Há um momento nos desfiles dos concursos Miss Universo que
já faz parte do cânone satírico. A concorrente, que até ali só teve de mostrar
que se sabe bronzear e consegue andar de saltos altos, é convidada a abrir a
boca e dizer alguma coisa. Como todos sabemos, é normal ouvir-se coisas como
“Sou contra a fome no mundo” ou “Vou usar o título de Miss para ajudar a acabar
com a Guerra”. Lembrei-me disto porque estive a ver a transmissão em directo da
Manifestação da CGTP.
Está bem que seja difícil confundir um rouco Arménio
Carlos com uma bela tailandesa de um metro e noventa: mas o conteúdo do
“discurso” é idêntico. Arménio Carlos propõem que se salve o país recorrendo a
uma lista de “propostas alternativas”, e que incluem “distribuição igualitária
da riqueza” e “luta contra o desemprego”.
Os camaradas que lá estavam
aplaudiram; de qualquer forma já não iam jantar a casa, por isso mais valia
aproveitar a festa. Mas fiquei com a sensação de que, para a maioria das
pessoas, dizer que se é “contra a precariedade” é efectivamente uma medida, ou
uma proposta, ou uma alternativa, ou um programa de governo. E como os
políticos servem para representar os cidadãos, encontramos o mesmo “factor Miss
Universo” noutras personalidades com tão pouco relevo como Arménio Carlos.
Assim de repente lembrei-me do líder do maior partido da oposição, António José
Seguro, que de vez em quando também anda de bikini para aparecer na televisão.
Isto para não falar do Bloco ou do PCP, que dão voz parlamentar ao discurso
Miss Arménio Carlos e competem entre si para ver quem consegue a expressão mais
bombástica para abrir o telejornal (ontem perderam; a “bomba atómica fiscal” de
Seguro foi de facto a melhor tirada do dia, e substituiu merecidamente os
verdadeiros assuntos nas aberturas dos telejornais).
Entretanto os
manifestantes mostravam o mesmo grau de certeza e enfoque que Arménio Carlos
(ou uma Miss): dos quinze minutos que vi de transmissão televisiva, cheguei à
conclusão que a manifestação de hoje serviu para reclamar contra o desemprego
jovem, o desemprego não-jovem, a precariedade, os cortes na cultura, os cortes
na saúde, os cortes na educação, os cortes nas pensões, o governo, a troika, o
pacto de agressão, Passos Coelho, o Ministro das Finanças, o Parlamento, os
Partidos e, claro, contra o Presidente da República. O problema é que a lógica
perversa das manifestações transforma todas estas reivindicações em nada de
especial, porque uma pessoa que assista àquilo não sabe a que está a assistir.
É como a anedota: se eu e o leitor formos a uma casa de frangos e o leitor
comer um frango e eu não jantar, teremos comido em média meio frango cada um.
Será que se João se manifesta porque está desempregado e Maria se manifesta
porque não gosta de Passos Coelho, a manifestação pode ser considerada uma “jornada
de luta” na qual João e Maria lutaram contra o desemprego e contra Passos
Coelho? Será que este “sentimento generalizado de descontentamento” tem muito
de descontente mas pouco de generalizado? Ou é legítimo afirmar que a maioria
dos cidadãos portugueses é contra o actual sistema representativo mas depois
pouco vota, ou vai a manifestações partidárias ou sindicais, ou exige uma
solução governamental enquanto aplaude e apoia uma não-solução, uma
não-alternativa?