terça-feira, 31 de agosto de 2010

Smith e as Sereias - episódio 8

Previamente, na novela (perdão, série) Smith e as Sereias...

- Poseidon foi a um motel chamado A Gamba Gostosa encontrar o seu amante, um homem sub-aquático de impressionantes músculos chamado Namor.

- Ariel envia uma misteriosa carta via sardinha-correio para alguém numa tal de Walt Disney Pictures; provavelmente em resposta a uma carta que Sebastião, o mordomo caranguejo, descobre nas malas de Ariel (informando-a de que tinha sido a escolhida para protagonizar alguma coisa).

- Smith é obrigado por Poseidon a ir viver para o quarto do Principado com Ariel, de forma a começarem uma vida a dois. Coisa que irrita razoavelmente Lilith, a sereia loura sua quase-amante, que por ser um amor de pessoa avisa o moço louro de que é Smith quem tem o retrato que este fez da "sua" Rose (despida, ainda por cima).


Poseion e Namor estavam deitados na cama do quarto de motel, rodeados por lençóis revirados e vestígios de roupa pelo chão. Poseidon fumava um cigarro de algas, Namor brincava com o tritão de Poseidon despreocupadamente.

- Quando poderei ir viver contigo para o Palácio? - perguntou a certo ponto Namor. Poseidon remexeu-se na cama.

- Já conversamos sobre isto...

- Mas nunca fica resolvido. Eu não quero que a nossa relação seja apenas aquela coisa estereotipada dos dois amantes que devem manter-se em segredo devido a factores sociais adversos. Tu não tens família a que agradar, muito menos eu.

- E os Atlantes?

- Os Atlantes vivem na Atlântida, que se lixem. Eu quero viver contigo. As tuas filhas com certeza iriam compreender. Se há alguém que comete imoralidades são elas, com os seus marujos.

Poseidon tinha a cara de quem tinha mordido uma rodela de limão.

- Isto que nós fazemos... Isto que nós somos... Vai contra tudo aquilo em que acredito. Contra a minha fé…

Namor espetou um beijo carinhoso na boca barbuda de Poseidon. Olhou-o nos olhos.

- És tu quem decide o que deve ou não ser feito. Não te preocupes com aquilo que os outros te dizem. Tu és maior e vacinado. Tu és o Rei dos Mares, caramba. Se alguém tem autoridade por aqui és tu! Afinal o que há de errado naquilo que somos? Não magoamos ninguém. Não nos magoamos. Amamo-nos. O que há de mais importante?

Poseidon olhou para o tecto do quarto de motel, repleto de musgo. Suspirou.

***

Cheguei à porta do quarto ao mesmo tempo que Ariel, o que só demonstra o quanto as coincidências gostam de me tramar. Trazia o ramo de algas e corais, que agora sabia ser horrível. Sabia também que as sereias, tais como as mulheres, tinham uma necessidade de protecção e de amor tão subconscientemente avassaladora que aceitariam a boa intenção demonstrada ao dar um presente acima de qualquer prenda específica. Aquelas algas não eram só um conjunto torto de cores mal escolhidas, eram a demonstração do meu amor incondicional. Mais ou menos. E da minha fidelidade. Muito relativa. Se começássemos a contar essa coisa da fidelidade só a partir das, sei lá, seis da tarde desse dia, talvez se pudesse dizer que estava mesmo a ser muito fiel à mãe do meu futuro filho. Ariel olhou para mim, depois para as algas, e depois para mim outra vez. Ficámos parados por momentos, à porta do quarto do Principado.

- Que coisa pavorosa – disse Ariel.

- Uau, isso foi carinhoso.

- São para mim?

- São.

- É que ainda por cima sou alérgica a essas coisas verdes que ai penduraste.

- A Lilith disse que eram as tua favoritas.

- A Lilith estava enganada.

“Aquela grandessíssima...”, pensei. Olhei para as flores, procurando uma última esperança de manter a conversação.

- Não conta ao menos a intenção?

Ariel aproximou-se de mim, arrancou as tais algas esverdeadas com a ponta dos dedos e pegou no resto do ramo ao colo.

- Conta – fez uma pausa - Ouve, não podes esperar grande coisa de mim, Smith. Conhecemo-nos há uns tempos, tivemos uma noite bem passada e bastante irresponsável, e é só. Tu não me conheces, eu não te conheço a ti. Tu tens uma bela razão para me conquistar com ramos de algas, eu uma bela razão para não querer nada contigo ou com este bebé... Isto – disse Ariel, agitando a mão entre ela e eu várias vezes seguidas – não pode ser forçado, nem tem grandes hipóteses de resultar. Só fazemos esta coisa de dormir no mesmo quarto porque Poseidon, o meu pai e teu patrão, é o governante cá do sitio e não há como escapar-lhe – houve outra pausa pausa. Ariel embalou o ramo de algas – mas obrigado pelo gesto.

Ariel virou-me as costas, entrou no quarto do Principado e deixou a porta aberta para eu entrar.

- Dormes no sofá – avisou.

***

- Sabes – disse Lilith, olhando pela janela e vendo os cardumes a passar ao longe – Eu tenho a certeza que se falar com umas pessoas que conheço sobre a Rose poderemos arranjar alguma forma de a encontrar.

O moço louro chamado Jack tirou os olhos do desenho de Rose pela primeira vez em duas horas. Sentou-se na cama. Ele e Lilith estavam no seu quarto, uma pequena divisão num dos corredores do Palácio dedicado aos visitantes.

- Farias isso por mim?

- Já que o incompetente do Smith não o faz, que ainda por cima é o trabalho dele... - Lilith virou os olhos azuis para Jack e sorriu – Sim. Acho que posso arranjar uma forma. Mas terias de me fazer um favor. Como uma espécie de troca-por-troca. Boa?

- Boa – disse Jack, virando outra vez os olhos para o retrato ao seu colo.

- Boa – repetiu Lilith. O seu sorriso assemelhava-se cada vez mais a uma lamina afiada.

***

Carlos Andrade, pescador de terceira geração, puxou as redes para dentro do barco com a prática de muitos anos a apanhar sardinhas. Boa noite tinha sido aquela, com mais de vinte quilos já enfiados nos baldes com gelo. A última amarra da noite tinha sido igualmente produtiva. Carlos sentiu as barbatanas de centenas de pequenos peixes amedrontados a tentarem fugir ao inevitável, as suas pequenas guelras abrindo-se e fechando-se em absoluto desespero. Uma das sardinhas, porem, era muito pesada, ocupava mais espaço, trazia consigo uma coisa qualquer esquisita amarrada ao dorso que dali a umas horas seria refeição.

- Mas que merda é esta? - perguntou Carlos Andrade, no estilo populista e de vocabulário abrutalhado que muitos problemas lhe trouxe quando andava na escola em pequeno. Com as mãos enormes e calejadas, rasgou um fecho forte de plástico e puxou um envelope razoavelmente seco, dadas as condições, e que cheirava a peixe. Estava endereçado a um gajo qualquer chamado Walt. Carlos Andrade rasgou o envelope, retirou a carta para a ler, e um vozeirão atrás de si perguntou-lhe se alguém lhe pagava para ver a paisagem. Carlos Andrade atirou as folhas de papel para o mar, despreocupado.

A água gelada diluiu primeiro a tinta negra, e as palavras que com ela tinham sido escritas; e só depois as folhas de transformaram numa papa que se misturou lentamente com a água. Ao meio dia do dia seguinte já não havia carta para ninguém.

***

Ariel levantou-se como uma doida irresponsável, e não teve problemas nenhuns em acordar-me com um grito. Saltei do sofá, abri os olhos.

- O que é?

A luz pálida da bioluminiscência que iluminava o Palácio entrava pela janela enorme do quarto, e projectava-se com todo o dramatismo sobre a cara aterrorizada de Ariel. Ela estava a tremer, e a olhar fixamente para um armário.

- Tive um pesadelo – disse ela – Sonhei com uma mulher gorda a comer uma sardinha.

- Ah – disse eu, esfregando os olhos, pensando que com certeza seria uma questão de sensibilidade de sereia, extremamente sensível ao sofrimento dos outros peixes.

- É daquelas coisas que acontecem – continuou ela – Como que a sugerirem-te um significado qualquer. Como se aquela sardinha significasse algo para mim.

- Como quando os escritores colocam uma personagem a ter um pesadelo, uma visão ou um pressentimento negativo para assim a relacionar com algo catastrófico e terrível que aconteceu noutro lugar e noutro espaço de tempo, de forma a manter a coerência na história e assim ligar dois episódios aparentemente aleatórios e impossíveis de relacionar? – perguntei eu, com toda a naturalidade.

- Sim – disse Ariel, sem tirar os olhos de um dos armários – Odeio quando eles fazem isso nos livros. Parece sempre tão...

- Facilitista – respondi – e é tratar o leitor com uma grande condescendência.

Ariel deitou-se outra vez, virou-se na cama e procurou adormecer. Eu deitei-me também no sofá, puxei os lençóis para cima das pernas e tentei a todo o custo evitar um torcicolo.


Todas as Terças e Quintas há novos episódios de Smith e as Sereias. Podem encontrar todos os episódios passados na etiqueta "smith e as sereias", presente no final de cada episódio ou no menu "Directo ao assunto" no início do blog. Em princípio o episódio da próxima Quinta feira será duplo, para celebrar os 10 primeiros episódios da série e porque me apetece.

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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Quem partiu o apagador?

A discussão entre os dois lados da questão na controvérsia sobre a mesquita a ser construída perto do Ground Zero está a atirar a popularidade de Obama para níveis preocupantemente baixos. A sensibilidade americana está ao rubro como uma ferida aberta, porque para muita gente é uma ofensa pessoal e incrível a construção de um monumento a uma religião que teve mão directa no atentado a apenas algumas ruas de distância.

Obama opinou de forma diferente, autorizando a construção. Isto é uma lição de tolerância que devia ser bem pensada por aqueles que colocam a ofensa pessoal à frente da liberdade de culto dos outros.

Estive a pensar que uma analogia pode ajudar a compreender a situação e o meu ponto de vista. Vejamos esta imagem do Papa no Terreiro do Paço, aquando da sua visita a Portugal. A gigantesca missa contou com milhares de católicos e com a cobertura pormenorizada da televisão.


Outra imagem do Terreiro do Paço, com mais aninhos:



Será igualmente ofensivo da parte do Papa a celebração da sua visita a Portugal numa praça onde, séculos antes, homens e mulheres foram queimados vivos por lerem um livro proibido, ou comerem por serem judeus? Se as famílias dos queimados fossem vivas com certeza estariam a manifestar a sua ofensa pessoal; e no entanto a sociedade seria unânime ao relembrar que se calhar os católicos na actualidade e o Papa por si só não podem nem devem ser responsabilizados ou prejudicados por acções do passado, com as quais nada tiveram que ver.

Vamos explicar aos muçulmanos americanos que não podem ter uma mesquita na sua área de residência porque uns tipos com os quais nada devem ter em comum senão um culto religioso rebentaram com duas torres? Por uns pagam os outros. Todos conhecemos a injustiça neste sistema desde que, na escola primária, fomos confrontados com a típica ameaça do professor, “Se não me disserem quem estragou o apagador ficam todos de castigo”.

À parte de tudo o que penso sobre religiões, há uma coisa que é sagrada (passo a expressão): a liberdade de cada um, desde que não prejudique os outros. Há milhões de muçulmanos que não são terroristas, e os primeiros não devem pagar pelos segundos.

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Viva a produção

Este mês de Agosto é oficialmente o 2º mês com mais posts (36) da história deste blog (ultrapassado apenas por Outubro do ano passado, com 49 publicações).

Obrigado a todos os escritores-fantasma que receberam dinheiro para escrever histórias em meu nome, e um agradecimento especial a todas as pessoas a quem roubei ideias e que nunca me processaram por isso. É graças a vós e à vossa actividade (e ao menino chinês, nunca se esqueçam) que este blog se mantém activo de uma forma tão, eh, activa.

Activamente,
O Autor
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Maionese

José Carlos e Manuel Resende conheceram-se pela primeira vez (que redundância, se estavam a conhecer-se tinha de ser pela primeira vez) quando o primeiro entrou num restaurante Burger King sentindo larica no estômago, e o segundo tinha aceite um emprego nesse mesmo restaurante. Manuel Resende perguntou ao cliente José Carlos,

- Boa noite, sou o Manuel. Posso anotar o seu pedido?

José Carlos olhava para os placards gigantes e coloridos, à procura de um hambúrguer volumoso.

- Podes. Quero o Dóble Cheese Bacon. Vocês não têm uma coisa tipo menu gigante?

Manuel Resende hesitou, pensou por momentos, estava no seu primeiro dia. Lembrou-se:

- Temos sim, o menu XXL. São mais cinquenta cêntimos.

- É verdade que esfolam animais vivos para fazer a carne? – perguntou José Carlos, careca, trinta e cinco anos, olhando Manuel Resende com uma curiosidade genuína.

- Teria de perguntar ao meu superior – respondeu estupidamente Manuel Resende – mas penso que não.

- Óptimo. Venha esse Bacon Dóble não sei quê. Não percebo nada disto, é a primeira vez que cá venho – resmungou José Carlos, e Manuel Resende, experimentando com os botões da máquina à sua frente, pensou “Já somos dois”.

***

Um ano tinha passado e Manuel Resende já sabia mexer na máquina, aceitava e despachava pedidos com uma rapidez infalível, nunca deixava cair batatas ou entornar bebidas. Foi empregado do mês umas quantas vezes, e os seus superiores diziam-lhe que se continuasse assim iria longe. José Carlos chegou-se à frente, era a sua vez, não se podia aproximar muito mais do balcão por causa da barriga que tinha crescido entretanto,

- Quero um Double Cheese Bacon, XXL, com Coca-cola sem gelo e maionese para as batatas. E um sundae com dupla dose de chocolate e avelãs – não precisou sequer de olhar para os placards. Tirou a quantia quase certa do bolso, para facilitar os trocos. Manuel Resende estendeu-lhe o tabuleiro e José Carlos aceitou-o. Foi comer para uma mesa ali perto, e Manuel Resende já estava a atender uma mulher com duas crianças quando pensou “Aquele já o conheço, é cliente habitual”.

***

José Carlos, gordo, arredondado, aproximou-se do balcão onde um estagiário registava pedidos. Disse o estagiário,

- Boa tarde, o meu, hum… - tossiu – É André, em que posso ser-lhe útil aliás indicar-lhe o pedido?

José Carlos soltou uma gargalhada divertida, vinda das profundezas de um corpo obeso.

- Bem, tu és novo por aqui!

Manuel Resende, roupa diferente dos outros trabalhadores e transportador de uma tabuleta junto ao mamilo que dizia SUPERVISOR DE LOJA, aproximou-se sorrindo.

- Queira desculpar, aqui o André está no seu primeiro dia. André, regista o pedido do senhor.

André tremia por todos os lados, José Carlos debitou o seu pedido habitual com toda a prática do mundo, Manuel Resende pensava:

“Meu Deus, como este está a ficar gordo”

***

Manuel Resende, quarenta anos, aproximou-se da porta do restaurante que ia visitar. A última vez que abrira esta porta fora para sair, antes como Supervisor de Loja, hoje como Coordenador Regional, que bom que é regressar ao local de origem para assim se ter melhor noção do quanto se subiu na vida. Vinha para falar com o Supervisor de Loja, um tipo chamado André Castro, sobre questões administrativas. Entrou, pensou, “Curioso, sempre trabalhei aqui e nunca aqui comi”, aproximou-se do balcão e pediu um hambúrguer dos pequenos.

Levou o tabuleiro com o hambúrguer e um sundae simples para uma mesa, a seu lado arrotou alguém. Manuel Resende olhou para o lado, ali estava um tipo careca e gordo, de cabelos naquela fronteira entre a cor e energia da juventude e o grisalho da idade. “Caramba”, pensou Manuel Resende, “Como este está!”

Manuel Resende comeu o seu hambúrguer e o seu sundae, já se levantara antes mesmo de José Carlos acabar de comer as batatas.

***

Manuel Resende sentou-se rodeado por outros homens de fato, todos eles da elite administrativa da empresa. Manuel Resende reflectiu, levou as mãos ao queixo e apoiou-o nelas.

- Quem é este individuo, afinal?

- Um tal de José Carlos Martinho – um dos homens de fato estendeu-lhe um jornal, lá está a foto do homem gordo com a família para puxar à lagrimita. A notícia dizia em letras gordas, HOMEM MORRE, DEIXA FILHOS PEQUENOS.

- Querem uma indemnização de dois milhões de euros por danos irreparáveis ao equilíbrio emocional da família – informou outro dos homens de fato – Aparentemente este tipo comeu dos nossos hambúrgueres todos os dias da sua vida, afogou-se em maionese e isso entupiu-lhe as artérias.

- Se podia ter comido saladas? – perguntou outro dos administrativos de sobrancelhas levantadas – Podia, mas escolheu a carne processada. Que se dane para isto, mandemos a malta do departamento jurídico esmagar estes oportunistas. Não estamos na América, lá é que se culpa quem fez a bala pela morte de quem levou com ela no peito.

Manuel Resende ainda tinha os olhos pregados na foto do gordo careca, pensava que o conhecia. Disse em voz baixa:

- Eu matei este homem.

Os administrativos olharam uns para os outros, riram. Um deles:

- Isso é o que eles pensam. Ele é que se matou a si próprio, até parece que fomos nós que lhe metemos a gordura pela boca abaixo.

***

O caixão é enorme, teria mesmo de o ser para alojar tamanho corpo. A família está a um canto, dois miúdos redondos e uma mulher com cara de galinha. Manuel Resende aproxima-se, teve o cuidado de vir de preto e de esperar pelo fim da cerimónia.

- Lamento muito pela sua perda – diz à viúva – e acredite que me sinto pessoalmente responsável.

- Tem de ter muita lata, para matar o meu marido com as suas comidas de plástico e vir para aqui com falinhas mansas – diz a viúva, ofendidíssima. Manuel Resende estende-lhe um envelope, diz-lhe:

- Cortemos os intermediários. Aqui está a sua indemnização, maior do que qualquer valor que conseguirá em tribunal. A minha empresa não teve mão nisto.

- E você teve?

Manuel Resende não responde. A viúva aceita o envelope, por sinal bem recheado, a luta entre ideais éticos dentro da sua cabeça pequena não deve ter sido nada complicada. A família afasta-se. Manuel Resende olha para a terra remexida e fresca, diz em voz alta:

- Eu matei este homem – e acrescenta, em nome do rigor – um pacote de maionese de cada vez.

Tem de rir, não há hipótese. Solta uma gargalhada sincera que ecoa pelo cemitério vazio. Nunca pensou que ia tornar-se assassino quando começou a virar hambúrgueres.

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domingo, 29 de agosto de 2010

A Pandora da caixa

A caixa apareceu pela primeira vez numa praia, meio enterrada na areia e com um dos cantos de fora. Nela tropeçou um homem que por ali passeava com o cão, atirando paus para ver se o animal os trazia de volta. Primeiro olhou para o dedo com que batera num vértice afiado, só depois deitou os olhos à areia para ver o que o fizera perder o equilíbrio. Ajudado pelo cão, escavou a areia que cobria parte da caixa e colocou-a ao seu colo como a um bebé.
Era uma caixa cúbica, que oscilava entre o prateado brilhante quando o sol lhe batia de frente e o cinzento pálido à falta de luz. Tinha o tamanho de uma bola de futebol, arestas definidíssimas, vértices de bicuda confiança em si próprios, e um peso diminuído que, para um objecto com aquela estética, parecia ser pouco. A sua superfície era polida e suave, e ao homem que corria com o seu cão pareceu-lhe sentir o frio e a austeridade de um metal polido mas ao mesmo tempo uma fina camada de pêlos minúsculos.
Verdade seja dita, nada na caixa lhe dava o ar de caixa. Melhor dizendo, não tinha tampa, fecho, corrente, fechadura, abertura, buraco ou qualquer pequena alteração na superfície deliciosa ou na sua forma cúbica e quase agressiva. Ainda assim, por questões práticas e que só serão compreendidas mais a frente, chamemos de caixa ao objecto que, nas mãos do homem, mais parece um cubo abandonado.
O cão farejou-o, cheio de curiosidade, e assim que um qualquer aroma imperceptível ao dono se lhe entrou pelas narinas, saltou vários metros para trás, tremendo-lhe as patas, e oscilando entre o rosnar mais agressivo e os uivos desesperados de quem viu morrer a família.
- Calma, rapaz – disse o homem, rindo da reacção do seu companheiro, levantando-se para sacudir a areia das calças e trazendo a caixa consigo.
Em casa do homem o cão estava nervoso, ladrando quando não costumava ladrar e rosnando a qualquer movimento ou ruído. A caixa descansava, já sem areia e seca da água salgada, em cima da mesa da cozinha. Banho tomado, o homem sentou-se de frente para a caixa bebendo uma cerveja gelada, semicerrando os olhos porque achava que assim a sua analise seria com certeza um pouco mais concreta. A caixa parecia não gostar dele, se é que isso pode ser dito duma caixa. Estava fria, e ao mesmo tempo parecia lançar para o ar à sua volta uma vibração minúscula mas perceptível com certeza pelo animal que ainda ladrava. O homem continuou a olhar para a caixa, como se a caixa olhasse para ele também desafiando-o. O homem sentiu os olhos pesados.
O cão recomeçou a uivar e o homem caiu da cadeira para o chão.
Os vizinhos chamaram a polícia quando viram o cão correr rua abaixo com sangue no focinho. Uma das vizinhas, que conhecia o homem intimamente, por razões que aqui não precisam de ser explicadas, estranhou o cão estar solto. Nunca estava. Procurou tocar à campainha, ninguém atendia e as luzes estavam acesas, o carro estacionado à porta. Uma hora depois a polícia entrava, uma hora e dez minutos passados estava a ambulância a chegar e meio bairro, de pijama e chinelos, à volta da casa.
O homem estava deitado de bruços no chão, com sangue a sair-lhe da boca. Os paramédicos tomaram-lhe os sinais vitais, procuraram um pulso ainda que fraco, e olharam para os polícias com aquela cara que diz,
- Este já foi.
Um dos polícias olhou em volta, viu a caixa, algo nela lhe chamou a atenção e talvez por isso se dobrou para lhe tocar. Todos os cães da vizinhança uivaram ao mesmo tempo, e numa pequena casa a quarenta quilómetros de distância, uma criança chamada Pandora acordou desesperada sonhando com um homem morto e com o seu cão.
Há sempre nos filmes uns homens de fato prateado, impermeável a qualquer contaminação, radiação ou contágio, que surgem com os seus aparelhos de tecnologia de ponta para desarmar bombas, recolher vestígios biológicos, ou estudar potenciais perigos químicos. No caso presente, foi preciso morrer dois paramédicos e um polícia para que o seu parceiro, sentindo-se tonto e cansado de súbito, recuasse para fora da casa e gritasse,
- Chamem-me os superiores, quanto mais superiores forem melhor.
Um polícia logo se aproximou, perguntando que raio acontecera lá dentro para que dos quatro que tinham entrado, tivesse saído um apenas e a sangrar do nariz. Respondeu o primeiro polícia,
- Temos aqui uma arma química que nos vai matar a todos.
O perímetro foi traçado a fita amarela, e com os camiões do exército e das brigadas anti-terrorista dos tais homens dos fatos prateados chegaram os jornalistas, porque lhes cheirou a desgraça. A vizinha do homem da praia afagava o pêlo do cão assustado e triste, que pelo instinto sabia já que do seu dono nunca mais receberia festas daquelas. Pandora abre os olhos, das mãos da sua mãe aceita uma caneca de leite quente e leva-o à boca. Fica com bigodes de natas, olha para a mãe com os seus enormes e inocentes olhos castanhos e diz, respondendo à pergunta “Como te sentes, filha?”,
- Mãe, um homem morreu e fui eu que o matei.
Aquilo dito assim chocou a mãe de Pandora, que temeu pelo equilíbrio emocional e psicológico da criança. Aconchegou-a nos cobertores, incentivando-a a dormir mais umas horas, com a esperança de que o pesadelo da noite inquieta fosse diluído por umas quantas horas de descanso. Pandora não queria dormir, pediu mais leite e depois de o beber disse,
- Está uma caixa à minha espera.
Caixa essa que entrava nessa altura num cobre enorme, de paredes feitas do mais protector e anti-radiativo material que o dinheiro pode comprar e o engenho humano produzir. Os homens de fato prateado caminham pela casa do homem da praia, coitado, ainda estendido no chão da sala e em breve transportado num saco como um resto de carne seca para análises. Parecem extraterrestres, estes homens de fato que olham com curiosidade para uma caixa que, pela temperatura que emana, pelas vibrações que parece emitir, e pela superfície polida e atraente, não poderá ser coisa deste mundo.
Os jornalistas declaram, de frente para as câmaras, que naquela madrugada morreu pelo menos um homem, dos dois paramédicos e do polícia não se sabe nem se virá a saber tão cedo. A vizinha é entrevistada como se pudesse acrescentar alguma informação vital, ou opinar sobre a matéria. Conta o que viu, como lhe assustou o cão solto, logo a câmara se baixa para mostrar um cão que parece chorar com os olhos a falta do seu dono, logo grita Pandora estridentemente,
- Mãe, é o cão do meu sonho!
E a mãe arrepende-se de tão cedo a ter trazido para junto da televisão. Vai desligá-la, fez-lhe o pequeno-almoço e é hora de espantar os fantasmas da noite com umas panquecas quentes.
A caixa é levada para análise, enfiada numa sub-cave de um subterrâneo governamental qualquer onde mais homens de fato farão medições, sondando o objecto à procura de neurotoxinas, venenos, antrax, gás sarin, emissões radiactivas, qualquer coisa que justifique a morte de quatro pessoas, são quatro porque o tal polícia que deu o alarme teve a mesma sorte que o seu parceiro. Sondas, brocas, até explosivos, tudo tenta perfurar o cubo, sondar-lhe o interior, abrir-lhe uma lasca ou um buraco, nada o penetra ou desmancha; se é caixa em vez de cubo, não poderá ter tampa. Está selada, à vista de uma enorme equipa de especialistas que se dobra sobre páginas e páginas de dados e medições, e horas passadas e cafés bebidos, vira-se o chefe da equipa para os subordinados,
- Isto assim não vamos lá. Nada que conheçamos da experiência humana pode explicar este cubo, senão reparemos: Temos súbitas mudanças de temperatura, emissão de vibrações de pequena amplitude e baixa frequência, facilmente percepcionadas pelos cães e muito pouco por nós humanos, arestas e vértices afiados, uma superfície polida e sem qualquer risco, impossível aliás de riscar ou penetrar, um peso que varia entre o de uma pena e o de um tijolo, e o que nas últimas horas começou e evoluiu na forma de uma luz azulada emitida homogeneamente a partir de toda a superfície do objecto; isto tudo sem qualquer evidência de baterias químicas, eléctricas ou radioactivas.
- E, acrescente-se, trata-se de um material estranhíssimo – disse um engenheiro de materiais – aliás, espero as últimas análises que nos darão uma perspectiva de que tipo de material poderá ser este, uma mistura entre aço polido e pelugem curta e suave. Sinceramente nunca vi nada assim.
- Que raio? Pelugem? – diz um qualquer especialista em espectrometria.
- Exactamente, pelugem.
Um papel é impresso, um dos cientistas lê o que lá está registado e empalidece, atira o papel para cima da mesa central coberta de dados para que todos o possam ler se quiserem e diz,
- Este cubo não é deste mundo.
E diz Pandora, mastigando as panquecas e já mais acordada,
- Mãe, tenho de ir buscar a minha caixa.
Quem veio buscar a caixa foi o Governo, assustado por ver tamanho acontecimento cientifico e, quem sabe, político, nas mãos de um laboratório insignificante, longe de merecer a descoberta. Homens de fato e óculos escuros vieram e mostraram papéis carimbados aos cientistas, avisando-lhes que a partir dali era com eles, e que a caixa era para ser levada. Logo um dos especialistas em anti-terrorismo se ergueu e explicou que,
- Se levam o objecto daqui sem mais análises não podemos garantir como se comportarão os materiais, é um perigo, trata-se de um objecto na prática mortal.
Os homens de óculos escuros pouca atenção lhe deram, iam ausentar-se, e ouviu-se uma explosão que levou parede, estuque, vidros duplos e triplos e quádruplos, e com ela foram também os tímpanos e os sentidos de quem habitava o laboratório na altura. Quando acordaram estava um buraco arredondado nas paredes supostamente impenetráveis do laboratório, e um dos cientistas levava as mãos à cabeça, gritando,
- O cubo, foi-se o cubo, alguém o levou?
Não, o cubo levou-se a si próprio, atravessou as paredes laboratoriais como se fossem papel e esvoaça agora como uma bala atravessando os céus, mal sabe quem chega agora ao trabalho lá em baixo nas cidades que acima das suas cabeças passa um cubo que mata homens e sabe voar. O que esperar de tal coisa? Espera-se que alguém o consiga controlar, domar, parar-lhe o voo e enfiá-lo num buraco do qual não possa sair, diz agora a pequena Pandora dos olhos castanhos,
- Mãe, ela vem aí ter comigo,
A mãe não a ouve, está ao telefone com o pai da criança,
- Não imaginas, a nossa filha acordou de um pesadelo e está desvairada, reconhece cães na televisão, diz que matou um homem e fala numa caixa qualquer.
- Terá febre?
- Não, não está doente, sente-se bem, sorri-me, não tem diarreia, temperatura, dores nenhumas.
- Foi do pesadelo, deixou-a transtornada com certeza. Dá-lhe tempo.
- Dou-lhe tempo? E um psicólogo?
- Entras no hospital com a nossa filha ao colo e dizes “É uma urgência, a minha filha diz que matou um homem”? Vão achar que tu é que precisas de ajuda psiquiátrica.
A mãe ficou sem palavras. Palavras tinha Pandora, que gritou da sala,
- A minha caixa, a minha caixa!
A sua caixa aterrou sem estrondos nem explosões volumosas, como se do céu caísse uma pena em vez de uma caixa feita de um metal de impossível destruição e estranhas propriedades. Arrumou-se debaixo de uma sombra, dando um jeitinho aqui e ali para se encaixar a um canto que lhe pareceu protector. Mal sabe a caixa que a criança que por ela suspira grita agora,
- Mãe, deixa-me falar com o papá,
E a mão da criança diz para o aparelho,
- Espera, a Pandora quer falar contigo.
E a caixa, no seu canto de sombra protegida do sol, ouviria se tivesse ouvidos (quem sabe),
- Passa-lhe o telemóvel, então.
O pai de Pandora diz,
- Olá querida, como te sentes? Ouvi dizer que tiveste um pesadelo,
Ao mesmo tempo que retira de um bolso as chaves tilintantes do carro e se prepara para atravessar a porção do parque de estacionamento que o separa da viatura.
- Sonhei com um homem e com o seu cão, fui eu que o matei, papá – disse Pandora, o pai que conhece a sua filha percebe-lhe a inocente tristeza na voz.
- Minha querida, como podes dizer uma coisa dessas? Foi só um pesadelo, até porque…
- Espera, pai. Já te contei da caixa prateada?
E o pai aproxima-se do carro que por sorte estacionou à sombra de um toldo, bate com a ponta do sapato em algo rijo e murmura,
- Porra,
E acrescenta,
- Espera, filhota, que bati com o pé numa coisa qualquer
E a caixa, ou cubo, ou coisa qualquer, como lhe quisermos chamar, começou a vibrar quando o pai de Pandora a agarrou e arrancou da sombra fresca onde descansava.
- É uma caixa cinzenta, que vibra e que mata pessoas. Mas só quando está longe de mim, e me quer ver – disse Pandora, aquela vozinha suave de uma criança que tem todas as certezas do mundo. O pai segura o telemóvel entre a orelha e o ombro, torce-se todo para que não caia, e puxa a caixa para si, diz,
- Que caixa é essa, Pandora?
- É a caixa que também estava no meu sonho. E às vezes brilha em azul.
E nas mãos do pai de Pandora a caixa vibra, as suas superfícies ficam mais suaves, o seu peso reduzido, e uma luz azulada chega aos olhos do homem que ficou agora mesmo sem palavras.
Sem palavras entrou o homem dentro do carro, com a caixa ao colo e o telemóvel numa mão, diz,
- Pandora, passa-me a tua mãe por favor,
E um par de nós dos dedos bate toc toc no vidro do carro, o pai de Pandora olha para a sua direita, está um homem de fato prateado do outro lado da janela a dizer-lhe para não se mexer e para largar a caixa imediatamente. Vem a mãe ao telefone outra vez, esta chamada telefónica que com certeza vai ficar bem cara, diz,
- Querido?
Tarde demais, a caixa já pulsa como um despertador frustrado nas mãos de um homem prateado, o pai de Pandora vê-se separado do seu telemóvel e puxado por dois braços fortes, ainda tem tempo de gritar,
- Esperem, esperem, é a caixa da minha filha.
- Caixa, que caixa? – diz um dos cientistas, segurando o objecto nas mãos. Grita Pandora do sofá, de súbito perdendo o interesse na televisão,
- Mãe, diz ao pai que eu sei abri-la,
E a mãe grita,
- Querido? Querido, que se passa?
E o marido implora,
- Deixem-me só falar com a minha esposa, pelo amor de Deus.
- O senhor está doido, este cubo a que chama caixa é a coisa mais perigosa que já vimos, furou-nos o laboratório e fugiu à autoridade – diz um dos cientistas, e outro se aproxima e pergunta,
- Como assim, é a caixa da sua filha?
E o homem explica que estava ao telefone com a filha, que sonhou nessa noite com um homem morto e com um cão, e que sabe descrever o cubo ou a caixa ou lá o que é sem no entanto a ter visto alguma vez na vida, e um dos cientistas pergunta,
- Um homem com um cão?
E o Pai de Pandora,
- Se me devolverem o telemóvel que me arrancaram com todo o descaramento poderão vocês mesmo falar com a criança.
Por questão de economia de palavras e poupança de tempo vamos apressar tudo isto, que os aspectos burocráticos e governamentais pouco importam. Aconteceu que, bastantes horas depois, uma camioneta do exército veio a casa buscar uma pequena criança de olhos castanhos, que em condições normais estaria assustada por ver tantos jornalistas, tantos homens com armas, mas que por sua vez só dizia,
- Levem-me à minha caixa porque posso abri-la.
A comunicação social estava louca. Entre homens mortos, cães abandonados, possíveis armas terroristas e um objecto voador não identificado, a caixa era já tema de conversa generalizado, nos últimos dois dias não se tinha falado de outra coisa. Cientistas e especialistas vinham à televisão explicar que a caixa não era deste mundo, que as suas propriedades eram estranhas e potencialmente nefastas, mas que os estranhos processos de adivinhação de uma criança que vivia num bairro da classe média indicavam uma qualquer relação inexplicável entre a menina e a caixa, já que sempre que alguém fazia alguma coisa à caixa a menina respondia, para todos os microfones e câmaras do planeta,
- Um senhor de óculos está a medir-lhe a temperatura,
Isto é um exemplo. Claro que o senhor de óculos estava mesmo de termómetro na mão, embasbacado por se ver referido na televisão nacional em tão estranhas circunstancias. E a caixa, como que em resposta, aquecia imensamente. Sempre que alguém a tentava analisar ou afastar daquilo que, com a sua curiosa sensibilidade, o objecto compreendia ser a localização exacta de Pandora, começava logo a soltar emissões perigosas, a vibrar, fazendo tremer vidros ou a rachar paredes de titânio impenetrável. Como que avisando, Vejam lá o que fazem comigo, e tragam-me a menina de uma vez por todas.
O Governo veio declarar que não tinha outro remédio senão colocar a criança e o raio da caixa em contacto de uma vez por todas, isto, claro, com todas as autorizações parentais preenchidas e assinadas. O mundo virou os olhos para o país onde tudo sucedia. T-shirts e bonés com mensagens de apoio à menina eram vendidos nas lojas, nas estações de serviço e nos sinais vermelhos. As religiões mundiais declaravam todas que nada tinham que ver com o assunto, mas que com certeza tão milagrosas ocorrências eram a confirmação empírica óbvia da existência da sua pessoal interpretação do conceito Deus; e os governos dos outros países vieram declarar, à laia de ameaça, que o país onde a caixa tinha decidido aparecer deveria ser capaz de lidar como deve ser com aquilo que tinha evoluído rapidamente de uma ameaça de arma química para a estranha relação entre uma menina de oito anos e uma caixa mágica que dizia ser sua.
Reuniu-se então a multidão de fãs e curiosos, os jornalistas também, desta vez atraídos não pelo cheiro a desgraça mas pela potencialidade de uma história com contornos sobrenaturais, quiçá comoventes. Afinal, mete uma menina inocente pelo meio. Essa menina, a Pandora da caixa, vem num carro blindado do exército a caminho do enorme edifício onde foi escondido o cubo. Cartazes rodeiam a fachada dos edifícios do outro lado da rua, um deles diz O QUE ESTÁ DENTRO DA CAIXA? É uma boa pergunta, realmente.
- O que está dentro da caixa, Pandora? – perguntou-lhe a mãe, já habituada a todo o teor inacreditável da história, partindo aliás do princípio de que a sua filha pequena seria capaz de adivinhar tal coisa. A menina de oito anos olha para ela e encolhe os ombros.
- Esta rapariga é uma fraude – diz um comentador – Nada mais do que uma manobra impressionante de markting dos nossos governantes, como quem diz, Vejam como somos uma maravilha, protegemos a população da ameaça química, armamos um circo à volta de uma criança inocente e que a todos comove, e quando tudo tiver resolvido logo se inventa um conteúdo qualquer para a caixa, virá a menina a público dizer que foi muito bem tratada. Enfim, uma fantochada. Alguém consegue levar isto a sério?
Consegue pois. Em directo na televisão e para todo o mundo é transmitida a chegada da menina, coberta por flashes de fotógrafos e perguntas gritadas pelos jornalistas. Um espectacular cordão policial é montado, a menina tenta passar com a mãe pelo meio da multidão, uns gritam,
- Adoramos-te, Pandora!
Outros,
- A caixa terá a salvação para o mundo!
Ui, esperem por isso, esperem. A menina olha em volta, quase assustada, todas aquelas pessoas que viajaram dezenas ou centenas de quilómetros para ali estar devolvem-lhe o olhar, há um aplauso generalizado e que se estende rua abaixo. A caixa foi trazida até cá fora, está morna e inofensivamente quieta, a sua vibração terminou como se ela fosse apenas um nervoso miudinho. A menina Pandora vê a caixa, a sua face abre-se num sorriso, e com ela sorriem todas as pessoas do mundo,
- Olha que querida esta menina, tem um sorriso tão doce. E que feliz que está! – dizem milhões de pessoas sensíveis em diferentes fusos horários.
Pandora sobre a um estrado, é-lhe colocada a caixa à frente e todos se afastam, até a mãe dela que até ali sempre esteve a seu lado, os homens do exército, os cientistas, a multidão suspende-se num silêncio e o mundo também. A caixa impenetrável liberta uma luz azul, como que a dizer Olá, e Pandora estende uma mãozinha pequena à sua frente e toca-lhe com a ponta do dedinho, diz,
- Abre-te, por favor.
E o tampo superior da caixa levanta-se suavemente, a luz azul brilha de lá de dentro e ocupa toda a rua como um impulso violento. Por momentos os televisores de todo o mundo ficam cobertos por uma luz brilhante azul, os olhos da multidão à volta da caixa fecham-se para não serem magoados e voltam a abrir-se. A menina ainda ali está, a caixa abriu-se de par em par, está vazia.
E de uma fila do fundo surge um suspiro, um desmaio aqui e ali,
- A luz curou-me! – diz alguém, de lágrimas que lhe escorrem pela cara, outra voz se levanta, depois outra,
- Meu Deus, que felicidade! – todas gritam.
- Mas a caixa está vazia – diz alguém. A voz do céptico é emudecida, em todo o mundo homens e mulheres se abraçam a chorar, que visão avassaladora é aquela, uma caixa brilhante aberta que mais consequências parecia trazer quando fechada. Pandora olha em volta, só vê pessoas a abraçar-se e a chorar umas com as outras, diz,
- Mas a caixa está vazia.
Que raio de coisa, logo vinda da menina que a abriu e que parecia ter com a caixa uma relação tão próxima. Olhou para os olhos da mãe, cravados de lágrimas, correu a abraçá-la,
- Mãezinha, porque estás a chorar?
E a mãe,
- Não sei… Foi tão bonito… Senti-me tão… Cheia.
Vazia a caixa, cheio o coração dos que a viram ser aberta. Será que houve alguma transferência mágica de alguma energia desconhecida, tão poderosa que chegasse às casas de todo o mundo por um mecanismo tão banal como a transmissão televisiva? Os cépticos apontam para o placebo, milhões dizem que não senhor, a caixa foi aberta e muito do que na vida os afligia desapareceu, doenças, dores de costas, problemas de gota, preocupações financeiras, vícios, imoralidades, dúvidas, dificuldades. Discute-se noite adentro, chamam-se especialistas, uns cépticos, outros crentes no que quer que seja, todos eles com o sorriso estampado na cara de quem assistiu a algo mágico.
Nessa noite Pandora dormiu com a caixa nos braços, vibrando levemente para ajudar a criança a adormecer. A caixa está fechada, se está só agora vazia ou sempre esteve é questão para ser respondida noutro dia. Ou talvez nunca.
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Sou um criminoso

Isto dito assim pode parecer treta, ou até exagero. Não é. Acabei de descobrir, através de uma reportagem sobre Poker na Sic, que jogar este jogo fora dos casinos no nosso país é uma ilegalidade. Vim eu todo contente das férias, das quais algumas horas foram passadas a aprender um jogo que afinal não podia ter estado a jogar, a pensar que podia agora procurar um Poker set (com as fichas e os baralhos) nas casas dos chineses, para descobrir que também é ilegal vender esse tipo de material.

A ASAE assim o controla, correndo lojas e hipermercados à caça de quem vende o Poker às pessoas que gostariam de poder jogar com os amigos um jogo que, confesso, é divertido mas potencialmente viciante.

Ainda assim, muitas coisas são mais legais que o Poker, e muito mais perigosas; veja-se o tabaco, também ele vício, ou o álcool, por si só mais responsável por desgraças no mundo que qualquer jogo de cartas. E já que se proíbe o jogo entre amigos porque pode ser viciante, há que proibi-lo também nos casinos; ou o vício escolhe espaços geográficos?

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Um Domingo a olhar para as nuvens

O vereador Sá Fernandes está preocupado com a abertura dos hipermercados lisboetas ao Domingo.

"Ainda não há decisão mas vou-me bater na câmara para que continue tudo como está: hipermercados fechados aos domingos e tardes de feriado", afirmou ao i o vereador da Câmara Municipal de Lisboa. Sá Fernandes - responsável pelo Ambiente Urbano, Espaço Público, Espaços Verdes e Abastecimentos - defende que o alargamento do horário dos hipermercados pode pôr em causa a sobrevivência do pequeno comércio e sustenta que "são dias para olhar para o céu e não para dentro de grandes superfícies".

Há dois problemas principais com a linha de raciocínio de Sá Fernandes. O primeiro é que o comércio tradicional não está aberto ao Domingo, quem duvida que passeie pela cidade a um Domingo à tarde para ver se encontra um sítio “tradicional” para fazer compras.

O segundo problema é que, mesmo que para Sá Fernandes os Domingos sirvam para “olhar para o céu”, o resto da população agradecia a possibilidade de escolher entre olhar para o céu e ir ao hipermercado, se for isso que lhe apetece no momento. Não sei, isto sou eu que acho que as pessoas devem ter a liberdade para escolher onde passam a tarde, e se Sá Fernandes gosta de ver as nuvens em gosto de ir ver montras. A diferença é que Sá Fernandes se encontra numa posição privilegiada, confiante de que poderá utilizar a sua profissão de vereador para garantir que pessoas como eu, que amam a liberdade individual mas detestam com certeza o comércio tradicional e as vistas aéreas, possam levar a sua avante.

E a proposta de Sá Fernandes consegue ter um terceiro problema. O que o vereador diz com isto é que o comércio tradicional, que ao Domingo estará ocupado a aproveitar os clientes que não têm hipermercados para visitar, não poderá fazer aquilo para o qual o dia de Domingo existe, que é olhar para o ar. Afinal quem parece não gostar do comércio tradicional é Sá Fernandes, negando-lhes o direito de, como ele, passarem uma boa folga a ver as nuvens a passar. No fundo, no fundo, quem está a tentar diminuir os direitos e as liberdades do comércio tradicional é o vereador Sá Fernandes. Alguém o pare, por favor.