma ofensa perante a Pescada, recordo-lhe! – acrescentou o Salmão.

- Sim, e isso. Obrigado por ter vindo até aqui avisar-me dessa depravação.

- O prazer foi meu, caro Rei.

- O Império Atlante procurará uma vingança à altura.

- Com certeza que a Pescada, na sua infinita benevolência, o ajudará a esmagar Poseidon e as suas sereias depravadas da forma mais esmagadora possível – comentou o Salmão.

- Sábias palavras, profeta. Sábias palavras. Junta-se a mim para jantar?

***

Mais de dez mil anos antes, um outro Rei Atlante, também ele de barbas, também ele com cara de poucos amigos, ergueu uma lança afiada no ar e gritou:

- Atlantes! Hoje é o dia da nossa absoluta conquista! O mundo helénico cairá aos nossos pés!

A sua voz foi ampliada por um complicado sistema digital, e, multiplicada várias centenas de vezes, saiu de centenas de megafones espalhados à volta do navio real. Ecoou pela superfície do Atlântico, e foi chegar a todos os 3 mil navios de guerra atlantes, estacionados como pequenos carros num supermercado. As embarcações cobriam a água até ao horizonte, todas elas enormes construções verticais cheias de canhões, espingardas, lanças, espigões, binóculos, visões telescópicas e centenas e centenas de guerreiros atlantes, jovens, violentos e impressionáveis, empilhando-se nas janelinhas dos barcos e agitando as armas com uma satisfação infantil. As 3 mil embarcações esperavam em silêncio, escutando o seu rei.

- Marcharemos como uma chuva de balas e de flechas sobre a ridícula Atenas, e esmagaremos como a insectos aqueles animais! O que é o seu Parténon ao lado dos nossos arranha céus? O que são as suas togas ao lado das nossas roupas anti-transpiração? E o que raio fará Péricles que nenhum outro Rei Atlante antes dele não tenha já feito pela sua cidade? Está na hora! Que os seus musculados e antropomórficos deuses protejam a pérola da sabedoria europeia, se o conseguirem! Em frente, capitães dos mares! Em frente!

As 3 mil embarcações vibraram com os aplausos, os rufos, os risos, os bate-pés, os gritos entusiastas. O Rei Atlante levantou a lança outra vez e fez avançar o seu navio real, na frente na armada, através dos dois enormes Pilares de Hércules. O mar mediterrâneo esperava-os, como uma banheira tranquila. Os macacos de Gibraltar pararam de saltar e de catar piolhos para ver passar aqueles estranhos hominídeos com a mania das grandezas.

Foi aí que as águas se abriram, e os gritos entusiastas viraram outra coisa.

Um tridente gigantesco, feito do mais dourado dos materiais, irrompeu das ondas do mar; atrás dele, um punho com dez metros de altura. Atrás do punho, um braço musculado. Pela altura em que a cabeça de um homem barbudo e azulado saía das águas e olhava, com duas esferas brilhantes que eram os seus olhos do tamanho de um homem, para a enorme armada atlante, todos os previamente corajosos jovens de lanças na mão gritavam como meninas assustadas, tentando a todo o custo inverter a marcha dos seus tanques aquáticos. Alguns atiravam-se para a água, como se a nado tivessem melhores hipóteses que num barco cheio de munições. A figura de Poseidon ergueu-se até à cintura, e a sua cabeça parecia tocar os céus.

- Olá, Abrucanhéder – rosnou a voz do deus marinho. O Rei Atlante começou a suar.

- Afasta-te, deus helénico! Deixa-me passar! – gritou o Rei Atlante Abucanhéder. Sentiu-se estúpido ao dizer aquilo, porque no fundo quem exige a um gigante de sei lá quantos metros que se afaste não lhe devia ter de pedir autorização.

- Não entrarás do Mediterrâneo. Não destruirás a cidade de Atenas. Regressem às vossas casas, meus caros.

- Senhor, deixe-se disto… - implorou amedrontadamente um dos generais – Ande lá embora…

- Jamais! Quem pensa este tipo que é, para nos impedir a passagem?

- Eu sou o Rei dos Mares e dos Oceanos. A minha companheira de Olimpo Atenas pediu-me para vos pregar uma pequena rasteira, e cá estou.

- Canhões a postos! Uma salva! Pela Atlântida! – berrou o Rei para o seu megafone. Os guerreiros continuavam a gritar desesperadamente. Alguns barcos tentavam já fazer marcha atrás, e iam embater uns nos outros desordenadamente. Só meia dúzia de navios dispararam realmente uma salva. As balas atravessaram os céus e foram embater no peito azulado de Poseidon. Ele coçou-se no local da explosão e olhou para o Rei Atlante.

- Estavas a dizer…?

- Os atlantes nunca recuarão!

- Voltem para as vossas casas e deixem-se dessa ideia de conquistar o mundo…

- Senão o quê?! – berrou o Rei, furioso.

Poseidon levantou o tridente.

Uma onda formou-se, pequenina. Depois cresceu. Depois cresceu mais.

A alguns quilómetros de distância, uma criança atlante brincava com um aviãozinho na praia quando, parando para perscrutar o horizonte, perguntou:

- Mãezinha, é ali ao fundo que o papá está a defender o Império?

- Sim – disse a mãe com um sorriso, virando a página da sua revista sobre física de materiais – Porquê, meu querido?

- Então o pai está ali em cima daquela onda gigante?

A mãezinha tirou os olhos da revista e olhou para o mar. Depois gritou.


Todas as Terças e Quartas, novos episódios desta estimulante série (que agora começa a ficar cada vez menos novela mexicana. E isso é bom)

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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

domingo, 17 de outubro de 2010

Moda

Susana abriu os olhos. O despertador tocara com um leve e suave assobio, e a voz feminina anónima disse:

- Bom dia, Susana. São sete horas e trinta minutos.

Susana bocejou demoradamente e levantou-se da cama, afastando de cima das pernasos cobertores prateados reguladores de temperatura. A luz artificial acendeu-se.

- O pequeno almoço estará pronto em 15 minutos. A água do banho estará pronta em aproximadamente 30 segundos. 29. 28. Contagem a decorrer.

Susana ajeitou o cabelo e puxou-o para trás. Levantou-se e caminhou através do quarto, contornando a cama quadrada. Ali, todos os cantos eram curvos e as linhas suaves. Todo o mobiliário tinha linhas curvas, elegantes e suaves. Tudo era branco e neutro.

- Contagem a decorrer. 20.

Susana despiu o seu pijama de tecido sintético plastificado. Fora comprado numa loja do centro da cidade, e fora caro. Todas as mulheres da cidade tinham um. Era confortável, só por isso. Susana dobrou-o cuidadosamente em pousou-o em cima de uma cadeira branca, simples e curvilínea. Entrou no cubículo do chuveiro, que se fechou como a porta de uma nave voadora, daquelas que havia no centro da cidade. O cubículo tinha a forma de um ovo. O chuveiro verteu água quente sobre as costas de Susana, que mergulhou lá o cabelo. O vapor de água era ventilado suavemente.

- Susana, o pequeno almoço está pronto – disse a voz cristalina.

Susana saiu do chuveiro e vestiu um robe prateado, da mesma cor e tecido que o pijama. O seu corpo secou automaticamente. Foi até à cozinha. Uma torradeira em forma de ovo, branco e sem botões, cuspiu duas torradas amarelas e perfeitas. A manteiga não tinha gordura, e a faca era uma peça única, brilhante, afiada e simples. Susana comeu. Foi até ao quarto, e um dos cabides deslizou para fora do armário e pendurou um vestido branco mesmo à sua frente. Susana vestiu-o.

- Bom dia de trabalho, Susana – disse a voz. Susana saiu. As luzes artificiais desligaram-se lentamente depois da porta se fechar.

Na rua, o dia começara. A luz artificial caída do painel que cobria a cidade iluminava as ruas absolutamente limpas. Ecrãs cobriam parte dos prédios brancos, sem janelas, arredondados nos cantos, altos e cilíndricos. Outras mulheres com o mesmo penteado que Susana passavam por ela, atravessavam a rua, saiam e entravam nos prédios, conduziam ou estacionavam carros. Homens parecidos, todos com fatos brancos e chapéus de abas, misturavam-se pela multidão. Nos ecrãs até agora apagados, surgiu uma mensagem; e a mesma voz anónima do quarto de Susana soou pelos altifalantes, surgindo de todos os lados.

- Bom dia. As luzes marcam os 28 graus centígrados. A moda para hoje é: vermelho.

Todas as mulheres a andar pela rua pararam automaticamente, e olharam para o próprio pulso direito. Susana fez o mesmo, ao mesmo tempo que todas as outras. Tocou levemente sobre o seu relógio de pulso, e rodou um pequeno botão pelo menu de selecção de cores. Escolheu “vermelho” e tocou no relógio mais uma vez. Todas as mulheres à sua volta faziam o mesmo. Os seus vestidos alteraram-se. Como se uma lata de tinta fosse despejada lentamente sobre eles, todos passaram do mais neutro branco para o mais vivo vermelho. Susana repetiu o toque no relógio, mas o seu vestido permaneceu branco. Tocou outra vez no relógio, voltou a seleccionar a cor vermelha, e o vestido passou de branco a verde, depois a amarelo e depois a lilás, até regressar ao branco inicial. Por esta altura as mulheres e os homens à sua volta paravam para a observar. Uma gota de suor deslizava pela testa de Susana enquanto ela perdia a compostura e carregava no relógio com o polegar com violência. O vestido mudava ocasionalmente de cor, ora azul, ora vermelho só por uns segundos, ora laranja, ora branco.

- Desculpe – disse uma senhora, que se aproximou de Susana com cuidado, como se ela estivesse doente – Está tudo bem?

Susana, envergonhada, corou e sorriu apressadamente:

- Sim, é só o meu Alternador.. Deve estar avariado… - desculpava-se. A mulher que a abordou sorriu falsamente para ela, e afastou-se. Outras mulheres paravam de a observar e prosseguiam caminho, ignorando-a. Susana suava e tremia. Desistiu de tentar arranjar o relógio, pelo que regressou a casa.

- Bem vinda de volta, Susana. O seu alternador parece estar avariado. Deseja que contacte um técnico?

A voz feminina, saída das colunas no tecto. Susana voltou a tentar os botões e o seu vestido parecia um arco-íris com flutuações emocionais.

- Sim, por favor – pediu à voz. Tocaram à porta.

- Deseja que a porta seja aberta, Susana?

- Sim.

A porta deslizou suavemente para o lado e um homem vestido de branco entrou na sala de Susana.

- Bom dia, o meu nome é Jorge e sou o seu técnico para hoje. Qual parece ser o problema?

Susana agitou as mãos na direcção do vestido, que continuava a mudar de cor vezes e vezes sem conta. Sorriu envergonhada.

- Nada tema, Susana. Vamos já resolver o assunto.

O técnico aproximou-se de Susana e pediu-lhe autorização para agarrar no seu Alternador. Susana assentiu. O técnico inseriu códigos e algoritmos, fez uma reformatação temporária e investigou sobre possíveis sequelas no sistema. Terminou. O vestido de Susana cobriu-se de vermelho e assim ficou.

- Que alívio – disse ela – Muito obrigada. Quanto lhe devo?

- Susana, deseja fazer a transferência do montante em causa automaticamente?

O técnico encolheu os ombros. Susana disse:

- Claro, pode ser.

Susana saiu à rua, estava atrasada para o emprego. Atravessava a rua quando os ecrãs se iluminaram com enormes letras coloridas. ÚLTIMA HORA. Susana e todos os transeuntes pararam para ver. O noticiário mostrava uma mulher despenteada, no meio de uma rua, atirando o seu Alternador para o chão e gritando algo indefinido. O seu vestido era verde. Houve um murmúrio desconfortável. As viaturas abrandavam para ver. Susana engoliu em seco.

- Acontece muitas vezes – comentava alguém – Pessoas que pensam que podem definir o que é bom ou mau. Com a mania de rasgar com as convenções e ser rebeldes.

- É a juventude que temos – disse um homem de idade, vestido de vermelho.

- Ignorem-na, é com certeza uma louca. Olhem para aquele verde. Tonalidade horrenda – dizia uma mulher, vestida de vermelho.

O noticiário terminou, e a voz feminina encheu a rua.

- Boa tarde a todos. A cor da moda é: amarelo.

Susana e todos os transeuntes precipitaram-se para o seu alternador. Susana parou. À sua volta, fatos e vestidos ganhavam a cor amarela.

- O que faço? – perguntou.

Chamou um táxi com um aceno acelerado. Uma viatura parou à sua frente.

- Para onde?

- Para a rua 3 – disse Susana, sentando-se.

***

Na rua 3 estava uma pequena multidão à frente da mulher despenteada, que partira o Alternador. Alguém tinha chamado a polícia, e dois agentes conversavam calmamente com a mulher vestida de verde. Durante a viagem de táxi a moda tinha mudado outra vez, e toda a gente vestia lilás. Susana saiu do táxi, pagou, e correu a aproximar-se da confusão. Não reparou que levava ainda o vestido vermelho. As pessoas viravam a cabeça para olhar para ela.

- Olha outra – diziam alguns.

- Mas que se passa com as pessoas hoje em dia? – perguntava um homem de fato cor de laranja.

Susana aproximou-se da mulher de vestido verde, ofegante. A mulher olhou para ela e para o seu vestido vermelho e algo nos seus olhos se alterou. Foi como se brilhassem.

- O meu nome é Catarina – apresentou-se – Quer juntar-se a mim?

Susana viu-se subitamente o centro das atenções de toda a rua. Olhou em volta. Respirou fundo. Agarrou no Alternador, desapertou-o do pulso e atirou-o ao chão.

- Bonita cor, essa – disse Catarina com um sorriso aberto.

- Sempre gostei de vermelho – respondeu Susana.

- Como assim, sempre gostou? – perguntava um homem a um canto – Não saberá ela que aquela cor já não se usa?

Os ecrãs iluminaram-se outra vez. A voz feminina:

- Boa tarde a todos. A moda para este fim de tarde é: azul.

Susana com o seu vestido vermelho, Catarina com o seu vestido verde. À sua volta, a cidade inteira carregava nos botões e pintava-se de azul. Um rapaz novo, a alguns passos de Susana, permaneceu laranja.

- Homem, que está a fazer? – perguntou uma senhora de idade – Esqueceu-se de carregar no botão.

O rapaz novo aproximou-se de Susana e de Catarina. Agarrou no Alternador. Atirou-o ao chão.

- Que ódio a estes anarquistas – resmungava a senhora de idade.

- Quem são vocês para destruir a harmonia da nossa sociedade? – perguntava aos berros uma mulher ao fundo.

- Deixem-nos, são doentes – disse o mesmo homem de há bocado – Não saberão já que aquelas cores não se usam?

***

Duas horas depois. Susana e Catarina eram o centro de um grupo de cinquenta pessoas. No decorrer na tarde tinha surgido a ideia de adoptarem a cor verde, todos eles. A cor de Catarina, a primeira a rebelar-se. A cidade assistia em desacordo e escárnio à situação. Minuto e minuto, mais gente se juntava ao grupo. A moda era azul, e eles formavam uma pequena mancha verde no centro da rua.

Catarina estava a ser entrevistada para um canal de televisão. A jornalista perguntava-lhe o que era aquilo, para que servia tanta rebeldia.

- É uma questão de afirmação – explicou Catarina. Atrás de si, as pessoas de verde oscilavam a cabeça, diziam que sim – As cores instituídas vão contra aquilo que somos e gostamos. Queremos a liberdade de poder vestir o que nos apetecer.

Os ecrãs iluminaram-se. A voz feminina:

- Boa noite a todos. A moda para este serão é: verde.

Houve um silêncio profundo. A multidão carregou toda nos seus Alternadores, a rua ficou subitamente coberta de verde. Catarina empalideceu, Susana também. E agora, e agora? O rapaz novo, o terceiro do movimento, apanhou o Alternador que tinha no chão e carregou em alguns botões. O seu fato ficou amarelo. Catarina fez o mesmo. Susana pediu-lhe o Alternador emprestado. Uma pequena mancha de amarelo apareceu no centro da rua. Mais e mais gente se aproximava, recusando o verde, abraçando o amarelo.

Os ecrãs iluminaram-se. A voz feminina:

- Boa noite a todos. Pedimos desculpa pelo erro. A moda para este serão é: amarelo.

- A nova cor do nosso movimento é o lilás! – gritou Catarina, e à sua palavra os restantes membros do grupo compartilhavam Alternadores e mudavam a sua roupa para o lilás.

Mais e mais pessoas, uns cantando. Outros agitavam a roupa lilás no ar. Viva os lilases, viva os lilases.

Eram centenas, agora. Rua abaixo.

- Pela liberdade de escolha! – gritavam uns.

- Eu quero vestir as cores que eu quiser! – gritavam outros.

Trezentas pessoas, lutando pela sua personalidade, lutando pela sua individualidade. Trezentas individualidades, formando uma indistinta mancha lilás.

Os ecrãs iluminaram-se. NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA. As imagens transmitidas mostravam um homem vestido de preto, partindo o seu Alternador no meio da Rua 8. Catarina e Susana olharam, fascinadas, sem saber se a individualidade daquele era a mesma que a individualidade delas.

- E agora? – perguntou alguém – Como é?

- De preto! – gritou Catarina e Susana ao mesmo tempo. Todos os lilases carregaram nos botões, formaram uma mancha preta.

Trezentas pessoas, lutando pela sua individualidade.

Trezentas individualidades, formando uma indistinta mancha preta. Todas elas, desafiando o sistema instituído. Todas elas, desafiando quem lhes quer impor cores ou formas de pensar. Todas elas únicas e individuais. Todas elas. Juntas, numa mancha preta. Todas elas, expressando a sua individualidade numa massa disforme e homogénea.