sexta-feira, 27 de maio de 2011

Razoavelmente Além

- Eu juro-te – murmurou a alma, leve e imaterial – Eu também não queria acreditar, mas juro-te que é verdade.

- Sendo assim quero vê-la – disse uma segunda alma – Eu… Sabes o quanto sinto a falta do meu filho.

Esta alma tinha morrido há apenas sete minutos e meio, o que na linguagem corrente da eternidade e da imaterialidade ilógica na qual as almas se encontravam, significava que estava morta há um nanosegundo e, simultaneamente, desde o início do Universo. As noções de tempo ultrapassavam-na. O tempo, aliás, era coisa que ali não existia. Nem espaço. Apenas uma necessidade enorme de ser, e desse ser extravasar toda a sua própria imaterialidade. Ela era péssima a explicar o que sentia, mas sentia; e não precisava de o explicar, porque por alguma razão o sentir era suficiente. Sentia-se o próprio Universo, Tudo no Mundo, e descobrira por experiência própria, desde que morrera há sete minutos e meio, que todas aquelas tretas new age sobre o além estavam, na verdade, assustadoramente próximas da realidade; o que quer que isso da realidade se tratasse. Era quase como se alguém andasse a falar com… Não. Isso era demais.

- Como te digo, eu também era céptico – disse a primeira alma – Mas depois vi-a, ali, nas calmas, debitando informação que ela nunca poderia saber se não estivesse realmente a falar com a minha neta.

- Que tipo de coisas? – perguntou a segunda alma, esperançosa.

- Que era uma menina muito bonita, e que era a luz dos meus olhos.

- Bem, isso não é surpreendente – disse uma terceira alma, que na sua imaterialidade imaterial se tinha juntado à conversa – Que raio de avô serias tu se a tua neta não fosse bonita aos teus olhos?

- Ela tinha um tumor facial. Acredita que tinha razões para a achar feia, mas não. Ela era uma menina lindíssima – a alma parecia comovida.

- E essa tal adivinhou que a tua neta tinha um tumor facial?

- Ela não adivinha nada – resmungou a primeira alma – Ela sabe. Ela fala com os vivos, não me perguntes como.

- Eu quero ir – disse a segunda alma – quero que ela me diga que está tudo bem com o meu filho.

- É claro que te vai dizer isso, é exactamente o que queres ouvir – comentou a terceira alma. Mas as outras duas almas já se tinham afastado, progredindo na não-distância da infinita qualidade misteriosa do universo cósmico-quântico.

Chegaram junto da alma que falava com os vivos na perfeita altura em que outras cinco almas, também ali reunidas, choravam comovidas. Tinha recebido notícias maravilhosas: os seus bisnetos estavam bem de saúde e gostavam muito deles. A família de almas afastou-se, e a alma que falava com os vivos disse:

- Vêm porque querem saber como estão os vossos amados lá em baixo, no mundo.

- Oh meu deus – disse a segunda alma, impressionada. E acrescentou baixinho – Como é que ela sabia?!

- É isso mesmo – disse a primeira alma – O que lhe podes dizer sobre o filho desta senhora?

- Bem, deixa-me reunir as energias…

Houve uma pausa, que na quântica contagem do infinito espacial pareceu um segundo e sete eternidades e meia ao mesmo tempo.

- Vejo um rapaz lindíssimo – disse finalmente a alma.

- Oh meu deus! É ele! É o meu filho Carli…

- Carlinhos, exactamente. É ele, é. E tem… Espere… Ele está a dizer-me que gosta muito de si, e que sente a sua falta.

A alma começou a verter imateriais lágrimas, doces de tanto Amor.

- Diga-lhe que eu sinto a falta dele, e para que não se esqueça de ajudar o Jonas sempre que ele precisar!

- O seu filho diz-me que o Jonas também sente a sua falta, e que gosta muito de si.

- O cão disse isso?

- Não, não… Espere… As energias dizem-me que o seu filho se enganou. Que disparate, diz ele, claro que o Jonas é o cão.

- Sempre foi um distraído, o meu menino!

- Mas ele diz-me que desde que morreu, ele tem pensado muito em si. E que sente a sua presença durante todo o dia.

- Menos quando ele vai tomar banho – disse a segunda alma, comovidíssima – Aí dou-lhe privacidade total. Nunca fui uma mãe galinha!

- Ele diz-me que não senhor, foi uma mãe maravilhosa.

- Diga-lhe… Diga-lhe que o amo e… E que lhe devo dizer algo importante…

Houve uma pausa, daquelas que nem são um segundo nem são uma eternidade, etc, etc.

- Ele nunca soube quem era o seu pai… E tenho medo da reacção dele quando descobrir que… O pai dele é o Mateus. Diga-lhe! Não aguento mais viver com este segredo!

A alma que falava com os vivos engoliu em seco, se é que tal é possível a uma alma.

- Ele, ele… Ele está emocionado e…

- Emocionado? Ele odeia o Mateus!

- Sim, claro, ele disse-me isso já há pelo menos meia hora! Está emocionado só que no mau sentido. Triste, e um pouco desapontado. Mas ele ama-a muito, e tem muitas saudades suas! E agora as energias estão a reduzir-se não sei bem porquê, e…

- Espero! Tenho de lhe fazer uma pergunta importantíssima!

- Oh não – murmurou a alma que falava com os vivos – As energias estão enfraquecidas devido à, sabe, flutuação cósmica e, hum, do universo e assim.

- Oh…

- Mas o seu filho ama-a muito, e tem saudades suas – disse a alma – Nunca se esqueça disso.

Deuses e Deusas

- Oh, não estás a perceber – disse Deus, agarrando melhor na árvore e virando-a ao contrário – Ela fica presa ao chão, por isso não voa. E como está há aos milhões, não sei o número ao certo mas hei-de ter registado algures.

- E come o quê? – perguntou Grishgy, uma criatura transdimensional com um comprido manto de estrelas e focinho de leão, tocando ao de leve no tronco como quem toca num bicho asqueroso.

- Fotões.

- Essa é outra que não percebo bem – comentou I, o Senhor de Tudo, e a sua voz estendeu-se a todos os núcleos de todos os átomos de todas as galáxias de todos os Universos.

- Luz – explicou Deus – Imagina uma série de bolinhas brilhantes, pronto. É luz. A minha primeira invenção. Linda, brilhante, incrivelmente quente e reconfortante até no dia mais…

- Ouve – interrompeu-o …, a indizível senhora dos céus abertos – Eu não caio na tua conversa. Quero que me expliques sem rodeios o porquê de tudo isto.

Apontou com a sua invisível mão para uma mesa de proporções infinitas, estendida à sua frente e à frente de todos os outros Deuses e Deusas. Em cima dela, milhares de biliões de pequenos elementos de uma criação que cheirava a mofo. Aqui uma árvore, acolá um mexilhão, a um dos cantos os planetas, noutro lugar uma coisa chamada Amor. Tudo catalogado com cartõezinhos, por ordem alfabética.

Deus limpou o suor da testa e baixou os braços, colocando a árvore sobre a mesa.

- Tudo o que podia correr mal, correu mal.

- Ah! – gritou um Deus, lá atrás, rindo-se com gosto – Eu avisei! Que tipo de idiota cria luz? Luz!

- Essa também me ultrapassa – disse Grishgly – O teu é o único Universo com luz. Desapontante.

- O meu plano inicial tinha tudo para correr bem.

- O do casal? – perguntou … .

- E anjos que cantavam e dançavam – acrescentou numa voz grossíssima um Deus em forma de bebé gordo – Eu lembro-me deles. Eram um amor.

- Um deles desautorizou-me e caiu.

- Eu li isso no jornal, mas não quis acreditar – Abug, o infinitamente informado senhor de uma dimensão longínqua de nome impronunciável, cruzou os braços – Eu pensei que eras omnisciente e que podias fazer tudo.

- Como aliás qualquer Deus com brio deveria ser – comentou I.

- E era, mas decidi colocar tudo em piloto automático e ver como corria.

Houve algumas gargalhadas vindas do meio da multidão de Deuses.

- Improvisaste, portanto – continuou I – diz-me, como resolveste a questão da incredulidade?

- Escrevi um livro.

Mais gargalhadas. Um dos deuses, em forma de crocodilo, parecia estar com sérias dificuldades em respirar e rir ao mesmo tempo.

- Ouve-me – começou …, esforçando-se para não ser condescendente – Eu percebo que esta tenha sido a tua primeira tentativa, e assim. E que ainda estejas a apanhar-lhe o jeito. Mas há coisas que alguém te tem de dizer desde logo.

Estendeu um dos seus braços impossíveis de definir e agarrou num objecto invisível e imaterial que estava em cima da mesa. Deus olhou para os próprios pés, como o mau aluno cujo trabalho colado a cuspo é inspeccionado pelo professor.

- Isto – disse …, referindo-se à doença que segurava na mão – é injustificável.

- Eu pensei que…

- Que o sofrimento alheio despertava o amor e a compaixão entre os seres? – perguntou um deus em forma de batata.

- Oh! – Deus soltou uma gargalhada amarela – Não! Claro que não!

Houve uma pausa. O deus em forma de crocodilo soltou uma risada profunda e longa, e deixou-se cair de cócoras para não rir à gargalhada.

- Como rascunho até nem está mal – interveio 6546, uma entidade matemático-abstracta – Estas leis naturais estão bastante bem afinadas. Um pouco complicadas, talvez.

- No meu Universo – disse I – as constantes físicas são todas em números redondos. Muito mais simples. Mas isto sou eu, que não percebo nada disto.

Mais gargalhadas, e algumas vozes concordantes. Deus parecia tentar enterrar a cabeça dentro do tecido do cosmos.

- Mas no geral – continuou 6546 – Gosto do que fizeste com as formigas e com os polvos. E penso sinceramente que a regra de ouro é uma ideia divinal.

- Falemos, então, de rectângulos agradáveis à vista, e outros elementos imprescindíveis a um Universo funcional – resmungou Pagu, Deus Imaterial de Algures e Todo o Lado – Que mais tens para nos mostrar?

- Tenho umas coisas lindíssimas feitas em minha honra, chamam-se catedrais.

- Essas coisas bicudas?

- Reparem nos vitrais!

- Para que servem?

- Para estar.

- Para estar…

- Sim, para estar mais perto de mim.

- E porque não vais tu para perto de quem te construiu essas coisas?

- Porque acredito no poder da fé. Os homens amam-me, e não é porque lhes facilitei a vida. É exactamente porque eles devem acreditar em mim, e Amar-me.

- Que sádica necessidade é essa de seres amado? – perguntou o deus com forma de crocodilo, e houve um silêncio pesado, interrompido aqui e ali por um deus a tossir, ao longe. Deus tinha os olhos cravados de lágrimas.

- Alguém quer comprar o meu universo ou não?

Houve uma pausa.

- Ah, que se dane – o deus em forma de crocodilo avançou, de mãos no seu bolso inter-celestial, e atirou umas quantas unidades de energia cósmico-imaterial para a mão de Deus – Fico com essa coisa redonda – leu a etiqueta – “Marte”.

- É uma óptima escolha – disse Deus antes de morder o lábio inferior – Perfeito para passar férias com a família e amigos.

O deus em forma de crocodilo afastou-se, com Marte debaixo do braço, e os outros deuses seguiram-lhe o exemplo, aproximaram-se da mesa e escolheram meia dúzia de coisas, mais por cerimónia do que por necessidade. As amêijoas foram, a luxúria e o conceito de felicidade também. O Homem ficou lá.

domingo, 22 de maio de 2011

Novas Oportunidades (ou: Estou ofendido)

Irrita-me. Irrita-me dizer-se que Passos Coelho “ofendeu meio milhão de portugueses” por criticar o programa Novas Oportunidades. Irrita-me porque ele não ofendeu ninguém, ofendeu o programa; irrita-me porque ele tem razão: já agora seria bom saber se o programa está mesmo a resultar, ou seja, se os diplomas que atribuem a torto e a direito têm mérito, e ajudam, de facto, a malta a melhorar de vida.
E irrita-me por outra coisa. Irrita-me que uma pessoa possa, com a sua experiência pessoal de vida, receber o mesmo grau de educação que eu, e outros milhares de estudantes que não tiveram de escrever uma auto-biografia e ser entrevistados para terminar os estudos. Tivemos de investir tempo, dinheiro (dos nossos pais), horas de sono, horas de trabalho, e doze anos das nossas vidas. Queixam-me porque as pobres pessoas que vão às novas Oportunidades no final do dia e durante uns tempos estão, agora, ofendidos, porque de súbito alguém sugeriu que aquilo que andam a fazer não lhes serve para nada. Na prática; porque em teoria ganham uma palmadinha nas costas, e um diploma, e saem de sorriso na boca.
Seja; falemos então da minha geração, aquela que tira o seu ensino secundário sobrevivendo a um sistema educativo idiota que também nos dá certificados, mas não a educação que devia. Falemos da minha geração, que carrega cargas horárias idiotas, disciplinas inúteis, professores incompetentes, e exames que nos definem o futuro. Falemos da minha geração, que sairá do secundário e da faculdade com suor na testa e cujos certificados de educação serão inúteis, por estarem diluídos numa pasta homogénea . A geração que terá de pagar as contas (todas; financeiras, económicas, ambientais, culturais) com os poucos materiais que lhe são dados pelos Grandes, e que terá de tomar as rédeas de um mundo que está a morrer e de uma humanidade que não sabe o que faz.
E a educação, o mais fulcral dos elementos de uma sociedade, a matéria prima para uma evolução decente, é ignorada e democratizada de forma tão idiota que perde o seu valor. Agora, tudo de todos tem valor. Se a experiência de vida me vale o secundário, então para quê ler Saramago, e estudar os Impressionistas, e aprender álgebra? Não será óbvia a razão por que nós, mais do que qualquer participante nas Novas Oportunidades, deveríamos estar hoje ofendidos?
No dia em que toda a gente puder tirar o secundário (ou, quem sabe, e porque hoje em dia é importante dar às pessoas novas oportunidades para lhes melhorar a vida) ou um curso superior em alguns meses, é o dia em que a minha, e todas, as gerações estão tramadas. E enquanto a minha geração não se preocupa muito com isso, nem devia, as gerações dos nossos pais e dos nossos avós preocupam-se em enganar-se mutuamente, e enganarem-nos a nós. Obrigadinho. A todos vós, obrigadinho.

sábado, 21 de maio de 2011

Ainda cá estou

Estamos todos, pelo menos a maioria, fora aqueles que morreram por acidente ou por infelicidade; ou os dois.

Hoje o mundo iria acabar. Certo, falta meia hora para o final do dia e a destruição pode estar a alguns minutos. Como se destruirá o mundo em meia hora parece-me difícil. Como resposta, uma série de pessoas extremamente sérias vem-me explicar as complexidades inerentes ao processo.

Pelos vistos nós não percebemos a data. O mundo não ia acabar hoje; o fim do mundo simplesmente começa hoje. Seguem-se 5 meses de destruição e de morte e de todas essas coisas, e só então, em Outubro, dia 21, aí sim, agora é que é, o mundo irá acabar. Mas quem sou eu para estar a dizer estas coisas? Dê-se espaço aos especialistas:

By God’s grace and tremendous mercy, He is giving us advanced warning as to what He is about to do. On Judgment Day, May 21st, 2011, this 5-month period of horrible torment will begin for all the inhabitants of the earth. It will be on May 21st that God will raise up all the dead that have ever died from their graves.

Deus, na sua misericórdia infinita, decidiu que em vez de acabar com o mundo já, assim a quente e sem mais nem menos, vai dar-nos 5 meses de sofrimento horrendo e só depois disso acabar com o mundo. Porque ele é bom para nós. Percebem?

Ficam avisados. Eu prometo por minha honra que aqui virei ao blog no dia 22 de Outubro para vos avisar que Deus mudou de ideias.



sexta-feira, 13 de maio de 2011

Este post é um milagre

Era uma vez um grupo de pessoas totalmente objectivas que se reuniram à volta de uma construção gigantesca e desnecessária para mostrar o quanto são bons seguidores.

Eis senão quando aparece um arco-íris no céu.

O grupo de pessoas ficou completamente louco. Aquele fenómeno absolutamente natural era, sem dúvida nenhuma, a demonstração empírica da existência da sua interpretação pessoal de um pai celestial.

Mas não gozemos com coisas sérias. Esses seguidores têm todo o direito às suas certezas profundas. Quem serei eu para criticar alguém que cai de joelhos a chorar quando vê um arco-íris no céu?

Vergonha

Um homem e uma mulher casaram-se. Ela era Testemunha de Jeová, ele não; ele converteu-se, tiveram uma filha, viveram três anos juntos. Entretanto, porque ele “tinha alguns amigos”, a esposa começou a desconfiar de algo realmente terrível, e que ameaça agora o equilíbrio emocional de uma família e de uma criança inocente.

O marido podia ser homossexual!

E, como estamos num país sério e as pessoas em questão parecem realmente desenvolvidas no que toca às suas capacidades cognitivas, o marido sentiu a necessidade de vir ao programa “A Tarde é sua” para ser submetido a um teste de polígrafo (que, a propósito, é largamente rejeitado como forma de realmente detectar mentiras) para provar a todo o país que não senhor, não é homossexual.

E a TVI, porque é uma televisão decente, dedica largos minutos a esta relevante e inspiradora história.

Tenho vergonha de viver num mundo, e num país, onde a reunião de circunstâncias tão inacreditáveis e asquerosas como estas é sequer possível.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

O armário

Um narigudo, um cristão e um tipo de cabelo elegante estavam, em conjunto e sob forte calor, a tentar tirar um móvel incrivelmente robusto, alto e largo de dentro de casa.
Disse o narigudo, carpinteiro responsável pela construção do móvel, que assim não iam lá, e propunha que fosse ele sozinho a resolver a questão. Para isso puxou as mangas para cima, encheu o peito de ar, mostrou músculo e limpou o suor da testa.
O tipo de cabelo elegante, tremendo, quase deixou cair do armário. Pessoas maiores e mais fortes que ele faziam-lhe confusão, e deixavam-no com tonturas. Talvez por isso quase largou uma das pontas do armário e ele embateu numa esquina. O narigudo musculado deu-lhe uma belinha ali mesmo, à frente de todos, e o resto dos habitantes da rua observaram tudo aquilo com um murmúrio de aprovação. “Isto sim é de homem”, comentavam, enquanto viam o armário no mesmo sítio.
O cristão aproveitou para dizer que tinha uma proposta que ia ao encontro das necessidades e problemáticas da ombreira da porta, do armário, dos outros armários da casa e, repare-se, das pedras da calçada. O narigudo também lhe saltou em cima com uma belinha, rasgou-lhe uns papéis, acusou-o de ter comprado dois submarinos há uns anos, e a população murmurou sussurros de aprovação impressionada. O narigudo era forte, e não é que estava mesmo a conseguir segurar o armário sozinho? E melhor, estava a aguentá-lo quieto, sem sair do mesmo sítio!
Do outro lado da rua, um velhote de boina e um rapazito de barba por fazer riam abertamente, agitavam os braços, diziam “por aí não, empurra para cá, mais à esquerda, menos à direita”, atiravam pedrinhas pequenas e chalaças; e alguns dos aldeões juntaram-se a eles, entusiastas, porque sentiram que aqueles dois sim, estavam mesmo a ajudar a tirar o armário de casa.
Assim ficaram mais umas horas e assim continuam, se o armário sai ou não para a rua é pergunta para depois.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

História em Segundos #4

Às vezes os dias longos passam mesmo muito devagar e eu sinto que o tempo é coisa que já não existe. Pelo menos para mim. Para os outros talvez, que correm de casa para a rua e de rua para casa, sempre a olhar para o relógio como um certo coelho da minha infância. Para mim não. Para mim o tempo é uma construção daqueles que o têm a perder. Gente como eu vê o dia e a noite a virem e irem como se nada fosse, parte integrante da vida e das coisas, e não como quadrículas num calendário. As flores morrem-me à frente e não sinto pena por mim mas por elas, que coitadas possuem apenas seivas modestas e vivem para florescer e murchar. Mal têm a consciência da sua própria situação, espetadas num vaso e a ele limitadas, agarradas à terra, que até um mísero pardal ou pombo de rua pode voar e é mais livre. As plantas também nascem e crescem e morrem como nós, mas a elas pouco lhes importa exactamente porque não sabem o que é isso do tempo. Não sabem que vão morrer, nem que nasceram, nem reflectem sobre se serão relembradas. Esses sentimentos são invenções humanas, de primatas que se amam demais uns aos outros para poderem murchar com dignidade. Como uma planta.