terça-feira, 30 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 35

Previamente, em Smith e as Sereias, a viagem com o objectivo de localizar Rose e reunir certas individualidades para defender o Palácio está, finalmente, prestes a começar. Sim, as personagens vão finalmente sair da porcaria do Palácio, onde têm estado desde há mais de dois meses. Iei, certo?


O Nautilus tremeu, vibrou, fez uns barulhos metálicos ameaçadores e, como um gigante a roncar, afastou-se lentamente do leito de algas, terra e conchas que formava o terreno atrás do Palácio. O enorme submarino subiu, empurrando enormes quantidades de água para baixo e formando remoinhos temporários que agitaram todas as figuras da Corte, reunidas para se despedirem da expedição.

De dentro do Nautilus, Ariel e Lilith observavam o Palácio a diminuir-se como que por magia, à medida que se afastavam dele e as poeiras submarinas lhes toldavam as observações.

- Aqui vamos nós – murmurou Lilith. Ariel atravessou o pequeno quarto e começou a tirar a roupa da mala.

- Dormes no de cima ou no debaixo? – perguntou, apontando para o beliche.

- Como achas que está o Jack? Há uma hora que não o vimos…

- Eu fico no de cima, então – Ariel subiu para a cama superior e experimentou a almofada – Uau, esta cama é confortável. De certeza que não te importas de ficar por baixo?

- É que o Capitão pode estar a obrigá-lo a carregar com coisas. Ou a humilhá-lo. Ou a tentar matá-lo. As possibilidades são imensas – choramingou Lilith, abraçada a si própria como se estivesse com frio.

- Vais ter de te acalmar. O Capitão só quer um assistente pessoal, nada mais. Aliás, ele é um amigo pessoal do Pai. Achas que vai acontecer alguma desgraça aqui dentro?

***

Smith andava a explorar. De mãos nos bolsos, caminhar descontraído, ocasionais assobios, sentia uma inegável nostalgia. A vida de submarino não era assim tão diferente da sua longínqua vida de marujo num navio. A tripulação passava por ele sem o cumprimentar, correndo para os seus postos ou levando mensagens de um lado ao outro do submarino. Aquela correria era, para Smith, uma lembrança física dos bons tempos passados a dar voltas ao mundo. Por isso, estava feliz.

Passou pela biblioteca, um salão gigantesco coberto por livros. Original, não é? Passou pelo salão de refeições, com uma mesa compridíssima e, no topo, um cadeirão em forma de concha aberta que com certeza pertencia ao Capitão Nemo; pela escadaria, que fazia a ligação entre os vários andares do Nautilus. Demorou-se junto a uma planta de emergência, pendurada num corredor. Estava mais ou menos a meio do Nautilus, no 2 andar. O primeiro era o andar das máquinas e das cozinhas, o segundo onde estava a biblioteca, o salão de refeições, as salas de observação e controlo do submarino e os aposentos do Capitão; e o terceiro, estava exclusivamente dedicado às habituações da tripulação e dos convidados. Bocejou, entediado com todos aqueles minutos perdidos a obter informação sobre o submarino, e olhou para o enorme quadrado que representava, na planta, o escritório pessoal do Capitão Nemo; e perguntou-se se Jack estaria ali, a fazer favores ridículos ao Capitão que, era claro, o queria humilhar.

- Boas tardes – disse uma voz atrás de si. Smith virou-se, e por pouco não reconheceu o amigo. Jack tinha um chapéu em forma de algas, como uma peruca; ao pescoço trazia um colar, que a toda a volta segurava tentáculos compridos de polvos de várias cores. À cintura, uma bolsa de ferramentas. E nos pés, uns chinelos feitos a partir de uns desconfortáveis corais australianos.

- Pela saúde da Pescada – murmurou Smith, de boca aberta – Que fizeram contigo? Pareces o animador de um parque temático!

- Sinto-me lisonjeado – respondeu Jack com um sorriso sarcástico, encostando-se ao corrimão das escadarias – O Capitão obrigou-se a vestir esta farda. Diz que é tradição os seus assistentes se vestirem a rigor.

- A rigor não. Tu estás a ser humilhado!

- Não te esqueças, Smith, que há apenas alguns dias me barriquei neste mesmo submarino, ameaçando a vida dos tripulantes e a própria máquina, e que isso enfureceu o Capitão Nemo.

- Claro que não me esqueço, isso foi ainda no outro dia.

- Pronto, era só para o caso de estar alguém a assistir à nossa conversa e não perceber o porquê disto tudo – segurou os tentáculos que trazia ao pescoço e engoliu em seco.

- Espera só até a Lilith te ver.

- A Lilith não me pode ver assim – Jack parecia ter o orgulho ferido – Sinto-me ridículo.

- Cá para mim – reflectiu Smith – é neste preciso momento que a Lilith e a Ariel aparecem.

Lilith e Ariel apareceram, virando uma esquina. Deram com Jack vestido daquela maneira, e Ariel soltou uma gargalhada. Lilith, essa, parecia derrotada e à beira do choro.

- Jack… Que te fizeram…?

- Tenho de ir buscar um batido de algas-reais para o Capitão – disse ele, acelerando corredor abaixo e procurando a todo o custo esconder a peruca. Lilith correu atrás dele, obrigando-o a consolar-se com a sua companhia. Ariel aproximou-se de Smith, deu-lhe um beijo discreto mas sentido e apoiou-se no seu ombro, vendo Lilith desaparecer atrás de uma esquina.

- Isto é bárbaro! – resmungou Ariel, sorrindo abertamente – Pobre Jack…

- Não exageremos – respondeu Smith, segurando-lhe a mão – De tudo o que lhe podia acontecer de terrível isto é sem dúvida o mais suportável.

***

- Proponho – disse um dos tripulantes, fumando uma cigarrilha – que o obriguemos a correr todo nu pelo submarino.

- Eu proponho que lhe seja cortado o órgão. E não é um órgão qualquer. É especificamente o órgão.

- Eu cá – sugeriu outro tripulante – proponho que alguém o esventre imediatamente.

- Calma! – exclamou outro tripulante, o mais velho de todos, e a confusão à sua volta acalmou. A maioria da tripulação do Nautilus estava reunida (e apertada) numa sala minúscula, com um único candeeiro por cima das suas cabeças que oscilava como um pêndulo discreto e banhava todos os homens com uma luz directa e conspiratória – Há que planear uma vingança, sim. Mas deve ser cuidada. Deve ser maravilhosamente orquestrada de maneira a não levantar suspeitas.

- Foi o que eu disse – resmungou um tripulante com tatuagens nos braços – Alguém que o esventre imediatamente, mas à noitinha, para não se ver quem foi.

- É necessário calma… - pediu o tripulante mais velho pela segunda vez. Uma voz grossa levantou-se do outro lado da sala.

- Calma?

Todos os homens se viraram para ver de onde vinha a voz.

- Calma? – repetiu a voz grossa do tripulante com uma enorme cicatriz na bochecha, encostado a um canto da sala de braços cruzados – Vês a minha cara? Os belos traços, desfeitos por um louco! Achas que andar com uma peruca e com tentáculos pendurados ao pescoço é suficiente? Não. Tudo menos calma. A vingança chegará fria e selvagem. E não demorará. E serei eu a orquerestrár-la.

- Orquestrá-la – corrigiu o velho tripulante.

- Orquestár-li-a.

- Orquestrá-la.

- Serei eu a fazê-li-a, pronto – rosnou o da cicatriz - Percebido?

A tripulação caiu em silêncio, comovida pela forte determinação do colega.

- É fazê-la… – murmurou o tripulante mais velho, coçando a barba e olhando para os pés.

- Hádes de me corrigir outra vez a ver o que te acontece! – rosnou o tripulante de cicatriz, colocando um gordíssimo charuto na boca – Discutiâmos agora a melhor forma de nos vermos livres daquele principezinho.

***

Smith continuara o seu passeio e parara por momentos perto de uma porta pequena. Lá dentro, vozes. Muitas vozes. Uma delas não sabia conjugar verbos, mas todas pareciam concordar numa coisa: Jack merecia ser humilhado ou, se possível, esventrado com bastante energia.

Smith procurou afastar-se corredor fora. Iria avisar os amigos. Todos eles corriam perigo, especialmente as tripas de Jack. Começou a correr e, como é tradição neste tipo de situações, um tripulante que empurrava um carrinho de frutas virou uma esquina e colocou-se à frente de Smith. Voou ele, voaram limões, maçãs e bananas. Smith bateu com a cabeça em cima de uma melancia, e o estrondo fê-lo fechar os olhos para se proteger da fruta que caía em cima dele.

***

- Que foi isto? – perguntou o tripulante das tatuagens, levantando-se. A tripulação ergueu-se de um salto e precipitou-se para o corredor.

***

Smith levantou-se com dificuldade, limpando uma enorme laranja esmagada na camisa. Olhou para cima. Pelo menos vinte homenzarrões, enormes, olhavam-no desconfiadamente.

- Boa tarde a todos.

- O que estavas a fazer neste corredor? – perguntou o tripulante da cicatriz.

- Sinceramente? Nada de especial, vinha só passear e…

- Ele ouviu-nos, pá – resmungou outro tripulante.

- Juro que não. A sério. Juro que não ouvi absolutamente nada.

- Está bem, está – o tripulante da tatuagem olhou em volta, pensativo - Levem-no para dentro.


Todas as Terças e Quartas, novos episódios de Smith e as Sereias

Hitchens é Hitchens


Belíssimas palavras de um dos meus autores favoritos.

domingo, 28 de novembro de 2010

Altíssimos critérios

Esta segunda vou ter teste de Português. Na última aula, a professora esteve a dar algumas dicas sobre a matéria que poderia sair. Começou por explicar que seria “Os Lusíadas” a matéria mais importante. Depois foi diminuindo o horizonte de possibilidades, até garantir especificamente que tipo de perguntas seriam feitas, quais os episódios que poderiam surgir e até o tema da composição. Pediu-nos para pensar sobre as críticas que Camões tece à sociedade do seu tempo, e para fazermos uma comparação entre essa sociedade e a nossa. Perguntei porque é que estava já a revelar o tema da composição, e ela explicou-me: “Para vocês terem tempo para pensar sobre isso durante o fim de semana; senão chegam ao teste, apanham uma surpresa e saem umas coisas estranhas e mal pensadas”.
Exacto. A minha professora de português é responsável e profissional. Todos sabemos que convém revelar ao aluno o conteúdo do teste três dias antes do mesmo. Os alunos que estejam no décimo segundo ano de escolaridade querem-se atrasados mentais, e por isso convém dar-lhes o fim-de-semana para reflectir sobre uma composição de meia página. Isto porque eles podem ter dificuldades em usar o cérebro durante o teste (e eu que até pensava que era para isso que a escola servia), e depois têm más notas. A exigência leva a más notas, por isso em vez de se elevar os critérios o melhor é colocá-los ao nível intelectual das amibas. Eu proponho que se faça o mesmo com todas as disciplinas. O melhor mesmo era disponibilizar os exames nacionais, com várias semanas de antecedência. Para dar tempo aos alunos para reflectir nas respostas que vão dar, percebem?
Alguém perguntou porque é que a educação está uma vergonha?

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Como fazer dinheiro à conta da ingenuidade das pessoas

A forma mais rápida e fácil de ganhar dinheiro na actualidade é o crime e a metafísica da treta. José Antunes, um especialista na consciência, é um excelente exemplo disso. Vejam este vídeo, pode ser que ele vos convença. Ele, na prática, não diz nada. Faz umas estranhas relações entre consciência, amor, alma, reencarnações; mas não explica, não esclarece. Se não tivesse a lengalenga tão bem interiorizada, diríamos que está a inventar à medida que fala. Isto, meus amigos, é a definição de bom conteúdo.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Eu faço greve porque posso, e tu fazes greve porque eu quero fazer greve. Vivam os direitos dos trabalhadores!

E aqui estou, em casa, quando devia estar na escola a trabalhar. A escola está aberta (penso eu), mas os meus professores avisaram logo que iam fazer greve e que por isso não teríamos aulas. Estão no seu direito. O seu direito inclui, é lógico, prejudicar o calendário das aulas e os trabalhos que estamos a desenvolver. É menos uma aula que eu e os meus colegas temos para terminar trabalhos que por si só já estão atrasados. Mas é um direito, e acabou-se. Eu percebo perfeitamente que o seu direito de se baldar às aulas e ficar em casa a descansar o intelecto está muito acima na sua lista de prioridades da sua obrigação primordial, que é educar-nos. E ainda bem que temos professores que lutam pelos seus direitos. Eu não quero professores que me dêem aulas, quero é pessoas que saibam reclamar de uma forma que mais ninguém senão eles e os alunos, os prejudicados, sentirão.

Não serei o único. Há muita gente que, graças ao altruísmo de quem faz greve, não pode apanhar o comboio, o metro ou o autocarro para ir trabalhar. O país pagará, em milhões, a imobilização de milhares de pessoas. Mas os sindicatos não querem saber.

Isto percebe-se, claro, nem que seja por um facto inegável: as greves resultam. Não só resultam, como foi graças a greves como esta que as grandes mudanças de política na História foram conseguidas. Veja-se a Revolução Francesa, ou o 25 de Abril. É claríssimo que, amanhã, todos os governantes e partidos da oposição se vergarão à vontade popular. “Caramba”, dirão eles, “Os trabalhadores têm razão. Vou agora comover-me durante alguns minutos, chorar, pedir desculpas públicas, e depois reverter todas as decisões tomadas neste Orçamento de Estado. E à tardinha vou para a rua, distribuir dinheiro”.

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Smith e as Sereias - Ep sód o 34

- Força, dá-lhe! – gritou Smith. Jack estava empoleirado na prateleira que segurava o título do post, e ia puxando as letras a que conseguia chegar. Tinha tirado dois “I”, porque eram as mais levezinhas, e agora estava a tentar arrancar o P.

- Pelo amor da Pescada – resmungava Ariel, apoiando-se numa estaca de madeira que segurava uma tabuleta de madeira – Vocês não conseguem fazer um protesto decente, sem destruição?

- Esses protestos pacifistas não aparecem nos televisores – esclareceu Smith, olhando em volta – Alguma de vocês viu por aí uma montra?

- Calma, calma! – pediu Lilith, que estava ao lado de Ariel e olhava cheia de preocupação para o topo do post, onde Jack já conseguira soltar o P e estava agora a trabalhar no S – Jack, por favor… Desce daí, ainda te magoas!

- Há que mostrar-lhe que já chega – disse Jack, a custo, puxando a letra com força.

- Vai ajudá-lo, Smith – pediu Ariel, suspirando – ele ainda se mata.

- Ok. Mas levantem bem os cartazes.

Ariel e Lilith ergueram os cartazes que seguravam. Ariel levantou a tabuleta de madeira, que dizia “NÃO À NEGLIGÊNCIA CRIATIVA”. O cartaz em cartolina de Lilith dizia “CHEGA DE ABANDONO, QUEREMOS JUSTIÇA”.

O que se passaria, afinal, é um mistério. Ariel e Lilith olhavam em frente, determinadas, para que…

- Sabes ler, certo? – perguntou Ariel, sarcástica.

Olhava em frente, dirigindo-se ao vazio que a rodeava sem…

- É a ti que me dirijo – disse Ariel – A ti.

Ariel apontou o dedo em frente. Na minha direcção. Espera…

- Mais uma! – gritou Smith, ajudando Jack a arrancar o “D”

- Lê-lhe a declaração – pediu Lilith, levantando mais a tabuleta.

Ariel tirou um papel do bolso, desdobrou-o e declamou, com pompa e circunstância:

- Como personagens principais das aventuras de Smith e as Sereias, e portanto como figuras centrais nesta série, vimos por este meio mostrar o nosso desagrado em relação à atitude do nosso autor.

O Autor engoliu em seco.

- Tem-se vindo a verificar uma acentuada descida da qualidade dos episódios, que muitas vezes são publicados com gralhas, erros, incongruências, exageros, histórias mal contadas, personagens por desenvolver e disparates vários. Os leitores, se existirem, com certeza sentem e lamentam o sucedido. E nós, como personagens, sentimo-nos no dever de lutar pelas melhores condições dramáticas, narrativas e gramaticais possíveis para assim cumprirmos o nosso dever com honra e brio.

Esperem lá, eu…

- Sendo assim – continuou Ariel, levantando a voz para me interromper – Não nos resta outra opção senão tomar conta deste episódio e fazer uma greve.

- Diz greve com mais força – pediu Smith, do alto do post – No papel está GREVE.

- Seja – resmungou Ariel – uma GREVE.

Uma greve?

- Isto significa que hoje não há episódio – explicou Lilith, com os olhos azuis afiados – Azar.

- Além disso – continuou Ariel, virando o papel ao contrário - temos uma pequena lista de exigências.

Calma, calma. Vamos todos ter calma. Vocês aí. Smith, Jack. Parem de vandalizar o meu post, por favor.

- Sim, ele tem razão – apoiou-me Ariel, olhando para cima e agitando o braço – Desçam daí. E a propósito – olhou para mim outra vez – “apoiou-me” é um bocado exagerado.

Ok, perdoa-me. Estavas a dizer…?

- Ela estava a dizer que temos algumas exigências – declarou Smith, aproximando-se ao lado de Jack – Eu acho que “algumas” é mau. Propus que fossem muitas. Esmagadoras. Para te lixar mesmo.

- Mas esta greve não é um ultimato violento – interrompeu Ariel, que parecia muito mais controlada que as outras três personagens – Não me venhas com elogios baratos.

Pronto…

- As nossas exigências são simples. Primeiro, exigimos que haja um maior cuidado com a forma como as aventuras são escritas. Isso inclui a correcção dos erros e das gralhas.

Ok, isso posso fazer.

- Segundo, exigimos que a história avance de uma vez por todas, e que haja uma drástica mudança do tipo de aventura. Estamos fartos de contracenar no Palácio, no Quarto do Principado, no Salão Principal… E afinal que raio foi aquilo dos Atlantes aparecerem do nada? Queremos desenvolvimentos decentes!

Espera. Isso já está a ser preparado. Ainda no último episódio vocês entraram os quatro no Nautilus para…

- Sim, pois – disse Jack, em voz alta – Para encontrar a “minha Rose”. Sabes há quantos episódios já ouço isso? Sabes há quanto tempo me prometeste tal coisa?

- Calma, Jack… - pediu Lilith, abraçando-o ligeiramente.

Não acredito que as minhas próprias personagens estão a chantagear-me…

- Terceiro – continuou Ariel – O Jack exige que o próximo episódio se chame “Smith e as Sereias e o Jack”, para compensar o facto de ele, como personagem central do enredo, ser o único de nós os quatro que não é citado no título. E ele exige também que as piadas com o seu nome terminem imediatamente.

Como devo reagir a isto? É talvez a primeira vez na história da ficção que as personagens se erguem contra o autor que as…

- Oh, poupa-me a emotividade – resmungou Smith – Hoje não há episódio e acabou-se. E se as nossas exigências não forem respeitadas, haverá mais greves e com mais personagens. O Namor e o Poseidon queriam participar hoje, mas têm outros compromissos literários.

Vocês não me podem obrigar a nada. Na prática, sou eu quem vos escreve. Quem vos criou. Quem domina o vosso destino.

- Ah, essa é outra! – lembrou-se Lilith – Queremos saber imediatamente como vai terminar a história. Para sabermos no que estamos metidos. A Ariel nunca mais ganha barriga, a Rose nunca mais aparece, eu nunca mais sei se acabo com o Jack ou não…!

Não, está fora de questão. Isso é demais! Isto é um escândalo! Eu tenho o domínio total sobre esta história e não tenho de me vergar às vontades de…

- Então conta com mais disto – disse Ariel, levantando a tabuleta – Chega de injustiça!

- Chega de injustiça! – gritaram os quatro.

***

O porão do Nautilus estava cheio de tripulantes, todos eles correndo de um lado para o outro na azáfama de dia de partida. As máquinas estavam a funcionar, e um ronco metálico e gordo fazia tremer ligeiramente as paredes e o mobiliário. No centro do porão, Lilith, Ariel e Smith pegavam nas suas malas e preparavam-se para explorar o submarino.

- Oh, não acredito! – reclamou Ariel, largando o saco que tinha na mão e atirando-o com força para o chão – O gajo enfiou-nos à força na história!

- Isto é abuso de poder! – reclamou Lilith.

O porão ficou vazio.

O porão continuou vazio. O Autor tentou remediar. Lá estavam Lilith, Ariel, Smith.

E agora não estão outra vez.

E agora, vazio.

***

- Nós avisámos que não ia haver episódio – disse Liilith, com um sorriso malicioso.

- E não nos tentes forçar! – ameaçou Smith.

Levantaram outra vez os cartazes.

- Chega de injustiças! – gritaram todos.

Pronto. Seja. As vossas exigências serão cumpridas. Podemos voltar para o normal decorrer da história?

- Nem pensar – disse Ariel, pousando o cartaz – O número de páginas do episódio já se esgotou. Está na hora do…

Não! Não está nada! Vocês já atrasaram demasiado a série para eu me deixar levar mais uma vez pelas vossas…

FIM

Todas as Terças e Quartas só haverá episódios do Smith e as Sereias se o nosso abusador Autor respeitar as nossas exigências.

SMITH teve aqui 2010.

JACK (CORAÇÃO) ROSE

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 33

Orlando Matias, o jornalista peixe-espada, mostrou a sua identificação à entrada e abriu caminho pelos polícias à entrada do Palácio. Uma enorme multidão reunira-se à volta dos jardins, segurando cartazes. Os rumores que indicavam que a bomba tinha tido mão atlante correram depressa, bem como a notícia da viagem do submarino Nautilus.

- Paz sim, Nautilus não! – gritavam os manifestantes, em histeria emotiva. Numa massa indistinta, com barbatanas, cartazes e escamas a roçarem uns contra os outros, forçava a entrada no palácio. As figuras da autoridade, com enormes conchas e búzios presos aos braços e usados como escudos, procuravam empurrar os manifestantes.

- Olhem! Olhem para isto! – berrou um peixe azulado, atirando-se para os pés de um dos polícias – estou a ser violentado! Isto é fascismo!

- É verdade, eu vi! – gritou uma medusa, de fita à volta da cabeça – O polícia é que o empurrou!

- Não seja fiteiro. Levante-se imediatamente e desimpeça a via pública – resmungou o capitão dos polícias para o manifestante.

- Está a obrigar-me a fugir e assim a esmagar as minhas liberdades individuais! Típico da sociedade de guerra em que vivemos!

- Há que compreender – dizia uma manifestante a um jornalista – Que a verdade por trás desta suposta viagem no Nautilus está escondida. Querem apenas a opressão dos povos e a destruição das minhas liberdades! Onde acha que eles vão? Vão provocar guerras!

- De que forma? – perguntou a jornalista.

- Não se está mesmo a ver? – a manifestante apontou para os polícias – Eles têm armas! Se têm armas, é porque vão armar escarcéu. E se vão armar confusão, é com certeza num país desfavorecido onde há muitas crianças pobrezinhas e esfomeadas a correr pela rua. E depois fazem tiro ao alvo com as criancinhas. Toda a gente devidamente informada sabe disso! É para isso que eles querem as armas!

- Mas nãos serão elas necessárias para repor a ordem pública? – perguntou a jornalista.

- Claro que não! Se as liberdades de cada um fossem respeitadas, não seria preciso qualquer tipo de autoridade! E para melhor demonstrar o quando amamos a paz e a justiça social, vamos ali partir a montra e queimar dois carros de pessoas totalmente inocentes.

- Ai, ai, ai! – gritava o peixe azulado, estendido a contorcer-se no chão – Tenho uma unha encravada! Ela está a esmagar a minha liberdade individual de não ter unhas encravadas! São com certeza os capitalistas!

***

- Nervoso? – perguntou Ariel.

- Eu? – resmungou Smith – Nem por isso. Estou a começar a ficar habituado a aventuras surpreendentes e que desafiam qualquer regra de um enredo bem cuidado.

- Também eu – disse Jack – Queres ajuda com a mala?

- Não, obrigado – respondeu Lilith, com um sorriso derretido.

Estavam os quatro no convés do Nautilus. A tripulação, à sua volta, corria com eficácia bem ensaiada, ocupando posições, carregando em botões, puxando alavancas, obedecendo a ordens e trocando curtas e murmuradas informações sobre cargas eléctricas, humidades, valores de pressão e localizações geográficas. Olharam em volta. Mesmo para Jack, a maravilhosa decoração do espaço era novidade, visto que a primeira, última e única vez que ali estivera fora ocupada a ameaçar a vida a um tripulante.

Havia um enorme cuidado em copiar aqueles salões franceses do séc. XVIII, estilo rococó, com conchas, algas, animais marinhos, motivos vegetalistas e tons suaves de azul, verde, vermelho e branco, bem como formas curvilíneas e exóticas a cobrir o tecto e as paredes. Mesmo os aparelhos, tecnologicamente avançados, estavam pintados com tons verdes e azuis que sempre associamos ao fundo dos oceanos.

O Capitão Nemo aproximou-se do grupo com a sua típica cara de frete.

- Bem vindos ao Nautilus. Os vossos quartos são na ala Oeste, junto à Biblioteca.

Estendeu a mão à sua frente e revelou quatro flyers coloridos.

- Este é o nosso guia. O Nautilus é uma construção enorme e complexa. Há áreas proibidas, áreas que não devem frequentar e áreas que, se frequentadas, significará a vossa morte imediata.

- Podemos usar a casa de banho e a cozinha? – perguntou Smith, levantando a mão como um miúdo na escola.

- Obviamente que sim.

- A mim, chega-me – Smith sorriu e cruzou os braços.

- Não queremos incomodar, Capitão Nemo – disse Ariel educadamente – Sabemos que não costuma dar guarida a ninguém no seu submarino e que este é um enorme voto de confiança da sua parte.

- A quem o dizes, Ariel – resmungou o Capitão Nemo – E tu – apontou para Jack – Vens comigo.

- Eu?

- Combinámos que serias o meu assistente pessoal.

- Ah, sim, claro. Como quiser, Capitão.

- Quanto a vós, podem ir a uma das janelas despedir-se do Palácio – sugeriu o Capitão – Vamos passar uma longa temporada longe dele.

Ariel e Lilith dirigiram-se a uma das janelas e colaram a cara ao vidro. Smith pôs a mão sobre o ombro de Jack.

- Não te preocupes. Se te acontecer alguma coisa de mal é só gritares. Irem imediatamente à tua presença e apoiar-te-ei moralmente quando estiveres a ser espancado pela tripulação que te odeia. Se eles não forem muitos posso tentar meter-me, mas não podes esperar que me suicide por tua causa.

- Obrigado, Smith – murmurou Jack. Despediram-se com um aceno e Jack seguiu o Capitão por uma porta de ferro.

- Lá vão eles – disse Smith, aproximando-se de Lilith e Ariel.

- Achas que ele fica bem? – perguntou Lilith – Não que tenha perguntado por alguma razão em especial. É só mesmo por curiosidade. Mesmo.

- Claro que ele vai ficar bem – disse Ariel, colocando um braço à volta da irmã – Esta viagem vai ser belíssima. Vamos visitar outros países, viver aventuras calmas e aconchegantes, e nada, absolutamente nada de mal nos vai acontecer.

- Sabes – disse Smith, pensativo – Acho que não é a primeira vez que um episódio termina com uma profecia desse tipo. E normalmente elas nunca se realizam.

- Claro que não. Chama-se “conflito” – respondeu Ariel – O autor desta história deve andar a ler alguma literatura sobre como montar enredos interessantes.

- Finalmente – resmungou Smith, olhando também pela janela – já não era sem tempo.

sábado, 20 de novembro de 2010

Espera... o quê?!

O Papa deve andar a ler o meu blog, porque decidiu descer do seu trono celestial e tocar a realidade por alguns momentos. Numa entrevista, confessou que o preservativo pode ser usado, lá muito raramente, quando a intenção da pessoa é não apanhar uma doença sexualmente transmissível como a SIDA.

E de uma assentada, o Papa destrói qualquer credibilidade que o seu emprego como representante divino poderia ter. Primeiro, a população mundial não dirá “Oh meu Deus, este é um passo de modernidade da Igreja!”; o que todos suspiraremos é “Duh, já não era sem tempo…” ou um sarcástico “Uau, a sério?!”.

Segundo, não sei se o Papa se lembra de, há uns tempos, ter dito que o preservativo era irrelevante no combate à SIDA; aliás, até piorava a situação. Ora, a suposta perfeição do Papa foi demolida… por ele próprio. O que fazemos quando uma pessoa que é, segundo a sua doutrina, o representante de Deus na Terra se contradiz? Em que devemos acreditar? Na sua palavra indubitável ou na palavra indubitável que desmente a primeira palavra indubitável?

Está decidido: O Trajectória Aleatória distingue hoje oficialmente o Papa Bento XVI com o troféu “Eu sou tão idiota que consegui comprovar que a minha própria doutrina é uma treta”. Parabéns ao Papa e a todos os católicos que continuam a dar credibilidade a tamanho imbecil. Quando também vós, com alguns meses ou anos ou décadas de atraso, compreenderem a inutilidade e a fraude que é a vossa religião, “nós” estaremos cá para vos receber.


Eu protesto contra este blog porque ele mata crianças inocentes e é capitalista

Uma grande manifestação está a reunir-se (enquanto escrevo este post) no Marquês de Pombal para protestar contra a NATO. A avaliar pelas opiniões destes iluminados e imparciais intelectuais, a NATO tem como principal função o capitalismo, a ocupação militar e a opressão dos pobres.

Enquanto, no Parque das Nações, se discute a melhor forma de retirar as tropas do Afeganistão e de unir esforços com a Rússia para evitar mais atritos internacionais, os manifestantes reúnem-se para combater aquela que é uma “organização criminosa” e que só faz coisas terríveis. Olhando para o mundo pelos olhos destes manifestantes, a NATO é a principal inimiga da paz mundial. Porquê? Isso também eu gostava de saber, assim como os vários jornalistas que fizeram as mesmas perguntas. Tudo o que se ouviu da parte dos pacifistas é o intelectualmente preguiçoso: “Porque sim”.

Um senhor, em visível estado emotivo, declarou mesmo que “Enquanto uma criança morre a cada seis segundos, “eles” gastam milhões em armamento”. O que é uma lógica lindíssima, que pode ser aplicada a qualquer outra coisa. Esse mesmo senhor podia salvar centenas de crianças, todos nós podíamos. Sempre que vamos ao cinema, compramos uma garrafa de vinho, compramos um livro ou vamos almoçar fora com a família, estamos a gastar dinheiro que poderia salvar nem que seja uma criança esfomeada. Esse mesmo senhor poderia ter salvo um menino africano com SIDA. Bastava enviar o dinheiro que gastou em gasolina ou no autocarro para ali chegar, bem como aquele que gastou para comprar a bandeirinha vermelha.

Este tipo de hipocrisia toca-nos a todos. Por isso, alguns admitem-no e lidam com ela. Outros, colocam as culpas “naqueles” malandros. O raciocínio é simples: eles são poderosos, têm pistolas. Logo, fazem guerras. Logo, são o principal inimigo da paz. Logo, matam meninos de fome. E no dia em que a NATO acabar, todos os problemas do planeta serão solucionados. Ora, isto faz todo o sentido.

Mas, apesar da inatingível lógica dos manifestantes, eles escolhem outras formas muito mais eficientes de passar a sua mensagem. Com tambores, por exemplo, quando ontem um mísero grupinho de jovens estrangeiros se reuniu no Chiado. Ou todas as outras manifestações, que ao invés de mostram à população a sua cristalina mensagem de paz, desmontam-se em exibicionismos. “Olhem para mim, a cobrir-me de tinta vermelha!”, ou “Olhem para mim, a simular um bombardeamento em pleno centro da cidade e, ao deitar-me no meio da via pública, atrasar a vida de todas as outras pessoas!”

Pouco surpreende que esta grande manifestação no Marquês tenha a forte presença política do PCP. Tal como este partido, os manifestantes sabem que têm razão, repetem a mesma lengalenga vezes e vezes sem conta e procuram chamar a atenção das outras pessoas com tretas emotivas e não com argumentos decentes. E partilham outra característica: vivem com 60 anos de atraso em relação ao resto da população. Um manifestante defendia que “A NATO foi criada num contexto político que já não existe, e por isso a organização é inútil”. Claro, porque hoje em dia já não há ameaças. O Irão não é uma ameaça, muito menos os tarados armados que habitam o Médio Oriente. A União Soviética terminou, e o mundo entrou numa paz constante e linda apenas destruída pelas forças da Aliança Atlântica. E pelo capitalismo, claro!

Se a NATO é um monstro assim tão grande, não deveria ser difícil “educar” a população para esse escândalo. Em vez disso, os manifestantes preferem manifestar-se. Fazer barulho. Aparecer na TV. Tudo por um mundo melhor!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 32

Previamente, em Smith e as Sereias, desperdicei um episódio com uma experiência de diálogos paralelos que nada acrescentaram ao enredo. Voltemos ao normal decorrer da narrativa.


Jack desdobrou o papel com as mãos a tremer, passou a língua pelos lábios e mudou o peso do corpo de uma perna para a outra.

- O meu nome é Jack, e gostaria de pedir as minhas mais sinceras desculpas pelo que aconteceu há duas noites atrás, especialmente ao Capitão Nemo, comandante do submarino Nautilus onde me barriquei.

A assistência ouvia atentamente: Poseidon, Namor, Smith, Ariel, Lilith, alguns peixes da corte, dois ou três jornalistas e a tripulação do Nautilus, que incluía o próprio Capitão Nemo e um tripulante com um enorme adesivo na bochecha e punhos cerrados com força.

- Não foi minha intenção magoar inocentes, mas compreendo agora que o meu acto foi egoísta e malicioso. Capitão Nemo, a minha ofensa a si e ao seu submarino, bem como à sua tripulação, nunca poderá ser compensada devidamente.

O Capitão Nemo escutava, impávido e sereno, com os braços cruzados de quem espera o autocarro.

- Compreenderei totalmente se não quiser manter a sua promessa de me ajudar a encontrar a minha namorada Rose.

Ao lado se Ariel, Lilith engoliu em seco e olhou para a própria cauda com um interesse invulgar.

- Agradeço-lhe o facto de não ter oficializado uma queixa contra mim junto das Autoridades, e aceitarei qualquer castigo que ache estar à altura do crime que cometi.

Jack dobrou o papel e olhou para o chão, envergonhado. A sala ficou em silêncio total. Toda a gente estava à espera de ver a reacção do Capitão. Nemo permaneceu quieto, olhando para Jack como uma chita que olha para uma gazela mas que não está necessariamente com vontade de começar a correr atrás dela.

- Desculpas aceites – disse, finalmente. Jack levantou a cabeça e o seu alívio era palpável.

- A minha promessa de procurar Rose – continuou o Capitão Nemo –permanece de pé. Nunca falhei uma promessa e não será hoje que vou começar. Ainda assim...

- Ui – disse Smith ao ouvido de Ariel – Vem aí coisa ruim.

- Shiu! – disse-lhe ela, e apontou para o seu lado direito. Lilith parecia à beira de um ataque de nervos. Sim, a expressão é banal, estereotipada e cliché, mas era assim que ela estava e não há nada a fazer.

- ... durante toda a viagem – continuou o Capitão – Jack será o meu assistente pessoal.

Por alguma razão, a tripulação do Poseidon desmanchou-se em sorrisos maliciosos.

- Isso quer dizer que posso ir convosco...? – perguntou Jack, a medo.

O Capitão virou costas e saiu porta fora, seguido pela tripulação. Para trás ficou um tripulante enorme, com um adesivo na bochecha. Ele olhou para Jack com dois olhos acesos e ameaçadores. Depois virou costas e seguiu os companheiros.

***

Lilith deu um salto enorme e foi cair em cima do desgraçado do Jack, que mal se aguentava de felicidade.

- Pensava que ele me ia decapitar...

- Não sejas parvo, o meu Pai nunca o permitiria! – disse Lilith, agarrada aos ombros de Jack. Mas agarrada mesmo, com toda a confiança. Não era um agarrar normal, tipo "olá companheiro". Era outro tipo de agarrar. Eu e Ariel trocámos um olhar suspeito.

- Nós vamos só ali comer uma sandes e já voltamos – disse eu, com toda a sofisticação. Tinha aprendido umas coisas, desde que me começara a sentir dentro de uma novela mexicana; nomeadamente, que sempre que um potencial casal estivesse a esfregar-se, deveria afastar-me utilizando uma desculpa realista como aquela das sandes. Orgulhoso, segui Ariel pelo corredor fora.

- Eles fazem um casal bonito – comentou Ariel.

- É verdade. São os dois loiros e de olhos claros. Vão ter uns filhos à anúncio da Beneton.

- Acho que Beneton tem uns quantos énes ou tês a mais.

- Bennetton.

- É possível que seja assim. Smith, preciso de falar contigo.

Parámos. Ariel olhou-me nos olhos. Ela tinha uma forma estranha de quase esconder as preocupações mas não conseguir esconder o quanto essas preocupações a alteravam emocionalmente.

- Eu estou grávida – disse-me ela.

- Pela saúde da Pescada... – murmurei, surpreendido. Aquilo tinha-me apanhado despercebido. Ariel franziu o sobrolho.

- Não me digas que te esqueceste... Foi a razão por que vieste aqui parar ao Palácio, caramba.

- Não, claro, eu sei, eu lembro-me perfeitamente! – menti-lhe.

- Agora que nos conhecemos melhor, sinto-me um pouco mais à vontade para conversar sobre isto – não parecia nada. As palavras custavam-se a sair. A sua cara era a de alguém com prisão de ventre – Eu não estou preparada para ter este filho. Nunca estive. Já te contei que quero ter uma carreira no cinema. Fui convidada para uma audição, era o papel perfeito. Não tive resposta ainda, mas tenciono lutar pelo meu sonho e investir a sério em mim. Percebes? Em mim, e não...

- Numa criança – completei. Ela levou as mãos à cara.

- Sou horrível, não sou? Não era suposto ter um grande instinto maternal?

- Não sei, nunca experimentei ser mãe – respondi-lhe, e arrependi-me imediatamente. Ariel estava a abrir o seu coração, sinceramente, pela primeira vez em todo aquele tempo, e eu com piadas idiotas. Às vezes sinto que há alguém a responder por mim. A minha consciência, ou uma voz profunda dentro da minha cabeça, como o narrador sádico de uma história qualquer.

- Tu não te importas? – perguntou-me ela.

- Bem... Eu nunca tinha pensado nisso. Não assim, tão a sério. Uma criança... – fiz uma pausa – Somos jovens, temos tempo. Se um dia tu, comigo ou com outro tipo qualquer, quiseres ser mãe, então aí sim. Engravidas e etc. Mas se nesta altura não sentes que é isso que deves fazer, não há problema. A sério. Tens de, er... – "pelo amor da Pescada, o que se passa comigo?" – ouvir o teu coração. E... É isso.

Ariel baixou lentamente as mãos, atirou-se para a frente e deu-me um beijo. Pimba, assim, sem mais nem menos. Não foi um beijo de dá cá essa língua, muito menos um beijo lambuzado à filme. Foi um beijo carinhoso. Acho que nunca tinha recebido um destes. Ariel afastou-se, olhou para mim:

- Obrigado. Por compreenderes.

Encolhi os ombros.

- Ora essa.

- O que me preocupa é o meu Pai... Ele não vai gostar da ideia de abortar...

- Vamos fazê-lo em segredo. Durante a viagem. Em algum país por onde passemos, sei lá. Ei, e o tal filme para o qual fizeste audições?

- Nunca me chegaram a responder. Talvez tenham atrasado a produção, é o mais certo.

- Esta cena precisa de um final decente, Ariel – dobrei-me ligeiramente para a frente. Ela percebeu, sorriu, e deu-me outro beijo daqueles.

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A propósito de infantilidades

A globalização das redes sociais trouxe uma possibilidade fantástica: a possibilidade de termos meio mundo à distância de uma mensagem online. A potencialidade é enorme e, tal como todos os serviços potencialmente bons início de carreira, estupidamente mal aproveitada. As modas, as mediocridades e os passatempos idiotas multiplicam-se como vírus, para experimentar a novidade e ver se essa coisa da globalização funciona mesmo.
Prova disso é que alguém se lembrou de meter toda a gente a substituir as suas fotografias de perfil por imagens de desenhos animados da sua infância. O objectivo, ao que parece, é recordar. Em massa e aos milhares, os utilizadores do Facebook entraram na onda da brincadeira e agora é impossível visitar o Facebook sem compreender que a maioria dos nossos amigos perdeu realmente alguns minutos de vida a escolher um boneco animado. A preocupação estendeu-se até ao grau de afinidade emocional entre o utilizador e o boneco representado, e as óbvias tentativas de manter a coisa diversificada (não ficaria nada bem ver 30 Doraemons amontoados).
E assim se espalhou uma moda inútil, cuja diversão só pode ser compreendida por quem dela fez parte mas que, para mim, é nula. Fora a estereotipada noção de "agora pertenço a um grupo", e, claro, a oportunidade de poder trocar mais uma dúzia de comentários diários da treta com os nossos 45 amigos íntimos ("Ah ah ah, boa escolha!" ou "Mas afinal quantos estrumfes é que havia?"), são factores que entram na equação.
O que me preocupa ligeiramente não é a idiotice generalizada a tomar conta da Internet, muito menos ver um motor de partilha de informação supra-eficiente ser usado, durante uma semana inteira, maioritariamente para comentar desenhos animados dos anos 80. O que me preocupa é que antigamente, este tipo de passatempos não passava de uma mania de adolescentes infantis, que provocavam um sorriso aos paizinhos e uma pequena nostalgia. "No meu tempo também eu perdia tempo com porcarias, era tão giro".
As brincadeiras de crianças são, agora, brincadeiras de adultos. O Facebook veio fazer o que nenhum hi5 ou nenhum MSN conseguiu: meter tantos adultos como jovens a usar uma rede social, independentemente da sua formação académica, QI, género, idade ou profissão. E o que antes eram brincadeiras e vídeos virais indicados para a geração mais nova e "infantil" é agora a norma social para toda a gente. Banalizam-se as brincadeiras idiotas, os adultos entram no jogo porque "é divertido", e o que podia ser uma ferramenta de comunicação, sensibilização, educação, partilha de informação e estimulação criativa fica reduzida a meia dúzia de parvoíces.
Pior, essas parvoíces ocupam horas na vida de muita gente. "Antigamente" eram os jovens os preguiçosos sedentários por passar horas ao computador, a "falar com os amigos"; e hoje, essa mania chegou aos pais e até aos avós. O que era uma mania de juventude, mal vista e até criticada, é agora glorificada e socialmente aceite como "a norma". Por outras palavras, a mediocridade voluntária está a ser glorificada; não necessariamente pela juventude e criançada cujas características comuns normais, devido à idade, incluem uma certa infantilidade, mas sim pelos pais e adultos que, graças à idade, deviam ter prioridades mais urgentes e sérias.
A linha que separava a idade adulta da idade jovem e infantil desvaneceu-se, porque os jovens querem imitar os adultos e (pior, por ser incompreensível), os adultos querem imitar os jovens. Na linguagem, nos smiles, nas músicas, nos passatempos, nas diversões. E o mundo de "antigamente", em que, aos 18 ou 19 anos, havia uma mudança progressiva no pensamento do adolescente (que ganhava maturidade, interesses mais estimulantes, prioridades mais cuidadas), vai desaparecer e dar lugar a um mundo onde o expoente máximo de diversão e tempo bem gasto é igual para um adulto e para uma criança de nove anos. Democrático, sem dúvida. E "divertido". E assustador, também. Muito assustador.
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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 31

Previamente, em Smith e as Sereias, a situação de reféns no Nautilus acabou. Finalmente. Para eles e para nós. Jack, o responsável, é detido pela polícia e colocado numa salinha, onde Lilith o vai visitar. E ficam os dois, sozinhos, rodeados de uma grande carga emocional.

- Eu juro que não aconteceu nada – garantiu Lilith pela décima terceira vez. Estava com Ariel no Quarto do Principado, a fazer as malas.

- Queres convencer-me que estiveste uma hora sozinha com ele dentro de uma sala vazia e não aconteceu nada de nada? – Ariel estava a sentir-se particularmente fofoqueira naquele dia.

- Quero – disse Lilith com determinação.

- Pronto, pronto.

***

- Eu juro que não aconteceu nada – garantiu Jack, pela décima terceira vez. Estava com Smith no seu pequeno quarto, a fazer a mala.

- Queres convencer-me que estiveste sozinho durante uma hora com uma sereia como a Lilith dentro de uma sala totalmente vazia e não aconteceu nada de interesse que me possas descrever? – perguntou Smith.

- Quero.

- Pronto, pronto – Smith levantou as mãos como que a pedir tréguas – Mas eu não acredito.

***

- Não acredites se quiseres – disse Lilith – A verdade é essa. Ele está demasiado envolvido com a Rose para sequer pensar em tentar alguma coisa comigo.

- Oh, pelo amor da Pescada – Ariel sentou-se na cama com cinco camisolas no colo – Ele olhou para ti de uma maneira inequívoca. Ali há qualquer coisa.

***

- Seja, ali há qualquer coisa – concordou Jack – Mas ela não vai tentar nada comigo. Ela sabe que ainda estou demasiado envolvido com a Rose.

- Oh, pelo amor da Pescada – resmungou Smith, frustrado – Tu viste como ela se estava a agarrar a ti. A esfregar-se, quase! Ela está doidinha por ti.

***

- Que exagero! – murmurou Lilith, como quem rejeita uma possibilidade que gostava mesmo, mesmo, mesmo muito que fosse verdadeira.

- Que exagero não, tu estavas mesmo a pronunciar-te. Fizeste aquela coisa com a cauda, que tu fazes quando queres seduzir algum marinheiro sueco.

Lilith quase atirou dois pares de meias para dentro da mala.

- Isso… Isso…

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- São calúnias absolutas - resmungou Jack.

- Tá bem, tá. Digo-te – Smith riu-se conspiratoriamente e estendeu-lhe um dedo acusatório – Aquela coisa com a cauda é para te deixar maluquinho. Ela também usava aquele truque comigo.

Jack parou de arrumar a mala e apoiou-se na cama.

- Hoje é dia de novela mexicana, certo?

***

- Certo – respondeu Ariel – E vou ficar a insistir nisto até teres a coragem de dizer “Ok, eu sinto-me ligeiramente atraída por ele”.

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- Ok, eu sinto-me ligeiramente atraído por ela, é verdade – Jack começou a suar – Mas… é complicado… Eu ainda gosto muito da Rose. Quero encontrá-la. Não quero mais nada neste mundo senão voltar a vê-la…

***

- Oh, vá lá – resmungou Ariel, cruzando os braços – Eu sei que ele vive nessa obsessão, mas o seu comportamento trai-o totalmente. O triângulo amoroso é tão banal que já não surpreende ninguém.

- Afinal levo roupa quente ou roupa ligeira? – desviou Lilith.

***

- E eu sei lá – respondeu Smith – Ainda nem percebi onde vamos.

- Vamos à procura da Rose.

- Sim, mas há mais.

***

- Pois há – disse Lilith – O Pai é que ainda não nos disse nada…

- Leva das duas, então – opinou Ariel – O Nautilus tem ar condicionado.

Lilith fechou a mala.

***

Jack fechou a mala.

- Vamos ter com elas? – perguntou Smith.

- Vamos.

***

- E se fizeres aquilo com a cauda outra vez, dou-te um sinal para te controlares – brincou Ariel.

***

- Ah, ah, ah – resmungou Jack – Muito engraçado.

Jack e Smith saíram do quarto e caminharam pelo corredor.

***

- E tens que ter cuidado com a forma como falas com ele – aconselhou Ariel - Estás numa situação complicada. Ele tem de perceber que tu não estás verdadeiramente interessada nele. Senão pode magoá-lo. Esperamos até encontrar a Rose e logo se vê como tudo corre. Pode ser que consigam resolver tudo calmamente.

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- E tens de ter cuidado com a forma como lhe olhas para o decote – aconselhou Smith – Estás numa situação tramada. Ela tem de achar que tu não estás verdadeiramente interessado nela. Senão isso pode deixá-la numa crise de ciúmes descontrolada. Esperamos só até encontrar a tua Rose e logo se vê como tudo corre. Pode ser que elas resolvam isso à pancada.

***

- Ok, se tu o dizes… - murmurou Lilith, preocupada.

- O que é que estavam a dizer? – perguntou Smith, aproximando-se delas. Jack vinha ao lado dele, com cara preocupada.

- Nada – cortou Ariel.

- Oh, vá lá. Somos amigos. Fazemos um grupo tão giro – Smith abriu os braços e soltou um sorriso.

- Ela já disse que não foi nada – insistiu Lilith – São conversas nossas.

- Sim. Conversas de mulheres – disse Ariel – E vocês, falam de quê?

- Conversas de homens – disse Smith, orgulhoso.

- Estereótipos estúpidos e generalistas – Jack levou a mão à testa – Que bela maneira de acabar um episódio.


Todas as Terças e Quartas, mais episódios de Smith e as Sereias.