segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tenho um monstro debaixo da cama

A sério, não estou a brincar. Eu já andava desconfiado depois de ter encontrado aquela gosma verde nojenta por entre os meus lençóis, e na sola dos chinelos. Além disso, bem tinha dito à minha mãe que o roncar que eu ouvia de noite não era o meu próprio ressonar. Tenho um monstro debaixo da cama, está mais que garantido. Foi preciso ele sair e engolir a avó para que a mãe acreditasse em mim, mas há males que vêem por bem. Continuaremos a receber o cheque da reforma, até que alguém dê pelo sucedido.

Já chamei a linha de controlo de pestes e epidemias, para ver se me resolvem o problema. Meteram-me em espera, e agora estou com o telefone ao ouvido e a escrever isto só com uma mão. A minha mãe fechou-se no quarto com o meu irmão pequeno, porque ele é um medricas. Eu cá estou no hall de entrada, sem tirar os olhos da porta do meu quarto. Tranquei a porta, e meti-lhe à frente uma arca pesadíssima que a minha mãe tinha no quarto para guardar a roupa de inferno. Duvido que o monstro consiga descobrir como rodar a maçaneta, mas nunca é demais investir na segurança.

Não o cheguei a ver, se é isso que vão perguntar a seguir. Só lhe vi uma sombra, e talvez a cauda. Ou seria a língua? Não sei, nem me interessou. Fechei logo a porta atrás de mim, e ainda ouvi os últimos gritos suplicantes da minha avó. Eu juro que a tentei salvar, mas foi tarde demais. Ela insistiu em aspirar-me o quarto, e em mudar a cama de sítio para poder aspirar debaixo da cama. Olha, azar.

Agora consigo ouvir o monstro do outro lado da porta, já não está debaixo da cama. Acho que acabou de me partir o candeeiro da mesinha de cabeceira. O meu irmão mais novo está a chorar, provavelmente porque sabe que se o monstro se soltar ele será pequeno o suficiente para ser a primeira vítima. Magrinho, fácil de engolir e a cheirar a amaciador.

Os da linha de controlo de pestes e epidemias atenderam-me, agora estou a falar com um senhor que me pergunta se estive a fumar. Eu digo-lhe que não, que tenho mesmo um monstro debaixo da minha cama mas não digo que me engoliu a avó, porque senão lá se vai o cheque da reforma. Grito à minha mãe para deixar de ser medricas e se comportar como uma figura maternal protectora que deve ser, sair do quarto e vir atender o telefone. Ela ignora-me, diz que não quer que o meu irmãozinho seja comido. O homem do controlo das pestes e epidemias aconselha-me a procurar o meu encarregado de educação e pedir-lhe que me leve a um médico, e começa numa ladainha sobre um sobrinho seu que também se metia na droga e que lhe levou o televisor e a torradeira de casa para poder pagar o produto. Eu insisto que não estou maluco, nem pedrado, e que o monstro que tinha debaixo da cama me está agora a tentar abrir a porta do quarto e devorar o meu irmãozinho. O homem do controlo de pestes e epidemias desligou.

Agora vim até à cozinha, agarrei na faca do pão e prendi-a ao cinto, só para o caso de a arca que encostei à porta do quarto não ser pesada o suficiente. Vou sair de casa e bater à porta da vizinha.

A vizinha abriu-me a porta, que simpática. Perguntou o que estava a fazer com a faca do pão. Respondi que precisava da sua ajuda urgentemente, porque o meu irmãozinho tinha caído na banheira. Ela veio a correr, e assim que entrámos em minha casa apanhei a minha mãe a correr porta fora e as pernas do meu irmãozinho a desaparecerem pela boca do monstro dentro. A minha mãe está a gritar, agora, e agarrou-se à vizinha como a uma bóia salva-vidas. Vou tentar salvar o meu irmãozinho.

Voltei. Não cheguei a tempo, mas o monstro cuspiu um pé mal mastigado, que agora é a única recordação do meu irmãozinho. A minha mãe fechou-se na casa de banho a chorar, e eu estou a limpar o sangue da minha vizinha. A seguir tenho de ir apanhar os restos dos braços dela ao hall de entrada, e talvez ir com uma esfregona escada abaixo lavar o sangue. O monstro arrastou-a até à rua, e desapareceu pela esquina abaixo. Escrevo-vos com o braço que tenho disponível, porque o outro está a despejar Betadine na ferida infectada que o monstro abriu na minha anca. Dói bastante, e está coberta por um pus verde que cheira mal. Já chamei uma ambulância, mas em vez de lhes explicar quem monstro verde que vivia debaixo da minha cama atacou e devorou a minha avó e o meu irmãozinho, bem como a minha vizinha do lado, inventei que tinha caído das escadas e partido o pé.

Espero conseguir desinfectar isto a tempo de ir a banco amanhã; é o dia da minha avó receber a reforma.
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sábado, 26 de dezembro de 2009

As traduções automáticas revolucionaram o mundo da comédia

Estava a fazer uma pesquisa sobre doação de órgãos quando me deparei com esta deliciosa página traduzida da Wikipédia sobre a Angelina Jolie. Uma pequena amostra do divertimento que vos espera se forem ler:

Agora vinda começada papéis rapidamente para Jolie. Em 1996 starred com David Duchovny no thriller stylish que joga o deus que portraying um cirurgião famed do LA que fosse descascado de sua licença médica e lured profundamente no mundo criminal onde se encontra com o caráter Claire de Jolie.

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Momento de Poesia: "Poema Literal"

Pensei em escrever-te um poema,
Mas fiquei sem saber o que dizer

Não é fácil, quando a minha pulsação aumenta
E o coração parece querer rebentar
O que claro que não poderia acontecer,
Senão morreria de hemorragia
Interna

Os teus olhos brilham castanhos
É a cor do chocolate
E a cor da lama também
E é a cor do meu gato
E de outras coisas também

E os teus lábios são doces
O que é uma metáfora que achei bonita,
Porque os lábios não são doces
Sabem a saliva,
E a saliva é insonsa

Tens os cabelos suaves
Usas amaciador?
Tenho a certeza que sim
Não uses todos os dias, no entanto
Porque os especialistas aconselham a não lavar o cabelo
Todos os dias
Porque o teu coro cabeludo produz secreções especializadas
E importantes
Que se lavares o cabelo todo o dia
Se desvanecem

Como descrever o que me fazes sentir?
Nem sei, é complicado
É como se o meu organismo
Em constante digestão
Digerisse um grande almoço
Que tanto me satisfez
E agora me dá vontade de dormir
E sonhar contigo, claro

Gosto do teu cheiro,
É bom, é delicado,
Como o aroma de uma rosa
Só que com um toque de suor,
Porque não és uma flor, és uma pessoa
E indicador de que tens um sistema imunitário complementar com o meu
E por isso os nossos filhos,
Sejam meninos ou meninas,
Terão fortes anticorpos

Ah, quando sonho contigo,
A propósito,
Sonho que estamos sozinhos numa praia
E tu me beijas
E de seguida elogias
A minha higiene oral
Porque é boa

Ninguém te ama tanto assim,
Como eu,
Podes crer
Por favor, vem ter comigo
Já sabes a minha morada,
Disse-ta no outro dia
Acho que escreveste na tua agenda
Ao lado do número que aquele rapaz musculado
Te disse ao ouvido

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A Dra. Manuela Ferreira Leite é uma besta



Eu explico porquê. A Dra. Manuela Ferreira Leite, suponho que representando o seu partido, aproveitou a sua mensagem de Natal para espalhar um desfile de falinhas mansas e disparates claramente apontados contra a recente proposta socialista para legalizar o casamento homossexual. Conseguiu transformar a sua mensagem de Natal, nas suas palavras uma altura de “alegria e amor”, num discurso metafórico e cheio de recadinhos subliminares que apenas servem para dividir e dificultar mais a vida a quem anda de um lado para o outro a tentar tornar este país um bocadinho mais democrático e justo para todos.

Inicia a mensagem com o típico “Ano difícil e de crise, mas devemos ter esperança”, e não perde tempo a começar:


(O Natal) é a época em que se celebra esse núcleo essencial na estrutura da nossa sociedade que é a família. É sobretudo no seio da família que se educam as crianças, se formam os jovens, e se amparam os mais idosos. Nunca será demais realçar a sua importância na coesão social necessária ao progresso que todos desejamos.


Suponho que aqui família” signifique “Casal de um homem e uma mulher, filhos e filhas, avozinho e cachorro”, a típica definição standardizada e utilizada pelos “anti-casamento-gay” como uma espécie de valor moral impenetrável e inalterável. Suponho que todas as mulheres e pais solteiros que criam os seus filhos sozinhos adorem esta definição, e se revejam nela. Além disso, todos sabemos as histórias das civilizações destruídas e em total caos económico e social, quando ataques à família são permitidos. Coisas como, sei lá, o divórcio. Mas espera, o divórcio é permitido? Então que outro ataque pode haver à família? Dra. Manuela Ferreira Leite prossegue:


Em fases da vida em que tudo é incerto, a família não pode ser fragilizada, e agredi-la é perigoso e inaceitável.

Começando com “em fases da vida em que tudo é incerto”, para atribuir ao que vem a seguir uma contextualização fatalista e emotiva, segue-se o argumento favorito de todos nós: O Ataque à Família! Como se a Família fosse uma instituição, ou uma pessoa frágil, ou um boneco de porcelana que ao mínimo toque se despedaça. Como se a família não passasse de uma definição, de uma etiqueta que damos às coisas, e que tem sido alterada ao longo dos séculos para melhor reflectir a evolução moral do ser humano. Será esta a mesma “família” em que, há apenas algumas décadas, o divórcio era um disparate e uma blasfémia? Será esta a mesma “família” que, há uns séculos, não passava de um contrato social entre duas tribos ou reinos vizinhos para fortalecer laços diplomáticos e económicos?

A Dra. Manuela Ferreira Leite utiliza este argumento baixo e falacioso como quem não quer a coisa, com a lata de quem está a vitimizar-se e envia o recadinho ao seu agressor. De que forma podem as famílias portuguesas ser “fragilizadas” ou “agredidas” com a permissão do casamento homossexual? Se todos os homossexuais do país se casassem neste preciso momento, de que forma a estrutura social em que vivemos entraria em colapso? É a suposição mais ridícula e mais mesquinha, de quem se quer meter na vida dos outros. Teriam razão, caso o casamento homossexual REALMENTE apresentasse alguma desvantagem objectiva e mortal para a sociedade. O que não é o caso.

A líder do PSD acrescenta ainda, antes de terminar, esta pequena pérola da hipocrisia:

O Natal lembra-nos o especial dever de compreensão e de ajuda. Não é o tempo de egoísmos e vaidades, ditados pelo desprezo das condições de cada um.

O que é bastante coerente, vindo de alguém que quer negar um direito inofensivo uma minoria inofensiva.

Exactamente, Dra. Finalmente concordo com alguma coisa do que foi dito no vídeo. Seja compreensiva e esqueça o egoísmo pessoal e a vaidade de quem se acha dona da moral; e para a próxima, não utilize uma mensagem de Natal para transmitir mensagens subliminares fatalistas e que só contribuem para dividir a população e atrasar mentalidades.


PS.: E já agora, um bom Natal para todos os gays, lésbicas, transexuais, bissexuais, travestis, drag queens, ateus, hereges… E claro, para a Tradicional e Mui Moralmente Correcta Família Ferreira Leite.

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quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Parabéns Menino Jesus

Obrigações familiares vão manter-me afastado daqui por uns dias.

Até lá, tenham um feliz Natal. Desejos de uma agradável intoxicação alimentar, consequência dos doces e dos exageros, para todos vós.

Cumprimentos

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Momento de Poesia: "Decisão"

Vieste

Foste

Voltaste

Decide-te

Porra

Como é

Então

Troco a minha mulher por ti

Ou não?

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O Complexo de Deus

Assim que cheguei ao café e me sentei na mesa num dos cantos reparei logo no caderno, esquecido em cima da mesa entre dois guardanapos sujos, e demorei bastante até o conseguir abrir e espreitar o seu conteúdo ultrapassando todas as implicações morais que isso acarretava.

Lá dentro estavam fotos bastante explícitas de uma pessoa despida, a fazer outras coisas com outras pessoas despidas, numa pequena festa em que havia pessoas despidas por todo o lado. Sou uma rapariga nova e bastante dinâmica, moderna e liberal. Já fiz muito na minha vida de adulta que faria corar as bochechas dos meus pais, mas o que estava naquelas fotografias era demais.

Perdi a fome, desisti do pequeno almoço, agarrei no caderno e fui levá-lo ao balcão. O dono do bar, um homem negro e cúbico, de avental gorduroso, já me conhecia.

- Como vai isso?

- Muito bem. Encontrei este caderno em cima daquela mesa ali. Não abra.

O dono do bar pegou no caderno, e claro que o abriu. Levantou as sobrancelhas, inclinou o caderno para ver melhor, demorou-se demasiado.

- Aquilo é…

- Sim, acho que sim. E ao canto parece-me tratar-se de uma mulher vestida de palhaço – disse eu – Tem alguma ideia sobre quem esqueceria uma coisa tão pessoal num local destes?

- Não, nenhuma – disse o homem, sem tirar os olhos do caderno.

Entretanto uma mulher entrava no bar, e reconheci-a imediatamente. Era a mulher que, numa das fotos, aparecia vestida de palhaço, com a maquilhagem da roupa borrada devido à actividade que não deveria ser pouca.

- Desculpe, por acaso encontraram aqui um caderno de capa castanha? – perguntou ela. O dono do café arrumara o caderno debaixo do balcão.

- Pode descrevê-lo por favor?

- É rectangular, castanho, de capa dura, e lá dentro tem uma série de fotografias pornográficas em que eu apareço vestida de palhaço a realizar favores sexuais em troca de enormes quantidades de dinheiro – disse a mulher, de um fôlego, demonstrando logo de seguida uma enorme vontade de se enfiar dentro de um buraco.

O dono do café olhou para ela com a mesma surpresa com que olhara para o caderno, agarrou nele e estendeu-o à mulher.

- Aqui está. Capa dura, castanho, rectangular… É isso, não é? – perguntou ele, escondendo deliberada e terrivelmente mal o facto de ter olhado para as fotografias no interior do caderno.

A dona do caderno agarrou-o, corando, e agradeceu.

- Fui eu que encontrei o caderno – disse-lhe eu. Não sei porque me meti na conversa, mas pareceu-me o correcto a fazer nem que fosse para quebrar o gelo.

- Muito obrigado por não ter tornado públicas as minhas fotografias humilhantes – disse a mulher, mordendo o lábio logo de seguida, como quem luta contra uma enorme vontade de se coçar sem o poder fazer em público.

- Sente-se bem? – perguntei eu.

- Não – disse-me ela.

- Venha, sente-se aqui.

Sentámo-nos. A mulher começou de imediato a chorar.

- Então, então? O que se passa? – perguntei-lhe.

Ela contou-me.

Ao que parece, havia um líder do crime local chamado Vladimir…a que, nos tempos livres que lhe sobravam de matar líderes políticos e influenciar as forças policiais locais, tinha um fetiche bastante perverso com palhaços. A histórias estava mal contada, mas ao que parecia Vlamirir…a teria tido uma infância complicada na Rússia de onde viera, onde passara a sua infância num circo itinerante. A mulher não era nada mais nada menos que uma das imensas companheiras que Vladimir…a tinha pela cidade.

- Não imagina a vergonha – disse-me ela, chorando – Não tenho outra hipótese, como vou pagar as contas…?

- Poderia arranjar um emprego. Parece-me uma rapariga esperta e inteligente, porque não?

- Vladimir…a iria descobrir-me com certeza. Não tenho como fugir.

- Porque anda com estas fotos de um lado para o outro?

- Queria levá-las a um amigo meu, da polícia. Ele pediu-me para trazer todas as provas que pudesse contra Vladimir…a.

- Queria incriminá-lo?

- Exactamente.

- Espere, pensei que me tinha dito que não queria fugir de Vladimir…a porque tinha medo dele!

A mulher levantou a cabeça das mãos, afastando os olhos borrados de maquilhagem do lenço onde se limpava.

- Tem razão… Não estou a fazer sentido!

- Este enredo não tem a mínima lógica – disse eu, e com razão. Até há pouco tempo atrás não me estava a importar nada em ser personagem, mas aquilo começava não fazer sentido. Primeiro a mulher deixava fotografias tão humilhantes assim, sem mais nem menos, num local público, e agora já queria proteger-se por ter medo desse Vladimir…a, e logo de seguida queria participá-lo à polícia. Aliás, nem a razão porque o líder do crime tinha um nome tão estranho como Vladimir…a cegara a ser explicada.

- Quem está a escrever esta história? – perguntei eu, gritando pelo café. O autor, medricas, não respondeu.

- Isto é um escândalo – disse o dono do café – Eu estava aqui, eu vi. Não faz o mínimo sentido. Porque é que o autor me fez ficar a olhar para as fotos da mulher vestida de palhaço, quando eu próprio acho esse fetiche uma coisa estranhíssima? Não tem a menor lógica!


A dona do caderno levantava-se também.

- Estou farta de sofrer às mãos de um autor sádico! Primeiro veste-me de palhaça numa orgia, a seguir provoca-me um ridículo sentimento de honestidade que me faz revelar todos os meus problemas e angústias a uma completa estranha que, só por ser a protagonista, tem o direito de saber a minha vida íntima!

O dono do café ia gritar mais uma injúria, com certeza apontada ao autor da história, mas não o conseguiu fazer. Fulminado por um súbito ataque cardíaco, caiu redondo no chão. Deixou três filhos e um divórcio por completar.

Neste momento, sem razão aparente, um enorme elefante branco entrou pelo café adentro, de tromba rija e acutilante de um lado para o outro, partindo mesas e cadeiras.

- Vamos correr! – disse a mulher que encontrara o caderno – Eu exijo um nome, a propósito!

Sofia agarrou na mulher vestida de palhaço e arrastou-a para fora do café, onde o elefante continuava a atacar aleatoriamente as peças de mobília.

- Eu também quero um nome! Já! – gritava a mulher que aparecera vestida de palhaço nas fotografias. Sofia arrastou Roberta pela rua abaixo, e depressa corriam as duas para longe do elefante branco.

- Este autor é sádico – disse Roberta – Temos de fugir daqui! Estou farta de temer tudo na minha vida!

- Precisamos de um carro. Temos de fugir desta história o mais depressa possível. Aquele elefante quase nos matou, quem sabe o que este autor pode inventar a seguir!

Uma chuva de balas, e as duas mulheres caíram para trás de um carro estacionado. Olharam cuidadosamente por cima do capot. Do outro lado da rua, um pelotão de fuzilamento colombiano corria na sua direcção, de armas apontadas.

- Meu Deus! – disse Roberta, recomeçando a chorar. Sofia, mais calma, reconsiderou as suas opções.

- O autor está a tentar silenciar a nossa revolta, é mais doo que óbvio. Temos de sobreviver. Todas as pessoas nesta cidade estão a ser controladas. Todas, vítimas silenciosas de um autor com a mania que é Deus, um sádico maníaco que sente prazer ao controlar as vidas destas personagens inocentes!

Entretanto Sofia, perdida no seu monólogo ridículo, percebeu que o seu monólogo ridículo fora apenas um truque do autor para a atrasar, e que o pelotão de fuzilamento colombiano estava já em cima delas. Sofia abriu a porta do carro mais próximo, que por coincidência estava aberto, e arrastou-se lá para dentro dom Roberta, que chorava.

O pelotão de fuzilamento rodeou o carro, que era um Ferrari. Sofia virou a chave na ignição, e o carro arrancou com um solavanco. O pelotão de fuzilamento desceu sobre o carro, esvaziando os cartuchos e soltando desesperados gritos em colombiano.

Sofia e Roberta aceleraram pela rua, ao volante do Fiat Punto. Roberta retirou o telemóvel da bolça.

- Vou ligar ao meu amigo da polícia, avisá-lo que estamos a ser perseguidas por um autor maluco.

Marcou o número, esperou pelo sinal. Ao fundo da cidade, no topo de um monte, um enorme e redondo meteorito cruzou os céus, e foi rasgar a enorme torre de comunicações da cidade. Uma enorme nuvem de fogo, depois uma coluna de fumo negro a erguer-se nos céus. O telemóvel de Roberta ficou sem rede.

- Merda! – gritou Roberta. Baixou o vidro, colocou os braços fora do Fiati Punto que acelerava pela cidade descontroladamente, e começou a gritar!

- Socorro! Por favor! Alguém nos ajude! Ahhe! SJU e! Eiha! Uh!

Sofia, surpreendida, puxou Roberta para dentro do carro.

- O que estas a dizer?

Roberta olhou-a surpreendida.

- Ahe dynd?!

- O quê?

- hGy!

- Não estás a fazer sentido! O autor tirou-te a capacidade para falares, deliberadamente, para que o alerta do seu sadismo não chegue às outras personagens indefesas!

Roberta tapou a boca, recomeçou a chorar, voltou para fora da janela e agitou os braços, gritando barbaridades.

Viraram uma esquina, exactamente no momento em que o indicador de combustível do Fiat Punto chegava ao fim e o veículo começava a abrandar. Do outro lado da esquina, como que à espera delas, estava um enorme dinossauro vermelho, cuspindo fogo e alimentando-se de transeuntes inocentes que não conseguiam fugir ao seu raio de destruição.

- Como é possível um autor destruir uma história desta forma, com maus enredos e situações inacreditáveis? – perguntou Sofia.

- Afg! Uh! – respondeu Roberta.

O dinossauro, eficiente máquina de destruição, agarrou no Fiat Punto e levantou-o à altura da sua cabeça.

- Afghyt! – gritou Roberta, chorando em desespero.

- Nãaao! – gritou Sofia, num choro melodramático que ilustrava bem a falta de personalidade e verosimilhança desta personagem.

O dinossauro engoliu o Fiat Punto com convicção e apetite. Os gritos de Sofia e Roberta desapareceram por entre os ruídos da digestão da monstruosa criatura, que seguiu o seu caminho de volta à caverna nas montanhas onde nascera. O autor anda por aí, à solta, a usar mais personagens para seu divertimento e proveito e sem nunca lhes pedir autorização.

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domingo, 20 de dezembro de 2009

"Mas afinal como podes não gostar do Natal?!"

Não gosto do Natal, e não só não gosto como tenho um pequeno ódio pessoal e bem justificado por esta época. Aqui apresento os meus argumentos. Se alguém não for convencido com isto e depois de ler este post continuar a gostar do Natal, peço desculpa por vos ter feito perder tempo.

Argumento # 1 – O Consumismo e a Obrigação de dar prendas a toda a gente

Este é um clássico. Eu sei que o Natal é uma festa de família, uma tradição, uma celebração da vida, um momento para estarmos juntos, em harmonia com quem amamos, etc, etc, etc. Mas sejamos sinceros, o Natal é para gastar dinheiro. Por alguma razão os trabalhadores recebem o 13º mês, por alguma razão os supermercados e as lojas ficam cheias, por alguma razão o tempo médio de publicidade duplica em qualquer canal. O consumismo expressa-se não só nas prendas, mas também na enorme quantidade de tralha que “temos” de comprar, desde os doces tradicionais até ao bacalhau. Toda a gente anda de um lado para o outro a contar os trocos, e a gastar balúrdios em prendas para a família e amigos. Convencionou-se que seria assim, e não há nada que possamos fazer senão entrar no jogo. Pensem, por momentos, nas consequências de quem não dá prendas. Parece que se trata de uma ofensa pessoal. Supostamente as prendas dadas mostram o amor e a estima que sentimos pelas outras pessoas, e na minha opinião é o pior sistema de sempre por duas razões.

Primeiro, porque não vejo como gastar dinheiro num produto (mesmo que desejado pela pessoa a quem o vamos dar) possa remotamente ser a prova do nosso amor e estima por ela. É uma noção ridícula e contra-producente, que transfere uma mensagem de amor ou de amizade para dentro de um embrulho. Eu não preciso que a minha família ou amigos gastem dinheiro e andem a correr à procura de uma prenda que me agrade, como se uma prenda que eu não gostasse me estragasse o Natal e me fizesse achar que estas pessoas, afinal, não me têm em grande consideração.

Segundo, porque se cria esta espécie de obrigação social e generalizada, em que temos prendas “obrigatórias”. Não podemos deixar de oferecer qualquer coisa aos miúdos, porque, coitadinhos, pronto, é Natal. Ah, e não esquecer que se vamos a casa do Não Sei Quantos temos de levar-lhes qualquer coisa. Para além de todas as prendas que devemos comprar a Fulano, porque no ano passado ELE deu-nos qualquer coisa. Cria-se uma rede bem oleada de obrigações, em que as prendas passam de mão em mão sem nunca sabermos como começou tudo isto. E alguém que se recuse a dar prendas é rapidamente tratado com desdém, como quem não vê os jogos da selecção nacional durante Europeu.

Quem não ouviu já aquela velha frase “Eia, acabei de comprar uma coisa para o Não Sei Quantas que é perfeita para lhe dar no Natal!”. No Natal? Porque não JÁ? Se as prendas servem para mostrar aos outros como gostamos deles, porque não dar já a tal prenda perfeita, ao invés de esperar pelo Natal.

Eu respondo: Porque se derem já a prenda, ficam com a responsabilidade de lhe encontrar OUTRA prenda para o Natal, altura em que realmente têm de lhe oferecer qualquer coisa!

Argumento # 2 - Celebração idiota; o Natal é para estar com a família!

O que é o Natal, no fundo? Do ponto de vista religioso, é a celebração do nascimento do Menino Jesus… apesar de ao que parece ele não ter nascido a 25 de Dezembro. Do ponto de vista não-religioso, é uma festa que junta a família, que celebra o amor, que é importante para unir e para trazer felicidade.

Ora, isto não só é mentira (uma família que se junte de propósito no Natal, e apenas no Natal, para celebrar a união entre os seus familiares, é uma hipócrita), como diz muito sobre o que andamos a fazer o resto do ano. Se precisamos que o calendário nos diga quando nos devemos reunir com a família, e quando devemos mostrar aos outros que gostamos deles, então o que andamos a fazer o resto do ano? Porquê convencionar esta data em Dezembro para juntar toda a gente? “Quando vais visitar os teus pais’”, “No Natal, claro”. Claro porquê? Porque não JÁ? Porque não juntar a família num banquete cheio de doces e porcarias que engordam em Julho? Porquê criar uma aura de tradição e costumes familiares à volta desta data, quando podemos alimentar o espírito de família noutras ocasiões, sem ser necessária uma tradição que nos ajude a defini-lo?


Argumento # 3 - Falsa solidariedade

Uma das coisas que mais surge com o Natal, para além do consumo, são as campanhas de solidariedade. Escuso de estar a enumerar os mecanismos que as organizações utilizam para recolher donativos, toda a gente já se deparou com milhares de coisas destas. Ajudar o próximo e Apoiar os mais necessitados são mensagens que ouvimos imenso.

O engraçado é que os mais necessitados só parecem precisar de ajuda no natal. Fora alguma campanha ou outra, pouco ouvimos falar de solidariedade noutras alturas do ano. No Natal, no entanto, é quando surgem as mensagens cheias de poderosos catalisadores de solidariedade, defendendo que não podemos esquecer os que mais precisam. Este número elevado de pedidos bombardeiam a população nesta altura por uma razão muito simples: é uma data bonita, em que todos devemos reflectir sobre o que temos e sobre as pessoas que não têm nada, e por isso é nossa obrigação ajudá-las.

Ora, isto é uma hipocrisia. No fundo, o que se passa aqui é um caso bastante óbvio de pura culpa. As organizações solidárias (cujo trabalho é absolutamente maravilhoso, não me interpretem mal) aproveitam esta altura do ano para chamar a atenção das populações porque é exactamente no Natal que toda a gente está a gastar dinheiro em porcarias para comer, em bons vinhos, em caixas de bombons para dar às tias, em telemóveis novos para os sobrinhos ou em carros telecomandados para os miúdos. É nesta altura que as pessoas sentem culpa por gastarem dinheiro em tamanhas tretas, e sentem que, ao comprar um livro de uma avestruz amarela ou contribuir apenas com 60 cêntimos através de uma chamada telefónica, estão a compensar o dinheiro gasto em ninharias ajudando um menino africano com lepra.

Acho isto óptimo, porque muita gente pobre recebe ajudas nesta altura do ano; mas ao mesmo tempo, era bom que esta ajuda viesse de absoluta honestidade e boa vontade, em qualquer momento do ano, ao invés de ser o resultado de uma enorme culpabilização em quem gasta dinheiro em prendas. É uma solidariedade falsa e desonesta.


Argumento # 4 - Pai Natal e o porquê de se portar bem/ prendas como recompensa

Perguntem a qualquer miúdo pequeno o que é o Natal, e eles vão com certeza responder-vos “É aquela altura bonita, em que posso finalmente rever os meus familiares e estar com quem mais amo”.

Na verdade, a resposta que vão obter é curta e honesta: “Prendas”. Para a pequenada, o Natal é uma espécie de data mágica onde, sem razão nenhuma, recebem um saco enorme de prendas. Não percebem bem porquê, só sabem que desde que se lembram há um homem gordo e vestido de vermelho, provavelmente um milionário excêntrico, que lhes vem deixar prendas a casa. E, além disso, já conhecem de cor a ladainha do “Se não te portares bem o Pai Natal não te traz prendas!”.

É absolutamente ridículo ensinar uma criança que deve arrumar o quarto ou ajudar a pôr a mesa porque, se não o fizer, não recebe prendas numa data mágica. Além disso, utilizam esta pequena ilusão inocente do Pai Natal para que os filhos não façam cá chantagens emocionais com os pais. “Olha que é o Pai Natal que te está a controlar, não temos nada a ver com isso! Se não te portares bem ele vê-te e não te traz prendas!” Esta mudança da responsabilidade é elegante, e os miúdos realmente andam durante uns tempos na linha; não pelas melhores razões, mas andam. Fora aqueles que, mesmo portando-se mal, recebem todas as prendas que pediram e os beijos apaixonados e babados dos paizinhos. Que lição a dar às crianças, nesta época de amor e harmonia!

Ei, aqui está uma ideia: e que tal meterem-nos a procurar por entre a tralha que têm na caixa dos brinquedos, fazerem-nos escolher um brinquedo com que já não brinquem, e levarem-nos a uma instituição para que possam dar o brinquedo em mão a uma das tais crianças necessitadas? Davam a tal “alegria” a todas as crianças órfãs com cancro que conseguissem encontrar, ensinavam uma valiosa lição aos vossos pequenos.



Isto tudo, claro, sem esquecer as pequenas coisas que tornam o Natal absolutamente irritante: as músicas, o vermelho em todo o lado, as decorações a chuparem a electricidade municipal, a publicidade homicida, os programas de variedades, as figuras dos Pais Natal nos centros comerciais, o sentimento constante de alegria estúpida e despropositada e os filmes de 4 horas e meia sobre a vida de Jesus e os Dez Mandamentos, sem esquecer o Sozinho em Casa e o ET.


Apresentei os meus argumentos, sintam-se convidados a apresentar os vossos.

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A Branca de Leite e os Sete Mafiosos

Prémio para quem reconhecer primeiro qual a história infantil plagiada neste texto.


Era uma vez uma bela imigrante de leste chamada Branca de Leite. Ela tinha esse nome porque tinha uma pele muito clarinha e pálida, já que vinha de um país onde neva todo o ano e não faz sol. A Branca de Leite tinha alguns problemas com as autoridades (especialmente aquelas perto da fronteira), pelo que a sua situação era precária: estava ilegal naquele Reino, e trabalhava como uma escrava para a Rainha, sua Madrasta má.

Por isso, a Branca de Leite vivia no castelo gigantesco e desproporcionado da Rainha, onde tinha de esfregar e engraxar, lavar e ensaboar, cozinhar e desengordurar, costurar e lustrar. Passava os dias inteiros a lavar as escadarias do castelo (assim que acabava o lance principal já todos os outros tinham tempo para se sujarem outra vez!), a costurar os longos e vistosos vestidos da Rainha, a tratar das refeições, a limpar as casas de banho banhadas a ouro, a aspirar as migalhas no salão de jantares. A Branca de Leite mal tinha tempo para si… Mas apesar de tudo, era a rapariga mais bela do Reino!

O que, como é lógico, despertava inveja na Madrasta má. Como todas as Madrastas más, esta era invejosa e maliciosa. Tinha cinquenta anos e nem uma ruga, e orgulhava-se de “nunca ter feito uma plástica”. Para além disso, era mentirosa.

A Madrasta má vivia para as festas, cocktails, penteados e nenhuma, absolutamente nenhuma plástica. No entanto, e apesar de toda a sua vida ser cheia de preocupações à volta de sapatos novos, malas de pele e centros de mesa para as suas festas, a Madrasta tinha muito tempo livre, pelo que passava várias horas a olhar para a Branca de Leite, do cimo da sua torre de marfim e diamantes importados, alimentando a sua inveja pela bela menina.

- Maldita Branca de Leite! – dizia ela todos os dias; e a seguir, voltava-se para o seu televisor plasma de 25 polegadas e perguntava: - Televisor meu, televisor meu! Haverá alguma mulher mais bela do que eu?

E o televisor, sabendo dos muitos problemas de auto-confiança da Rainha, respondia mecanicamente:

- Não! Não há nenhuma, neste mundo, mais bela do que tu!

Claro que havia; era a Branca de Leite! O televisor sabia-o muito bem. Aliás, sabia-o ele e todos os habitantes do Reino. Só a Rainha é que vivia em negação.

Ora, no dia em que a nossa história começa, tudo estava no seu devido lugar no Reino: A Madrasta procurava um novo serviço de catering para a sua festa de Primavera, no alto da sua torre; e a Branca de Leite lavava a escadaria à entrada do castelo com uma escova de dentes e líquido anti-calcário. Foi então que, vinda de lá do fundo da estrada, surgiu uma bela e brilhante mota branca, cromada e ofuscante. Montada nela vinha um homem louro, musculado, de ombros largos e roupinha de nobre: um verdadeiro Príncipe Encantado! A Branca de Leite olhou, rendida; e o Príncipe, reparando na bela rapariga de leste, abrandou até parar e meteu conversa:

- Boa tarde, minha senhora! – disse o Príncipe, com um sorriso encantador. A Branca de Leite largou acidentalmente a escova de dentes e sorriu nervosamente.

Foi com surpresa Madrasta má, entre dois telefonemas para floristas, veio à janela espreitar se chovia e deu por si a olhar para a sua escrava de leste a conversar amigavelmente com um Príncipe Encantado. Em fúria, pôs-se a observar detrás dos cortinados importados, resmungando:

- Maldita Branca de Leite! Maldita Branca de Leite!

O televisor, que estava mesmo a ver o que aí vinha, preparava-se para a resposta habitual.

- Maldita Branca de Leite! – repetia a Madrasta, enquanto a jovem de leste, lá em baixo, oferecia amavelmente uma cerveja fresquinha ao Príncipe Encantado. – Olhem para aquilo! Até lhe dá uma cerveja!

O televisor afiou a língua.

- Televisor meu, televisor meu! – começou a Madrasta, dramática – Haverá alguma mulher mais bela do que eu?

- Não, não há nenhuma mulher mais bela que tu! – começou o televisor, mas não resistiu, e acrescentou – Mas a Branca de Leite é mais simpática!

A Madrasta arremessou o telefone portátil contra o ecrã do televisor, que se rachou ao meio e cambaleou, desequilibrado com o impacto.

- MALDITA BRANCA DE LEITE! – gritou a Madrasta. Houve um momento de pausa. O televisor estava dorido e arrependido. A Madrasta reflectiu durante uns segundos e voltou a pegar no telefone, apanhando-o do chão.

- Chega! A Branca de Leite não voltará a estragar o meu humor! – procurou por entre os números e encontrou o “Assassino Profissional”. Carregou no botãozinho verde e encostou o telefone à sua orelha totalmente desprovida de plásticas.

No dia seguinte, a Branca de Leite foi simpaticamente convidada pela Rainha a ir apanhar flores para decorar o castelo, acompanhada por um florista chamado Romeu. O florista Romeu tinha luvas de seda preta e um ligeiro relevo dentro do casaco, mas a Branca de Leite, na sua inocência, pensou tratar-se de um alicate. Foram pelos campos fora, a Branca de Leite a colher flores e a correr com os animais da floresta. Romeu olhou para a bela rapariga. Era tão bonita, tão inocente e simpática; até lhe prometera uma cerveja fresquinha quando chegassem ao castelo, se Romeu a deixasse colher flores para ela e levá-las escondidas debaixo da blusa! Romeu olhou em volta para a planície e achou-a suficientemente deserta. Engatilhou a arma dentro do bolso do casaco e olhou para a sua futura vítima mais uma vez. Branca de Leite, sentada debaixo de uma nespereira, acariciava um coelho, cheirava o aroma das flores que colhera, sorria ao ver as formas engraçadas das nuvens lá em cima, no céu, sonhava com Reinos longínquos e Príncipes Encantados…

Romeu, o florista, posicionou o silenciador atrás das costas e aproximou-se dela por trás. Ela não deu por nada; continuou a acariciar o coelhinho e a cantarolar inocentemente. Romeu parou. Pobre rapariga, pensou ele. Tão nova, tão bonita, tão simpática, e escrava da Rainha má… Uma súbita onda de compaixão fez tremer o dedo de Romeu, que entretanto se colocara no gatilho do silenciador mas que agora hesitava. Branca de Leite cantarolava na sua língua natal uma música de embalar. O coelhinho adormecia no seu colo. Romeu tirou o dedo do gatilho e limpou a lagrimita ao canto do olho. Arrumou o silenciador dentro do bolso e chamou:

- Branca de Leite!

A menina olhou para o florista com um sorriso carregado de alegria.

- Branca de Leite, ouve o que te vou dizer… A Rainha trouxe-me aqui para te matar! Eu não sou florista coisa nenhuma! Devia estar a liquidar-te… mas não consigo… - outra lagrimita – Tens de fugir, fugir para muito longe! Vai, foge para a floresta e nunca mais voltes! Senão a Rainha mata-te a ti… e a mim também!

A Branca de Leite ficou muito surpreendida, e nem conseguiu dizer nada. O Romeu continuou a segurar o alicate dentro do bolso, virou-lhe as costas, comovido, e desapareceu atrás da nespereira! Branca de Leite viu-o a afastar-se pela clareira.

- Romeu! – chamou ela. O coelhinho ao seu colo acordara entretanto, e olhava-a com curiosidade.

Romeu afastou-se rapidamente. Pelo caminho, tirou as luvas de seda e deitou o silenciador a um riacho: decidiu reformar-se.

Pobre Branca de Neve! Sozinha na floresta, sentiu-se subitamente perdida e assustada. Nunca tinha saído do castelo onde morava desde que chegara ao Reino; e muito menos conhecia aquela floresta! Andara tantas horas com o florista Romeu que já nem sabia de que lado tinha vindo.

- Coelhinho, coelhinho! – exclamou ela, com um ligeiro beicinho – E agora? Para onde vou? Como volto para casa?

O coelhinho não lhe soube responder, e encolheu os ombros. A Branca de Leite levantou-se da sombra da nespereira e olhou em volta. Estava absolutamente perdida! Para onde ir? Tinha de encontrar alguém que lhe pudesse emprestar um telefone, ou tentar chegar a uma estação de serviço! Sem mais demoras, e porque já era fim da tarde, pôs-se a caminho.

Horas se passaram, e a nossa pobre Branca de Leite continuava perdida no meio da floresta. Anoitecera muito rapidamente, e Branca de Leite estava cheia de fome, frio, e medo de dar de caras com algum polícia! Mas ela sabia que nunca podia desistir, e por isso continuou a caminhar, a caminhar, a caminhar… Até que…

Ao virar uma esquina e ao espreitar por detrás de um tronco muito grosso, Branca de Leite avistou uma vivenda muito pequenina, com ar tradicional e um a tabuleta por cima da porta que dizia “RESTAURANTE ITALIANO”.

- Que belo restaurante! – pensou a Branca de Leite – E eu que adoro canelones… Vou entrar!

Aproximou-se da porta, que era muito pequenina; teve de se dobrar só para conseguir tocar a campainha! Esperou uns segundos e a porta abriu-se pouco depois; e de lá de dentro saiu… um anãozinho!

- Oh! Uma pessoa pequenina! – exclamou a Branca de Leite, deliciada.

- Quem és tu? – perguntou o anão com maus modos, encostando-se à ombreira da porta para não deixar que se visse o interior.

- Chamo-me Branca de Leite e estou perdida na floresta há horas! Só procuro um sítio para descansar e um telefone para ligar ao Apoio ao Imigrante! – disse a pobre rapariga, tão convincente que o anão a olhou de alto abaixo com desconfiança mas desviou-se para a deixar entrar.

Branca de Leite curvou-se para conseguir passar pela porta, e quando lá estava dentro olhou em volta e apanhou uma grande surpresa: não era só um anão que vivia naquela casinha, eram 7!

Os anões estavam sentados a uma mesa redonda, coberta de cartas, fichas de póquer, maços de notas e fumo de charuto. Todos os anõezinhos olharam para ela do alto dos seus colarinhos engomados. Todos vestiam camisas de seda, pulseiras e colares de ouro, anéis no dedo mindinho. À sua volta, dezenas de caixas de aparelhagens e televisores.

- Oh! Tão pequeninos! – exclamou a Branca de Leite, a aproximar-se e a tossir por causa do fumo.

- Quem é esta? – perguntou um anão de smoking.

- Não te devemos dinheiro, pois não? – perguntou outro.

- És da polícia? Luigi, vê se ela tem microfones no decote! – ordenou um anão de cabelo branco lambido para trás.

- Olha que estás aqui enganada… Não não fazemos contrabando de diamantes!

O anão chamado Luigi ainda espreitou, em biquinhos de pés, à procura de microfones; mas nada.

- Eu não vos quis perturbar… - disse a Branca de Leite, encolhendo-se – Desculpem, é que ando perdida na floresta e achei que podiam dar-me um pratinho de massa… Estou tão fraquinha…

O anão do cabelo lambido para trás, proprietário de um serviço de acompanhantes de luxo, viu potencial na Branca de Leite.

- Luigi! La pasta! – ordenou ele, e o anão chamado Luigi correu para a cozinha, regressando depois com um prato de esparguete para a Branca de Leite.

Os sete anões viram-na a comer o esparguete, deliciada. Quando terminou, pediu por um sítio para descansar, porque estava muito fraca de toda a caminhada.

- Claro, Branca de Leite! – convidou o anão do cabelo lambido, puxando o cabelo ainda mais para trás com um pente que trazia no bolso da camisa – Anda, vou levar-te para os nossos aposentos!

E lá foi a Branca de Leite subir as escadinhas pequeninas, atravessar o corredor pequenino, entrar no quarto pequenino e deitar-se nas camas pequeninas dos sete anões. O cansado e o peso da bolonhesa dentro do estômago eram tão grandes que ela adormeceu assim que encostou a cabeça numa das almofadas.

No dia seguinte, a Branca de Leite foi acordada por um dos anões.

- Nós vamos agora para a nossa mina de diamantes totalmente legalizada, só voltamos à noite. Não abras a porta a ninguém, especialmente se estiver fardado. E não vás à cave. Não há lá absolutamente nada nem ninguém de interesse, ok?

A Branca de Neve concordou e despediu-se do anão, sem antes agradecer a hospitalidade. Levantou-se das sete caminhas e desceu para o rés-do-chão, a tempo de ouvir o som de sete carros desportivos afastarem-se a toda a velocidade. Sentou-se numa das cadeirinhas pequeninas e olhou em volta.

- Que desarrumação! Estes sete anõezinhos precisam de uma mão feminina nesta casa! Ainda por cima são pessoas tão simpáticas… Vou limpar-lhes a casa, para lhes fazer uma surpresa! Onde estará o limpa vidros?

Mas mesmo quando a Branca de Leite se estava a começar a sentir em casa, outro perigo se preparava para cair sobre a nossa pobre protagonista…

É que a Madrasta má descobrira que Romeu, o “florista”, a tinha enganado; e depois de o punir eficientemente, adiou todos os seus compromissos sociais para encontrar e castigar a Branca de Leite. Fez um ou outro animal da floresta falar sob ameaça de morte e, após algumas horas passadas no Google Earth, descobriu finalmente a localização do restaurante italiano onde Branca de Leite alegadamente se escondera.

Vestida de inocente velhinha vendedora de enchidos, caminhou pela floresta até encontrar o restaurante italiano. Contendo o entusiasmo, curvou-se sob o próprio peso e fingiu tremeliques nas mãos. Tocou à campainha.

- Quem é? – perguntou a Branca de Leite, segurando o Swifer do outro lado da porta.

- Apenas uma inocente velhinha vendendo enchidos, como complemento para a reforma… - disse a Madrasta, na sua melhor imitação de voz debilitada.

A Branca de Leite abriu a porta e espreitou. Comoveu-se, ao avistar a suposta velhinha:

- Pobrezinha! A vender de porta a porta numa idade tão avançada?

- Coitadinha de mim! Anda, compra-me um enchido… Só isso me trará alegria e me tirará da mais pura das misérias… – disse dramaticamente a Madrasta com uma mão na testa, estendendo-lhe debilmente a cestinha cheia de chouriços.

A Branda de Leite olhou para a cestinha com curiosidade, e analisou os enchidos.

- Têm um óptimo aspecto! Oh minha senhora, gostava tanto de a poder ajudar… - entristeceu-se – Mas não tenho aqui trocos nenhuns… Deixe-me ver se eu… - começou a Branca de Leite, preparando-se para entrar em casa à procura de moedas; mas a Madrasta (perdão, a velhinha) interrompeu-a com um choradinho comovido.

- Ora essa, minha linda menina… Eu ofereço-te um destes belos chouriços!

- Mas… Não, não posso aceitar! E o seu complemento de reforma? – angustiou-se a Branca de Leite.

A Madrasta continuava a estender-lhe insistentemente o cestinho dos chouriços.

- Não tem importância nenhuma, minha menina! Eu volto cá noutro dia com umas farinheiras e aí pagas-me tudo de uma vez…

- Não senhor! Eu insisto! Não posso aceitar os chouriços se não me deixar pagar!

A Madrasta, impaciente, forçava agora o cestinho de encontro à barriga da Branda de Leite, mantendo o sorriso amarelo e desdentado:

- Eu já lhe disse que não tem importância… Aceite lá o chouriço…

A Branca de Leite olhou da velhinha para o chouriço, do chouriço para a velhinha.

- Bem… Talvez me deixasse prová-lo… - sugeriu, envergonhada.

A Madrasta tentou lembrar-se da embalagem do veneno que pusera no chouriço, mas não conseguiu recordar qual era a dose mínima recomendada; mas mesmo correndo o risco de não a matar imediata e dolorosamente, decidiu aceitar.

- Ora então prove lá um bocadinho, a ver se gosta…! – cortou uma grossa rodela de chouriço vermelho e estendeu-o à Branca de Leite, que o olhou esfomeada.

- Que bom aspecto! Adoro gastronomia! – e deu uma dentada. Mesmo estranhando a reacção de puro entusiasmo da velhinha ao vê-la comer a rodela, mastigou, saboreou e engoliu.

- Muito obrigado! – disse a Branca de Leite, satisfeita, segundos antes de revirar os olhos e cair redondamente no chão.

A “velhinha” soltou uma gargalhada, atirando a cestinha dos chouriços para o ar. Tocou levemente com o pé na barriga da Branda de Leite, como quem atropela um cão e vai ver se o matou mesmo. Não obteve reacção, e soltou outra gargalhada. A sua enteada estava morta!

Imaginem o susto que os anões apanharam ao chegar a casa ao fim da tarde, com os seus diamantes perfeitamente legalizados! Os sete anõezinhos saíram dos seus carros desportivos e foram dar com a Branda de Leite estendida à porta de casa, com chouriços e morcelas espalhadas à sua volta. O anão do cabelo grisalho lambido para trás pontapeou-a levemente, sem cerimónias. Ela não se mexeu.

- É a terceira vez esta semana… - resmungou, conformado – Luigi, traz os sacos do lixo! Vamos levá-la para o rio.

Os anões envolveram a Branca de Leite nuns cerimoniosos sacos do lixo e meteram-na no porta bagagem de um Ferrarri. Conduziram até ao rio, onde se prepararam para o comovente funeral: Enquanto um dos anões verificava se a bagageira ficara suja de sangue, o anão do cabelo lambido para trás e Luigi apalpavam os bolsos da pobre rapariga, procurando objectos de valor. Depois, enrolaram-na de novo nos sacos de plástico, reforçando-os com aquela fita cola castanha, muito grossa, e arrastaram-na pelas pernas até à margem do rio.

O serviço fúnebre ainda estava a meio, e parte do saco de plástico ainda não estava mergulhada dentro do rio, quando o ronco de uma mota de enormes proporções se fez ouvir, aproximando-se. Os sete anões pararam o que estavam a fazer e puseram-se à escuta. Não conseguiam ouvir nenhuma sirene, pelo que continuaram a empurrar o volumoso saco do lixo para dentro do rio quando a mota branca de Príncipe furou por entre a vegetação e derrapou violentamente na margem do rio. Os anões ficaram paralisados ao ver o Príncipe descer da mota branca, ajeitando os collants de corrida e esvoaçando a capa sumptuosa atrás de si.

- O que têm aí, homenzinhos?

- Príncipe! – exclamaram os anões, exaltados. O Príncipe saltou agilmente por entre eles enquanto desembainhava a espada com um arco pelo ar e, num gesto bem coreografado, cortava o saco do lixo ao meio com um só golpe. A fita cola cedeu e o plástico rompeu-se ao meio, revelando a esbelta e estática figura da Branca de Leite, agora mais branca que nunca.

- Meu Deus! É Branca de Leite, a inocente criada que despertou o meu coração! – disse o Príncipe liricamente.

- Nós não a matámos!

- Nós nem sabíamos que ela estava aí dentro, pensávamos que eram plásticos, só que como o Ecoponto da nossa rua estava cheio viemos deixá-la aqui. Aliás, deixá-los!.

- O saco só tem as minhas impressões digitais porque tropecei para cima dele, mas eu juro que de resto não tive nada a ver com isto!

- Luigi, saca-lhe a mota!

Ao ver que Branca de Leite estava morta, o Príncipe rapidamente a desembaraçou do plástico que a plastificava e a levou para a sua mota, onde a deitou ao seu colo. Com um determinado pontapé e um jeitinho de pulso, colocou a mota a funcionar mais uma vez, e acelerou em direcção ao serviço de urgências mais próximo.

Os anões não foram acusados de homicídio, muito menos de tráfico de diamantes. O negócio vai de vento em poupa.

Quanto à Madrasta má, que tirara um curso-rápido de feitiçaria por correspondência, não conseguiu reverter o feitiço que a tornou idosa. Raramente convidada para festas ou cerimónias, viveu em reclusão no seu castelo com a única companhia do seu televisor.

Anos depois, fez três intervenções plásticas e uma rinoplastia. Actualmente exerce funções como conceituada figura pública.

Por milagre, a inocente albina foi reanimada a tempo. Seguiram-se uma endoscopia, uma lavagem estomacal, análises ao sangue e à urina e dois dias de repouso. O Príncipe esteve sempre a seu lado, e depois do devido consentimento médico, voltou a pegar na bela albina ao colo e a levá-la para a sua mota. Aceleraram romanticamente em direcção ao pôr-do-sol, onde algures atrás do horizonte os esperavam o reino do Príncipe que fez da pequena criada albina sua princesa e rainha. Foram, obviamente, felizes para sempre.


FIM

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quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O meu dia

São onze da noite, e como está na altura de completar o meu diário gráfico para o apresentar amanhã, vim para aqui escrever.

O curioso é que não tenho nada sobre o que escrever. Podia falar-vos de imensas coisas, sobre a minha opinião sobre uma quantidade enorme de assuntos; mas não me apetece falar sobre nada disso. Estou aborrecido, sem tema, sem qualquer coisa para dizer; por isso vou falar do meu dia.

Tive aulas de manhã, pelo que acordei cedo e não tomei banho porque o meu esquentador decidiu desenvolver personalidade própria. Desliga-se quando mais preciso dele, e quando não preciso decide começar a funcionar; um bocado como os sinais vermelhos quando temos pressa.

Depois regressei a casa, passei umas horas a jogar, adiando a inevitável verdade; tinha de adiantar o meu diário gráfico. É o que estou a fazer agora. Mesmo. Neste preciso momento.

Depois almocei, e a tarde foi correndo, e por volta das cinco fui até ao estádio do Benfica ver o treino do meu irmão mais novo. Se tudo correr bem e se não se fartar do futebol, daqui a uns anos vai ganhar mais por mês do que eu na vida toda.

Depois regressei a casa, passando pelo McDonalds para usufruir de uma calórica recompensa pelo fim do período escolar, e vim para casa. Quando entrei dei logo pelo cheiro, mas só quando fui até à sala é que vi o anão morto. Estava irreconhecível, e uma poça de sangue espalhava-se pelo chão da sala e sujava o tapete de Arraiolos que a minha avó fizera para pôr à frente do sofá. O tapete é bastante bonito, em tons de castanho e creme, com padrões agradáveis mas não pesados. Além de ser esteticamente agradável, dá muito mais conforto à sala, e parecendo que não aquece-nos os pés.

De qualquer forma, o anão morto estava sujá-lo. Pensei imediatamente na primeira coisa que me veio á cabeça, que foi, obviamente, será que conheço alguma lavandaria que me possa tirar esta nódoa sem estragar o tapete todo?

Depois de alguns momentos de reflexão, cheguei às minhas conclusões. Número um, não conhecia nenhuma lavandaria competente à qual desejasse entregar a custódia, ainda que temporária, do tapete de Arraiolos. Número dois, o anão tinha de sair dali, ou iria manchar não só o tapete mas também a cobertura do sofá.

Agarrei-o pelos pés, que estavam descalços, e arrastei o anão para fora da sala até ao hall de entrada. Pelo caminho foi deixando um pequeno rasto de sangue, e percebi rapidamente que o deveria limpar logo antes de secar. Fui buscar a esfregona ao pequeno armário com produtos de limpeza, e molhei-a na banheira, e esfreguei o chão.

A propósito, sentiram o sismo ontem de madrugada? Eu não. Acordei com o barulho de pedrinhas a caírem dentro das paredes, o que não faz muito sentido mas, juro, foi o que ouvi. Não dei por nenhum sismo, senão ter-me-ia levantado e atirado para a ombreira da porta mais próxima. Só de manhã é que, quando cheguei a escola, toda a gente estava a comentar que tinham acordado em quase pânico com o abalo. Fiquei um pouco abalado (que má escolha de palavra), uma vez que isto significa que pode haver outro sismo e que eu tenho um sono demasiado pesado para poder acordar e correr para a minha salvação a tempo.

O anão estava agora a sujar-me o hall de entrada, por isso fui buscar um plástico que tinha no quarto, levantei a cabeça do anão (que curiosamente era a única coisa que estava a sangrar) e deslizei o plástico por debaixo da mesma, voltando a deitá-la cuidadosamente. Procurei pelos documentos do anão, mas não encontrei nada que o identificasse.

Estudei as minhas opções. Poderia chamar a polícia. Mas isso significava que eu seria o principal suspeito, uma vez que só eu estive na casa durante esse dia e não havia sinais de entrada forçada.

Por isso fiz aquilo que achei mais correcto naquele contexto e situação: tapei o anão com o plástico e fui jantar.

Fiz uma massa que estava deliciosa, com atum e maionese. A maionese é daquelas de marca, que vem num frasco com uma tira de papel amarela e azul. Heins qualquer coisa. Para quem não sabe, é a melhor maionese do mundo. É também cara, pelo que às vezes é substituída cá em casa pela marca branca Pingo Doce. A do Pingo Doce também não é nada má, mas mesmo assim… Sente-se a diferença.

Portanto, jantei, lavei a louça, vi o telejornal, e depois desliguei o televisor com a preguiça de quem tem trabalho pela frente e não o quer fazer. Como a preguiça com a qual vos estou a escrever isto, com o diário gráfico e as aguarelas abertas ao meu lado esperando serem utilizados em estonteantes obras artísticas.

Já vos disse que devia estar a adiantar o diário gráfico?

De qualquer forma, fui buscar um cobertor e fita cola daquela castanha, grossa e larga. Enrolei o cobertor à volta do anão, e colei as pontas com fita cola (junto à sua cabeça, que teimava em sangrar e em me sujar o plástico que entretanto se inclinara e deixara escorrer sangue até debaixo do armário, o que significava que teria mais tarde de DESVIAR o armário para poder limpar o sangue na totalidade, o que era uma chatice). Abri a porta da sua, olhei em volta, e arrastei o anão até ao elevador. Puxei o elevador. Tocou-me o telemóvel.

Era o meu pai a perguntar-me sobre as prendas de Natal. Disse-lhe que podia receber o que ele quisesse, que o importante era não ter de comer bacalhau cozido na Consoada.

Disse ao meu pai que tinha de ir adiantar o diário gráfico, e desliguei o telemóvel. Foi nesse momento que a minha vizinha da frente, uma senhora simpática e bem parecida que insiste em me cumprimentar sempre quue nos cruzamos no elevador, abriu a porta de casa e saiu. Trocámos um olhar silencioso, e eu sorri-lhe abertamente, desejando boa noite. Ela desejou-me boas noites também, e perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim, e consigo? Ela disse-me que estava tudo bem, tirando o facto de ter acordado na madrugada anterior por causa do sismo. Eu disse que não, não tinha sentido nada, e ela disse-me que naquela idade já não tinha um sono tão pesado como quando era nova, e que acordava com qualquer barulhinho. Eu disse-lhe que era curioso, porque eu tinha um sono pesado e por isso não tinha sentido o sismo, e ela disse-me que ainda bem, porque ter-me-ia assustado de certeza, e eu disse que sim, muito provavelmente me assustaria. Ela perguntou-me o que estava eu a fazer ali, a arrastar um cobertor com fita cola e com um pé descalço saindo de uma das pontas, e eu não respondi, mas olhei para baixo. Um dos pezinhos do anão estava saído do cobertor, mostrando as unhas pequeninas e os dedos pequeninos. Ela perguntou-me se estava tudo bem, e eu disse que sim, e corri até ela e dei-lhe um murro na cabeça. Não esperava que ela caísse à primeira, mas foi isso que aconteceu. Entrei na casa dela (vivia sozinha), e fui buscar um cobertor, e enrolei-a no cobertor, e colei as pontas do cobertor com fita cola castanha, e arrastei-a para ao pé do anão. O elevador chegara, entretanto. Já repararam que os elevadores são como os sinais vermelhos de que falava há pouco? Quando estamos mais atrasados é quando um idiota se esqueceu de fechar bem a porta no sexto andar, e por isso temos de esperar um tempo infinito ou usar as escadas.

Abri a porta do elevador, e o meu telemóvel tocou outra vez. Era a minha mãe. Atendi, e disse-lhe que estava a meio do meu diário gráfico e que tinha mesmo de acabar. Ela foi compreensiva, desligou, e eu pude arrastar os dois cadáveres para dentro do elevador.

Desci até ao rés do chão, e abri a porta do elevador, e arrastei os dois corpos até à entrada do prédio, e abri a porta, e fui até ao carro da minha mãe, o qual não posso conduzir mas do qual tinha uma cópia da chave. Ainda vou em 12 ou 13 aulas de condução, mas estou a ficar muito melhor. Já consigo dominar a embreagem, o que é difícil. O equilíbrio entre carregar no acelerador e largar a embreagem tem de ser perfeito, para que o carro não vá abaixo ou arranque com violência. Estou a praticar bastante, e espero daqui a umas aulas dominar os pedais na perfeição.

Abri o porta bagagens do carro, que por acaso estava mesmo á minha porta e virado de costas para a mesma, e voltei ao hall de entrada, e puxei cada um dos cadáveres para dentro do porta bagagens aberto, e olhei em volta. Não estava ninguém à vista. O meu telemóvel tocou. Era a minha avó, a perguntar se estava tudo bem, e se eu tinha jantado. Disse-lhe que sim, tinha jantado muito bem, e que agora ia beber um chá e acabar o meu diário gráfico. Ela congratulou-me pelo fim das aulas, e eu sublinhei o gosto pelo facto de amanhã ser o último dia de aulas. É, realmente, maravilhoso. Pensar que tenho duas semanas para viver a minha vidinha calma sem preocupações de maior.

Fechei o porta bagagens, meti a chave na ignição, deixei a porta entreaberta, e voltei para casa. Fui ver televisão, porque estava a dar um filme fantástico. Entretanto adormeci, depois fui à casa de banho, lavei os dentes, essas coisas. Quando voltei à sala fui à janela, e o carro da minha mãe tinha desaparecido. Voltei para o sofá, onde me espreguicei por mais uns momentos antes de vir para aqui, adiantar o meu diário gráfico. Está muito melhor agora, a propósito. Estou a trabalhar a todo o vapor.

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Querida Pauline

Semana atarefada, por isso passei por aqui só para depositar qualquer coisinha do baú.

Estou muito entusiasmada com a vossa visita. Mal posso esperar por dia 23! Nem imaginas como é bom saber que vamos ter um Natal diferente. Desde que o Tom adoeceu que os Natais têm sido um pouco pesados sobre a minha família, porque há sempre aquela possibilidade a pairar sobre todos nós de que aquele pode ser o último Natal ao lado de Tom. É muito importante para mim vê-lo mais animado do que nos anos anteriores, e muita dessa sua animação tem que ver com a vossa chegada, podes ter a certeza.

Não quero que te preocupes com lençóis ou comida, temos tudo por aqui. Não venham com o carro carregado de garrafas de vinho! O Tom adora vinho e ambas sabemos que os nossos maridos são bom companheiros de bebida, mas não os quero imaginar embebedados na noite de Consoada! (É claro que estou a brincar, tragam o que quiserem! O que estou a dizer é para não se incomodarem porque deste lado está tudo tratado). Conheço um sítio fantástico para comprar o bacalhau, e tenho a certeza que o vão adorar. Espero que tu e o Ron gostem de bacalhau cozido. Aqui por casa é tradição, e o Tom faz mesmo questão. Eu já me habituei, mas se quiserem sempre podemos fazer uma bolonhesa para vocês! E se se sentirem mais confortáveis podem trazer toalhas de banho e lençóis, mas garanto-vos de que não é preciso. Eu e o Tom comprámos um serviço de toalhas turcas maravilhoso no Verão.

A verdade é que, como deves calcular, não te escrevo para falar de toalhas turcas mas sim de outro assunto. Venho pedir-te um favor, a ti e a Ron. Preciso que participem numa pequena conspiração familiar. Deixem-me explicar-vos:

Como sabem, o nosso filho Stan vem sempre passar o Natal cá a casa. Ele tem 27 anos e um emprego fixo numa empresa de publicidade em Narowbi, e é muito bem sucedido. Mas para nós a família sempre foi o mais importante, pelo que Stan tira sempre alguns dias de férias para vir passar a quadra natalícia connosco. Sabe-me muito bem ter o meu filho a dormir cá em casa, e como deves imaginar é muito importante para Tom estas pequenas coisas antes que seja tarde demais. Stan é um rapaz óptimo, e sempre apoiou muito o pai, até mesmo durante os tratamentos. Recebê-lo de volta a casa é um acontecimento importante, e tenho a certeza de que como este ano tu e Ron vão partilhar isso connosco terá um gosto ainda mais especial.

Falo-te de Stan porque ainda não tiveste oportunidade de o conhecer, e também por outra razão. Pauline, até tenho alguma vergonha em te estar a confessar isto, não quero ser mal interpretada. Amo imensamente o meu filho, e sempre o tratei com o máximo cuidado e carinho. Eu e Tom demorámos sete anos a conseguir ter um bebé. Não foi nada fácil, mas Stan veio ao mundo envolto no mais profundo amor. Cresceu debaixo das nossas asas, e vimo-lo tornar-se um homem atraente, honesto, trabalhador. Estamos orgulhosos do nosso filho, e amamo-lo muito.

Tenho que confessar que sempre fui uma mãe galinha, muito protectora e atenta. Stan nunca nos deu muitos problemas em miúdo, mas mesmo assim eu insistia na sua educação e segurança. A verdade, Pauline, é que vivia com pânico do mundo exterior, da rua, de que alguém de fora entrasse em nossa casa e violasse a inocência no meu menino. Talvez por isso ele seja hoje um homem tão doce: foi criado com todo o amor que lhe poderia alguma vez dar.

Não me orgulho particularmente das consequências dessa protecção exagerada. O Tom concorda comigo. Em muitas situações fomos demasiado severos e mimámo-lo muito, noutras exageramos na protecção. A verdade é que o mal está feito, e só me resta pedir-te que me compreendas e apoies.

O Stan ainda acredita no Pai Natal. Desde os seus dois anos de idade que lhe falávamos do velho de barbas brancas que descia a chaminé, e todos os anos o víamos entusiasmado e nervoso, na noite do dia 24, à espera do Pai Natal. Colocava o sapatinho debaixo da árvore, e à meia noite certa escondia-se debaixo da cama com os olhos fechados, apavorado com a possibilidade de assustar o Pai Natal com a sua presença. Eu e Tom achávamos amoroso e mantínhamos a farsa, como é óbvio. Mas Stan cresceu, e por volta dos 12 anos eu e Tom interrogámo-nos se era normal o nosso filho ainda acreditar no Pai Natal. Falámos muito nisto, Pauline, acredita. Assustava-nos porque, para todos os efeitos, bastava um pouco de senso comum da sua parte para desmontar a farsa. A verdade é que ele se mantinha fiel à sua crença de infância, mesmo sendo gozado pelos colegas da escola. Pensámos em contar-lhe a verdade, mas Stan crescia e transformava-se num rapaz tão doce e sensível que tínhamos medo de lhe estragar o Natal e, pior, traumatizar indefinidamente.

O tempo passou, Pauline. Sempre que Stan vem cá a casa na noite de dia 24, às 11 e 50 sobe para o quarto e fecha a porta, pedindo que façamos o mesmo. Tom sempre encontra uma desculpa para ir ver qualquer coisa à sala, altura em que deixa os presentes debaixo da árvore; e quando descemos depois da meia noite, nem imaginas a expressão de magia e surpresa na cara de Stan ao ver os embrulhos. Dói-me o peito de pensar como Stan pode ser ingénuo e inocente, mas não será isso melhor do que ser desapontado? Ver que o Pai Natal não passa de uma mentira infantil? Que consequências terríveis poderia isso ter num rapaz ainda jovem e tão sensível como ele? Morro de medo só de pensar, Pauline.

Por isso te peço: na noite de 24, sobe connosco para o quarto, finge esperar pelo Pai Natal, finge surpresa quando vires os embrulhos, e transmite esta mensagem a Ron. Espero que me compreendam e que desculpem esta mãe galinha. Fariam isso pela nossa amizade, certo?

Façam boa viagem e conduzam com cuidado. Se tiverem dificuldade em encontrar a nossa rua liguem-nos imediatamente, e Tom irá buscar-vos onde estiverem.

Um grande beijo para ti e para Ron

Com todo o amor,
Celine


***


Querida Pauline,

Peço desculpa por estar a escrever-lhe quando nem sequer me conhece, mas tenho a certeza que já ouviu falar de mim tanto quanto eu ouvi falar de si.

O meu nome é Stan, e sou filho de Tom e Celine. Sei que vamos passar o Natal juntos em casa dos meus pais, pelo que nos vamos conhecer em breve. Não podia, no entanto, deixar de lhe dar uma palavrinha.

Venho pedir-lhe um favor. A situação é no mínimo caricata, e espero que me consiga fazer entender. Garanto-lhe que não é uma brincadeira; eu sei que parece, mas não é.

A minha mãe sempre me tratou com todo o carinho e desproporcionada preocupação, o que resultou em muitos momentos humilhantes para mim. Mais do que beneficiar a minha segurança, esta educação tão cuidada fez com que a minha querida mãe criasse à minha volta um escudo invisível de todos os perigos exteriores que só ela via e sentia, e tenho a certeza que o fez com as melhores das intenções e movida por um pavor enorme de me perder.

Uma das consequências desta educação tão exageradamente preocupada foi o facto de a minha mãe, na sua inocência e cegueira de mãe babada, achar que eu ainda acredito no Pai Natal.

Sendo uma grande amiga da minha mãe, com toda a certeza sabe o quanto ela é frágil e inocente, especialmente quando confrontada com a doença do meu pai. A sua necessidade de proteger aqueles que ama consumiu-a de uma forma tão avassaladora que ainda mantém este tipo de fantasias, como se eu ainda tivesse seis anos e ainda vivesse naquela casa. Não digo isto com tom de crítica, pelo contrário: amo a minha mãe, e só lhe quero o maior bem. Por isso mesmo lhe venho pedir, Pauline, que me ajude. Na noite de 24, finja-se entusiasmada com a “chegada” do Pai Natal, e simule entusiasmo ao ver os presentes. Eu e o meu pai somos da opinião que a descoberta da verdade seria demasiado violenta para a pobre Celine. Há anos que mantemos esta pequena farsa, pelo que lhe velho pedir em meu nome e em nome do meu pai que nos ajude a enganar a minha mãe por uma boa causa.

Acredite que fazendo-o dará uma alegria à nossa Celine que não pode ser sequer imaginada.

Agradeço-lhe desde já a atenção e (por favor) a ajuda

Com carinho
Stan

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domingo, 13 de dezembro de 2009

Hic Sunt Dracones

O último dragão do mundo acordou, desenrolou as asas e espreguiçou-se.

Tinha os músculos completamente entrevados. Tentou esticar as pernas, mas entretanto bateu com a cabeça no tecto da caverna e voltou a deitar-se. As asas pareciam completamente adormecidas, como se milhares de agulhas minúsculas as estivessem a picar.

Dali conseguia ver um pontinho de luz mínimo. A entrada da caverna. Já lá iria, pensou. Tinha de retomar forças e relembrar como se mexia cada músculo. Quatrocentos anos de hibernação não são brincadeira nenhuma.

Tentou esticar a cauda, mas a caverna não era profunda o suficiente. As pernas ganhavam força. As asas também. Abriu a boca e experimentou cuspir. Uma labareda pequena mas eficiente projectou luzes vermelhas e laranjas nas paredes da caverna, antes de se extinguir. Não estava mal. Para tanto tempo quieto, não estava nada mal.

A caverna era desconfortável e precisava de esticar as asas. Rastejou, com o pescoço comprido colado ao chão da caverna e as asas encolhidas como as de um pássaro. O ponto de luz foi aumentando até o envolver completamente.

Depois de habituar os olhos à luz do Sol, o dragão percebeu imediatamente que o mundo tinha mudado. Havia um cheiro no ar que não existia. Era um cheio a metais pesados e a combustão mal resolvida. As árvores à volta da caverna pareciam as mesmas de quando ali entrara, mas podia estar enganado. Havia insectos, e nuvens no céu. Mas aquele cheiro… Aquele cheiro trazia algo novo.

Abriu as asas, esticando-as até ao máximo. Um coelho que por ali passava, aterrorizado, correu para trás de um arbusto. O dragão viu-o, e sentiu um enorme ronco dentro do estômago. Tinha de se alimentar o mais rapidamente possível. Estava fraco. Poderia voar?

Agitou as asas uma vez, depois outra. Todas as árvores à sua volta se inclinaram na direcção oposta, como que assustadas. O seu corpo de lagarto levantou-se lentamente do chão, ganhando altura a cada batida de asas. Estava no ar.

O vento continuava o mesmo, as nuvens e o sol também. Tinha saudades de voar. Sentiu-se o dono do céu. O seu corpo comprido fazia pequenas ondas verticais, como um golfinho a sair e entrar na água do mar. As asas afastavam insectos e pássaros enormes à sua passagem. Rei do céu. Ele era o rei do céu.

Olhou para baixo. A floresta lá em baixo era uma mancha indistinta de verdes escuros e claros, pedaços castanhos de terra ou elevações repletas de flores coloridas. Tudo na mesma. O mundo continuava verde. O dragão voava, e olhava para baixo. Foi então que a viu.

Era uma risca grossa e escura, que atravessava a floresta como uma ferida profunda. Os seus dois extremos desapareciam no meio das árvores, como se continuassem infinitamente para lá do horizonte. O dragão tinha a certeza que aquilo não estava ali. Dobrou as asas. Desceu.

Vista de perto a risca era preta e áspera. Tinha uma risca branca, mais pequena, a correr pelo centro como se a dividisse ao meio. O dragão afincou as garras ao solo estranho e não o reconheceu. Olhou para os dois lados. À direita, uma colina onde a risca desaparecia, à esquerda uma planície enorme onde a risca de perdia ao longe. Seria infinita? Começou a preocupar-se. Aquilo não estava ali antes, o que a fizera aparecer entretanto?

Ainda tinha os ouvidos meio adormecidos por ter estado tanto tempo a hibernar na caverna; provavelmente foi por isso que não ouviu o camião. Ele apareceu detrás da colina e começou a descê-la a uma velocidade acelerada. O condutor parecia ir distraído com a música, que estava altíssima. O dragão contemplava placidamente a risca infinita, enquanto descansava as asas. Recuperara as forças. Ia levantar voo.

Virou a cabeça para o outro lado, o enorme pescoço de lagarto a oscilar sobre a risca branca no chão. Abriu os olhos e tentou focar o que lá vinha. Um enorme monstro, com olhos de vidro, testa de cristal e correndo sobre rodas, aproximava-se rapidamente. O dragão abriu a boca furiosamente, e rosnou. O monstro oscilou momentaneamente, mas sem perder velocidade. Um enorme rosno saiu da boca do monstro, que corria descontroladamente na direcção do dragão. Ele abriu as asas, e recomeçou a rosnar enquanto tentava levantar voo. O monstro começou a abrandar, chiando como um demónio dos infernos, deixando marcas negras e fumo por onde passava. O dragão levantou as patas do chão, sentiu-se a flutuar; mas o monstro foi mais rápido.

A cabeça do dragão foi atingida pela testa de cristal do monstro sobre rodas, que se quebrou em milhares de pedaços. O pescoço do dragão entrou pela cabeça do monstro adentro, como se estivesse a espreitar para dentro de uma janela. As patas do dragão perderam as forças, e as asas caíram como gigantescos toldos ao vento. O monstro sobre rodas parou finalmente, com fumo a sair-lhe da boca. Havia sangue verde de dragão no chão, nas rodas, na cabeça do monstro.

Nenhuma das criaturas se mexeu. O último dragão do mundo perdera esta batalha.

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O amor e uma inacreditável quantidade de tripas

O tecido humano é extremamente fácil de romper. Basta uma lâmina afiada, uma pedra bicuda, um golpe aplicado com cuidado, um rasgar violento. Dentes também servem, claro. O zombie pouco tinha de inteligência dentro do cérebro apodrecido, pelo que usar instrumentos não seria o seu instinto. O seu instinto era mais simples e básico: romper e comer.

Sentou-se confortavelmente no centro da rua, onde antes havia engarrafamentos e acidentes variados devido ao enorme fluxo de tráfego. As únicas pistas desse passado não tão distantes eram agora o carro a arder a poucos metros, o engarrafamento bloqueado e deserto de vida do outro lado da via, com pedaços de corpos pendurados como fantoches abandonados. Pessoas que tinham tentado sair dos seus carros depois de repararem que dali não sabiam sobre rodas, e teriam de fugir a pé. Alguns conseguiram, outros ficaram por ali, outros ficaram por ali e agora estavam espalhados pela estrada fora, transformados numa mancha homogénea de carne mastigada e pedaços de roupa outrora impecável. O zombie estava sozinho, teria a sua vítima só para si. Mordera-o, depois torcera-lhe a cabeça, e esta saíra como uma pequena rolha de uma garrafa. O homem que acabara de matar ficara com o terror impregnado no rosto roxo. O zombie não o reconheceu, nem se preocupou. Procurou-lhe a barriga, rasgou-lhe a roupa a mais, despiu-o e começou o seu jantar.

A rua deserta estava em perfeito silêncio, apenas interrompido por um ou outro grito desesperado que durava pouco, rosnares ocasionais, e sirenes fugindo da cidade.

O zombie estava a mastigar, tentando despedaçar o intestino grosso para melhor eficácia de consumo, quando o outro zombie apareceu ao fundo da rua. Tinha sido, em tempos, uma mulher provavelmente bonita; era difícil distinguir, primeiro porque estava suja de sangue e terra, e depois porque lhe faltava a bochecha esquerda. Um enorme buraco, feito com violência, mostrava agora a sua dentição perfeita e avermelhada. A zombie tinha folhas secas no cabelo, as unhas partidas e arrancadas, os pés descalços e as calças esfarrapadas. Olhou para o zombie sentado no centro da rua, mastigando agora um órgão acastanhado. Rosnou. Começou a correr.

O zombie com o órgão na mão parou de mastigar, e olhou para trás. Viu a zombie aproximar-se a correr, mostrando os dentes, como uma hiena pronta a atacar uma presa. Levantou-se de um salto, largando o órgão castanho, rosnando também. A zombie chegou ao pé dele, dobrada sobre o próprio peso, os olhos baços e esbranquiçados tremendo. Rosnaram os dois, um para o outro, a ver quem avançava primeiro. O zombie colocou-se entre a zombie e a barriga aberta da qual se alimentava, e arqueou os braços. A zombie olhou para trás dele, deliciada.

Pararam de rosnar. O zombie olhou para a zombie, e vice versa. Ao fundo, uma gigantesca explosão, e na rua perpendicular àquela passou acelerando uma carrinha da polícia com cinco zombies agarrados ao para brisas como mosquitos gigantes. A carrinha foi rua abaixo, e a sua sirene foi desaparecendo.

O zombie dobrou-se, agarrou num punhado de tripas, trouxe-as consigo e voltou a levantar-se. A zombie olhava. O zombie estendeu-lhe as tripas, lentamente, olhando para ela. Ela aceitou. O zombie rosnou-lhe ameaçadoramente, apertou os braços contra o peito, um pedaço de intestino pendurado como uma corda por entre os nós dos seus dedos, como se mudasse de ideias. Observou-a com um olhar vazio de conteúdo. Pararam. Depois o zombie voltou a estender-lhe o intestino, a zombie agarrou-o, levou-o à boca aberta, abriu-a com uma fome desesperada, começou a mastigar.

Sentaram-se, e o zombie retirou outro pedaço para si. Ao longe, uma sirene desaparecia e um grito desesperado que se aproximava era cortado subitamente. Por entre os prédios o sol foi-se pondo, e enquanto anoitecia os dois zombies mastigaram sem parar, sentados lado a lado.

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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A irmã mais feia

Estava arrependido, deveras arrependido. Não havia nada que o fizesse mudar de ideias. Quis chorar, chorou, ganhou coragem. Sentiu-se idiota, naquela casa de banho de hotel, esperando o momento para sair e dizer à sua esposa que a lua de mel estava acabada, que este casamento era um erro, que amava na verdade a sua irmã e não ela. No próprio casamento olhara para ela, para a irmã, no seu pequeno vestido laranja, flor enorme no cabelo, lábios carnudos e prometedores de um exotismo eterno, e sentira o coração derreter-se como margarina. Quando ela soubesse, ficaria louca. Louca. Seria capaz de uma loucura. Remexeu pelo armário da casa de banho, procurou as lâminas de barbear e as tesouras para unhas e deitou-as no pequeno caixote do lixo ao lado da sanita. Respirou fundo. Ganhou coragem. Saiu.

A sua esposa estava a chorar, sentada à beira da cama, de vestido de noiva amarrotado, telemóvel caído no chão. Levantou a cara das mãos, olhou para ele com um par de olhos esborratados por causa da maquilhagem. Parecia o Joker.

- Não… - murmurou ela, desfalecendo aos seus pés.

- Querida! O que se passou? – a razão do seu nervosismo desaparecera. Como podia pedir o divórcio àquela mulher, que no fundo chegara a amar, um dia?

- Houve uma coisa horrenda… A minha irmã… - disse ela, atirando-se para os seus braços, sem saber o que dizer, chorando desamparada. Ele empalideceu. O sangue desapareceu-lhe da cara, sentiu-se frio e quente ao mesmo tempo.

- Querida, tenta controlar-te… O que significa isso? O que aconteceu? – mas ele sabia-o. Sabia-o, e não havia nada a fazer. Restava-lhe empalidecer, e esperar pela eternidade num casamento sem amor.

- A minha irmã… Ela fugiu! – disse finalmente a sua esposa.

- Fugiu?

- Sim!

- E é por isso que estás a chorar? – ele é que estava à beira do desesperto, naquele momento – Como pudeste ser tão exagerada? Pensei que lhe tinha acontecido alguma coisa! Que tinha morrido!

- Que disparate! Ela fugiu, e deixou uma carta idiota e desesperada, dizendo que te amava, que apenas tu a podias fazer feliz, que te queria… que… oh meu amor!

A sua esposa caiu-lhe nos braços mais uma vez. Ele agarrou-a, atirou-a para cima da cama, tentou acalmá-la. A irmã dela. A mulher do vestido laranja, da flor no cabelo. Fugira por ele. Amava-o.

- Ouve-me. Para onde fugiu ela?

- Sei la! A minha mãe falou-me que ela foi para a América do Sul! Não sei! O que te importa isso?

Ele largou a sua esposa, atravessou o quarto, foi à sua mala. Procurou por entre os calções de banho e o casaco de cerimónias, e encontrou a sua carteira com dinheiro e documentos.

- Desculpa-me – disse ele, suando, fechando a mala, olhando para ela – Desculpa-me, mas há algo que devo fazer. Menti-te todo este tempo, mas agora chegou o momento de ser honesto. Tenho de ir. Perdoa-me.

- O quê? Estás parvo? – perguntou-lhe a mulher, parando de chorar, como que desperta de um transe psicótico de lágrimas. Ele precipitou-se para a porta, abriu-a.

Na entrada estava uma mulher lindíssima, de flor enorme no cabelo e vestido cor de laranja.

- Seu absoluto filho da puta! – gritou a voz da sua esposa, atrás de si. Virou-se, a tempo de levar o estalo. Virou-se para a irmã outra vez, a tempo de ver chegar os seus sogros.

- Eu avisei-te que ele não era uma pessoa honesta – disse a mão, as mãos agarradas e dedos entrelaçados, como quem se depara com a presença do demónio em pessoa.

- Mentiste-me! Como pudeste fazer-me uma coisa destas?! – gritou-lhe a esposa. Deu-lhe outro estalo, este mais reflectido, mais pensado, e que por isso doeu mais.

- Mas… - ele não conseguia compreender, olhou para a sua esposa, que voltava a chorar, para a irmã dela que lhe sorria com a maior sensualidade que já vira.

- Não devias ter olhado para mim naquela forma no casamento – disse-lhe ela, detrás de toda aquela beleza – E estares sempre a fitar-me o rabo quando íamos todos à praia também não ajudou.

- Eu sabia! Eu sabia! – dizia a sua esposa, atirando-se para cima da cama. A sogra correu para abraçar a sua filha, o sogro ficou a olhá-lo friamente do topo da sua cara de bulldogue – Ias fugir com ela! No dia do NOSSO casamento! Como foste capaz?!

Não sei, pensou ele. Mas se pudesse, teria fugido mesmo. Olhou para a irmã outra vez, uma beleza quase sobrenatural, depois para os seus sogros. Eram pessoas ricas, com posses, com bons advogados. O divórcio ia ser doloroso.

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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Micro conto #8

- Hei! Tu! Espera!
Eu ouvi a voz, mas ignorei-a. Tinham-me avisado que era assim que se abordavam as pessoas para as assaltar.
Só quando cheguei a casa, duras horas depois, é que reparei que tinha as calças rasgadas no rabo.

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Momento de Poesia: "Honestidade"

É noite
Frio está
Ao longe,
Bem ao longe
As sirenes da polícia
Fazem eco pelos túneis
E circundam as rotundas
Ao longe,
Bem ao longe


É noite
Está calor
As janelas estão fechadas
O aquecedor ligado
O botão avermelhado
Apontando para o 6
Ao perto,
Bem ao perto.


É noite,
Está moderado
Sente ele
Ao sair da cama
E debaixo dos colchões
Sua amante espera
Ao perto,
Agora longe


É de noite,
Entra ele
Na casa de banho
Para urinar
Urina, pois,
Junto à sanita
Ao perto,
Bem ao perto,
Para não salpicar


É de noite,
Está calor
Dentro da cama
E ela espera,
E respira
Depois da actividade
Está despida
Porque vestida
Não dá jeito
Bem ao perto,
Bem ao perto


É de noite,
Moderado
Está fresco na casa de banho
Ele urinou
Lava as mãos
Olha-se longamente ao espelho
Ao seu lado, a escova de dentes
Do marido que não está
Está longe,
Bem ao longe


É de noite,
Está calor
Ela espera aquecida
Por pouco adormecida
Quando ouve a porta abrir-se
Ele entra, aproxima-se
Entra para junto dela,
Bem ao perto,
Tão ao perto

É de noite,
Está muito, muito calor
Ela quer repetição
Ele recusa, diz que não
Tem de ir,
A esposa espera-o
Bem ao perto, bem ao perto


É noite,
Está calor
Os aquecedores ligados
A mulher, no andar de cima
Espera o seu vivido amor
Foi em viagem de negócios
Está longe,
Bem ao longe


É de noite,
Está frio
A amante manda-o ao sítio
Ele sai da cama quente
De repente
Veste-se e vai
Fica longe, bem ao longe


É de dia,
Está calor
A mulher acorda sorrindo
Ao seu lado tem dormindo
O marido que ama
E perto,
bem ao perto
No andar de baixo
A amante adormece
Sozinha


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terça-feira, 8 de dezembro de 2009

De onde vêm as ideias?

Estava sem ideias nenhumas, absolutamente nenhumas. Sem inspiração, como se costuma dizer. Andava pela casa a comer bolachas, a beber água fresquinha, procurando pelos canais ou pelas estantes algum divertimento. Encontrei algumas coisas, desisti rapidamente. Não tinha ideias.

Isto não estava bem, nada bem mesmo. Fui à minha gaveta dos documentos, peguei num enorme dossier e vasculhei pelas micas repletas de documentos importantes. Encontrei um cor de rosa, retirei-o da mica, reli o seu conteúdo. Sim, estava lá o número de telefone. Peguei no telemóvel. Marquei o número.

- Estou sim muito boa tarde?

Uma voz feminina respondeu-me do outro lado:

- Inspiração, boa tarde. Em que posso ajudá-lo?

- O meu nome é Renato Rocha, e sou vosso cliente há já largos anos. Tenho tido alguns problemas criativos, e gostaria de saber o que se está a passar.

- Pode dizer-me em que área criativa, por favor?

- Escrita.

- Tem aí o seu número de inscrição?

Repeti-lhe o número, que estava no papel cor de rosa.

- Muito obrigado, aguarde só um pouco.

A voz feminina desapareceu, e foi substituída por uma música dos Beatles tocada em flauta de pan. Olhei para o relógio, passaram-se dois minutos, a voz regressou:

- Sr. Renato Rocha?

- Estou aqui.

- Eu lamento muito, mas a sua inspiração foi cortada.

- Desculpe?

- A sua inspiração foi cortada, não há nada que lhe possa fazer.

- Mas eu tenho pago as mensalidades a tempo e horas, deve haver algum engano.

- Ouça, o registo que aqui tenho é que não paga a mensalidade desde Setembro, e que desde Outubro lhe foi cortada a inspiração.

- Quero contactar com uma musa, sendo assim.

- Sr. Renato Rocha, eu lamento mas isso não vai ser possível, se não paga a mensalidade…

- Mas eu pago, tenho aqui as facturas, posso mostrar-lhe.

A voz feminina afastou-se do telefone, pareceu trocar algumas palavras com o seu superior.

- Sr. Renato Rocha, vou passá-lo a uma colega, está bem?

- Passe lá, então.

- Cólicença.

Houve um clique, os Beatles em flauta de pan regressaram por momentos.

- Estou? – disse uma voz, outra feminina – Sr. Renato Rocha?

- O próprio.

- Bom dia, como vai? Olhe, realmente as informações que temos aqui é que não pagou as mensalidades.

- Isso não é possível. Escrevo regularmente para um blog pessoal, para além de levar a cabo alguns projectos íntimos e pessoais na área da escrita. Deve haver um engano.

- A última ideia sua registada com sucesso foi em Setembro, e depois não há mais registos…

- Ouça, estou a ligar de um telemóvel e não quero gastar o saldo todo com esta conversa. Se me pudesse enviar uma assistente técnica em agradeceria imenso.

- Sr. Renato Rocha, só poderemos enviar uma musa se tiver as mensalidades em dia.

- Quando a musa cá chegar eu mostro-lhe as facturas. Tenho-as aqui, à minha frente.

Houve uma pausa, em que a voz feminina pareceu falar com alguém.

- Diga-me a sua morada, então.

Eu disse-lhe a minha morada.

- Muito bem, vamos enviar uma musa. Muito bom dia.

E nesse momento tocaram à campainha. Larguei o telemóvel, fui até lá, espreitei pelo óculo, abri a porta. Uma mulher lindíssima, morena, de longos e ondulados cabelos acastanhados, olhava para mim. Tinha um vestido simples mas colorido, e calçava duas pequenas botas castanhas que lhe subiam até meio das canelas. Além disso, trazia uma mala de couro na mão, como aquelas que os médicos à antiga costumavam transportar.

- Renato Rocha? – perguntou a musa.

- O próprio.

- Posso entrar?

Abri-lhe a porta, a musa entrou.

- Bela casa – disse-me ela.

- Será que pode ajudar-me? Tenho tido imensos problemas de inspiração…

Sentámo-nos no sofá, e a musa colocou descontraidamente a mala de couro no meio do tapete da sala.

- Fale-me do que se passa.

- Nada de mais, apenas que não tenho ideias para histórias novas ou, pior, tenho-as mas não as consigo executar.

- Tem andado a dormir mal?

- Às vezes.

- Come bem?

- Com regularidade.

- Tem algum problema de maior na sua vida que o possa estar a preocupar?

- Nada, apenas esta falta de inspiração…

- Ora vamos lá ver isso.

A musa estendeu o braço, agarrou na mala, arrastou-a para os seus pés e abriu-a. De lá puxou um estetoscópio colorido. Colocou-o nas orelhas, e ligou a outra extremidade, fria e platinada, à minha testa. Silêncio. A musa fechou os olhos em concentração.

- De certeza que tem andado a dormir bem? – disse ela baixinho. Olhou-me de lado, com os olhos brilhantes, uma espécie de desafio para descobrir se eu lhe estava a mentir ou não.

- Sim, bastante bem.

A musa voltou a fechar os olhos, mudou o disco metálico do estetoscópio de sítio, apalpando a minha testa. Finalmente terminou o exame, e guardou o estetoscópio.

- Sabe, ás vezes acontece. São coisas destas. Aborrecidas, mas assim mesmo. Faz parte. Talvez alguma pequena falha no sistema informático, poderemos ver isso. Consigo está tudo bem, é uma questão de ver na central se a sua ligação está com um sinal forte e activo… Mas… Há formas de apressar estas burocracias… - disse-me a musa, agarrando-me a mão, puxando-a para junto de si. Cruzou as pernas, e colocou a minha mão sobre o seu joelho. Olhei para ela, e ela sorriu-me como quem olha para um gelado de que gosta imenso.

- Você está louca. Está a tentar seduzir-me? – perguntei-lhe.

- Não… Porquê? Sente-se seduzido?

A musa inclinou-se, tentando desesperadamente aproximar os seus lábios dos meus. Eu dei-lhe um ligeiro empurrão, levantei-me do sofá.

- Muito obrigado, mas não. Faça lá o que puder fazer, quando lhe der jeito. E assim.

A musa pareceu pessoalmente ofendida, quase. Levantou-se, fechou a mala, olhou para mim com uma cara desafiante de “tu é que perdes” e saiu de minha casa, agitando as ancas como em sinal de despedida.

Esperei mais alguns dias, não muitos. Depois voltei a escrever.

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domingo, 6 de dezembro de 2009

Cartas para Andrómeda #2

Querida Tia,

Não lhe escrevo há imenso tempo, e por isso peço desculpas. Tenho andado extremamente ocupado, porque é o final do ano terráqueo e há uma série de coisas interessantes a documentar.

Já me passou o jetlag, mas mesmo assim este calendário terráqueo continua a fazer-me confusão. O sol nasce e volta a subir num instante, e os terráqueos passam metade do seu dia, a parte mais escura, a dormir nas suas camas. Talvez por isso sejam tão atrasados, pobrezinhos.

No outro dia tivemos uma interessante visita de estudo. O professor de Cultura Humana levou-nos na sua nave espacial invisível (é já bastante velhota, ainda é a hidrogénio, imagine!) a conhecer países diferentes e construções importantes, porque estamos a falar das religiões. As religiões são histórias que os terráqueos inventaram ao longo do tempo, para explicar de onde vem o Universo ou porque é que as suas mulheres têm dores a dar à luz. Algumas são muito engraçadas, como aquela do rapazinho que recebia prendas de uns reis que andavam de camelo.

Andámos a visitar várias construções ou locais importantes dessas religiões. Fomos a um sítio chamado Jerusalém, um lugar horroroso, cheio de areia. Jerusalém é uma cidade onde toda a gente usa barbas, talvez para se protegerem das tempestades de areia, e em que há três religiões ao mesmo tempo. O pior é que as três religiões andam sempre em conflito, um bocado como os nossos jhultyh, só que estes chegam mesmo a matar-se.

Depois de visitarmos Jerusalém fomos a um sítio chamado Notre Dame, ver uma coisa estranhíssima e de muito mau gosto que se chama Catedral. São umas construções minúsculas, e que me lembram um bocado a casa da sua vizinha, só que sem a centrar nuclear na sub-cave para aquecer os quartos.

A seguir fomos ver uma forma de construção religiosa mais importante e recente. São redondas, e cheias de cadeirinhas à volta, e têm um relvado muito bem tratado ao centro. Ao que parece são usadas num jogo muito popular, em que vinte e dois terráqueos correm atrás de uma coisa redonda de material sintético. Depois têm de enfiar ao pontapé a coisa redonda numa rede, e quando isso acontece os fiéis saltam, e gritam, e agitam bandeiras da sua cor favorita, e mandam pedrinhas à cabeça de um senhor com cartões coloridos que também anda a correr e a pisar o relvado. Quando saem das construções quando o jogo acaba partem os narizes uns dos outros, e depois vão para casa.

De qualquer forma, aqui é a altura do Natal. Antigamente celebrava-se o nascimento de um miúdo qualquer chamado Jesus, que ao que parece foi castigado pelo pai e pendurado numa cruz para salvar toda a humanidade; mas hoje em dia isso já está um bocadinho esquecido, e o verdadeiro Deus do Natal é um terráqueo gordo, que vive numa fábrica no Pólo Norte (que é como o nosso Ghty, só que sem os monstros devoradores). Ao que parece este terráqueo anda de trenó, puxando por uns animais cornudos, para distribuir prendas a todas as crias terráqueas que comeram a sopa e foram para a cama quando os seus pais lhes disseram para ir. O nosso professor explicou que apesar do terráqueo gordo não existir, tal como em todas as outras religiões, esta chantagem funciona às mil maravilhas e as crias passam a portar-se lindamente. Para além disso, todos os terráqueos têm de comprar coisas uns aos outros. Comprar, aqui na terra, significa trocar comida por pedacinhos de ferro amarelos ou bocados de papel que os bancos dão às pessoas. Imagine, Tia, chegar a um sítio, dar um pedacinho de papel e receber um casaco, ou um animal para cozinhar! Nunca percebi para que raio servem os papelinhos e os pedacinhos redondos de metal, mas suponho que seja para depois serem trocados por mais coisas e por aí adiante. Ou seja, quando vão às compras, os terráqueos levam uma carteira cheia de pedacinhos de ferro e de papel, e voltam para casa com sacos cheios de alimentos. É estranhíssimo, mas parece resultar para eles.

O nosso professor explicou-nos que é uma altura importante para os terráqueos, especialmente para todos os pobrezinhos que recebem mais cobertores e sopas quentes porque todos os terráqueos mais ricos se sentem mal por estarem a gastar dinheiro em prendas uns para os outros. Para além disso, os terráqueos têm de seguir tradições importantes, porque senão o mundo acaba ou assim. Uma delas é comer bacalhau, que é um ser vivo estranho, muito parecido com o nosso Shty, só que sem as asas e sem os nervos de toxinas. Este tal de bacalhau tem, no entanto, uma coisa ainda pior, uns picos interiores bicudos e perigosíssimos. O nosso professor de Sobrevivência em Sociedade Humana avisou-nos que um pico daqueles pode furar-nos a garganta, e matar-nos instantânea e dolorosamente. Os humanos, no entanto, aprenderam a tirar os picos do peixe antes de o comer, e mesmo se engolirem um pico não morrem nem nada. Criaturas interessantes, estes terráqueos!

Bem, agora está na hora de ir andando. Tenho de me preparar para um trabalho sobre esta coisa das religiões, e sobre um livro mágico com poderes especiais e sobre um tipo qualquer que é espírito e homem ao mesmo tempo. Estes terráqueos têm histórias incríveis, e acreditam mesmo nelas! É estranho para nós, que sabemos muito mais mas não lhes podemos dizer nada. O que diriam se lhes apresentássemos o nosso Zdfth, o supremo e imaterial ser extra-dimensional que nos criou a partir do núcleo das estrelas com uma maldição mágica e que hoje nos fala através de uma estátua de gosma? Diriam, com certeza, que era um disparate pegado! Enfim, só gargalhadas.

Como vai a quinta? Na sua última carta disse-me que as crias da vizinha tinham nascido. Como estão todas? Afinal nasceram quantas? Só 35? E a vizinha, qual delas escolheu para devorar? Conte-me tudo, e se possível mande-me imagens holográficas!

Escreverei assim que puder,

Sobrinho

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