Há certos momentos que marcam a vida de uma pessoa, daqueles que toda a gente refere como “os” momentos. O dia do casamento, tirar a carta, a primeira casa, o primeiro desastre amoroso. Há uns dias atrás aconteceu-me um destes momentos: Um casal de Testemunhas de Jeová bateu à minha porta, e eu fui abrir.
Tratava-se de um homem e uma mulher, na casa dos seus 50 ou 60 anos, de guarda chuva metidos debaixo do braço e Bíblia na mão. O homem, dos dois o único que participou na conversa, trazia uma mala a tira colo, enorme, cheia de folhetos e livros. Assim que abri cumprimentei-os e eles avisaram-me que estavam ali para me falar do que Deus fizera por mim na terra através do seu filho, Jesus. Eu disse que não era crente, mas que estava pronto a ser convencido.
A conversa durou cerca de uma hora, e foi interessante mas estranhamente previsível. Não houve nada que o homem me tivesse dito que eu não esperasse já, desde utilizar passagens bíblicas para justificar o seu ponto de vista até defender como são ridículas as posições científicas.
O homem começou por me dizer que Jesus morrera por mim, e que Deus me dera a sua morte como forma de me oferecer a salvação; prova disso era que a Bíblia referia isto mesmo. Argumentei que não tinha razão alguma para acreditar naquilo, e depois de ouvir muitas passagens da Bíblia perguntei-lhes porque deveria levar o que aquele livro me estava a dizer a sério.
O homem pareceu surpreendido, sorriu-me e disse “Ora, meu amigo, Jesus disse que…” e continuou a ler da Bíblia. Interrompi-o, perguntando-lhe se me podia apresentar alguma razão, fora da Bíblia, segundo a qual eu deveria acreditar que aquele livro tinha sido escrito por Deus. O homem sorriu-me outra vez e leu da Bíblia qualquer coisa como “Este livro é escrito por Deus e pronto”.
“Ok”, respondi, “Mas o que me está a dizer é que a Bíblia diz que a Bíblia está certa. Como posso comprovar isso? Onde está uma terceira fonte, que me permita comprovar que Deus inspirou este livro?”; e o homem fez mais uma citação; da Bíblia, claro.
Desisti. Começámos a falar sobre o porquê da Salvação. Ao que parece, Adão, o primeiro homem, pecou, e por isso Deus enviou o seu próprio filho para nos salvar desse pecado. Disse-lhe que me parecia extremamente injusto levar com as culpas de uma coisa que um antepassado meu fizera há milhares de anos, e a seguir perguntei porque é que Deus, sendo omnisciente, colocara o fruto mesmo à mão de semear, sabendo que ia trazes problemas. O homem partiu para o argumento do livre arbítrio. Como podia Deus proibir que Adão tomasse a sua decisão sem destruir a sua liberdade? “Então Deus sabia dessa decisão?”, “Claro, mas queria que Adão tomasse a sua decisão sozinho”, “Então Deus sabe o resultado das nossas decisões antes de acontecerem?”, “Não”, “Então como pode ser omnisciente?”, “Não, mas ele sabe o que vamos decidir antes de o decidirmos!”, “Então Deus já sabia que Adão ia decidir tomar o fruto, porque é que simplesmente não tirou o fruto do Jardim do Éden?”, “Porque Deus não sabia que Adão o ia tomar, deixando a decisão inteiramente nas mãos do Primeiro Homem”.
Tentei mostrar ao homem que estava a contradizer-se, mas ele desviou a conversa outra vez e começou a falar sobre ciência. “Há muitas coisas que as pessoas hoje em dia acham que sabem mas fora da Bíblia não sabemos nada de nada. Por exemplo, você acredita que o homem veio do macaco?”
Eu disse que obviamente que não, porque os homens e os macacos são primos, descendentes de um mesmo ancestral, e não pai e filho. O homem olhou para mim com um sorriso sarcástico e disse-me que a evolução era mentira, e que se eu tivesse alguma informação sobre isso que ele agradecia muito.
Eu disse-lhe que havia uma série de provas interessantes, começando pelo registo fóssil que demonstrava uma evolução gradual desde primatas até seres humanos, e que os cientistas estavam a construir um modelo cada vez mais realista sobre as origens da nossa espécie; mas o homem interrompeu-me. Ele disse que não acreditava em nada disso porque os cientistas estavam sempre errados. A sua prova? “No meu tempo”, disse ele, “Diziam-me para bebermos muita água, porque fazia muito bem. Ainda no outro dia veio no jornal uma notícia a dizer que os especialistas aconselham a bebermos água apenas quando tivermos sede. Está ver?”. O homem abriu-se num sorriso e numa expressão facial transparecendo “Duh!”.
“Esta casa” continuou ele, apontando para a parede atrás de mim “Existe porque alguém a fez. Você não pode ter uma casa sem ter sido feita por alguém, e assim é com o homem”.
Ao que parecia, a minha casa e um engano de nutricionistas sobre o consumo de água podia destruir o conceito da evolução. Pareceu-me que estava a falar com um potencial prémio Nobel, pelo que lhe perguntei se poderia falar com Deus, da mesma forma que podia falar com o arquitecto e engenheiro que construíra a minha casa. Ele disse que não, e continuou a insistir que a evolução era mentira e que, se eu lhe pudesse explicar alguma coisa sobre isso, agradecia. Falou-me com tamanho sarcasmo e com tamanha certeza que eu não ia poder dizer nada contra ele que em vez de me interromper esperou uma resposta, e eu dei-lha.
Expliquei-me como funcionava a selecção natural, e como uma experiência com E. Coli, a decorrer há 25 anos nos EUA, tinha provado de forma bastante conclusiva que as mutações genéticas beneficiais a uma espécie são transferidas para as gerações seguintes, para benefício da espécie em causa. Por esta altura reparei que ambos, quer o homem quer a mulher, olhavam para mim com olhos de vidro, vazios de conteúdo, como robots acabados de desligar. Perguntei-lhe se sabiam sequer o que era o ADN, na esperança de poder continuar a explicar como o material genético de diferentes espécies apresenta semelhanças proporcionais à sua proximidade na árvore da vida. O homem pareceu acordar de um transe. “Não sei nem me interessa, mas também não preciso de nada disso para saber que a Bíblia está certa”.
Depois de tamanha desonestidade intelectual, percebi que a conversa era inútil. Eu fizera perguntas e interessara-me sobre o seu ponto de vista, mas assim que o homem me pediu explicações e eu lhas dei com toda a descontracção, ele ou desvia a conversa ou contradizia-se. Deu-me um folheto, agradeceu-me a “boa educação” durante a conversa, e cumprimentou-me com um aperto de mão. A senhora que ia com ele também parecia impressionada, talvez não só porque fiz conversa com eles mas também porque não lhes fechei a porta na cara assim que abriram a boca; algo que, penso eu, deve ser raro.
Foi uma conversa interessante, mas bastante vazia. Agora que penso nela, lembro-me de dezenas de coisas que gostaria de ter referido, e que responderiam a muitos dos argumentos que me foram apresentados. O homem era bem falante, simpático, e apesar dos numerosos gafanhotos que cuspiu ao longo da nossa conversa, uma boa companhia; mas deixava transparecer aquilo que mais me assusta no pensamento religioso.
A sua total desonestidade intelectual, que o deixava incapaz de ouvir sequer o que eu estava a dizer a partir do momento em que achava que eu discordaria com ele, abriu-lhe caminho para repetir a ladainha que, mais do que sincera, parecia previamente decorada e repetida vezes e vezes sem conta. Pareceu-me totalmente ignorante de muitas das coisas que tentava atacar, e incapaz de justificar a fé cega e parcial na Bíblia; e pior, quando confrontado com algumas perguntas sobre aquilo em que acredita, ou foi incapaz de as responder por não perceber o que estava a ser perguntado ou simplesmente não queria responder.
Receber aquele casal à minha porta foi positivo, mas ao mesmo tempo triste. Eu estava pronto para ser convencido, e ouvi o que tinham a dizer com atenção mesmo sabendo de antemão muitas das coisas que iriam ser discutidas; e mesmo assim, saí daquela conversa ainda mais afastado da ideia de crer num Deus; não por teimosia ou radicalismo, mas porque as “provas” que aparentemente convencem as outras pessoas me parecem pobres e insustentáveis.
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