terça-feira, 29 de junho de 2010

Casamento homossexual: a destruição da sociedade

Nota inicial: Este post pode ofender a sensibilidade de algumas pessoas.

Escrevi aqui há uns dias um post sobre as declarações publicadas no site Portal Evangélico sobre a morte de José Saramago, mas a verdade é que poderia escrever muito mais reflexões como essa porque o site em questão é demasiado estranho para ser deixado em paz. Outro texto recente publicado no Portal dá conta do (música dramática suficientemente cristã) CASAMENTO HOMOSSEXUAL.

Embora seja desde sempre um pilar matricial da civilização judaico-cristã, [o casamento heterossexual] trata-se de uma realidade universal fortemente enraizada em diferentes civilizações, culturas e religiões. Como elementos essenciais, o casamento sempre teve o encontro entre os géneros, numa perspectiva de igualdade e complementaridade, e a criação de uma estrutura estável e saudável para o desenvolvimento físico, emocional e espiritual das crianças. O mesmo tem sido, ao longo da história, e ainda é hoje, o contexto óptimo desse desenvolvimento.

Um desafio aos caros leitores: nomeiem-me um contexto histórico em que o casamento tenha realmente representado “o encontro entre géneros, numa perspectiva de igualdade e complementaridade”. Ou, por outras palavras, encontrem-me por favor um momento na história em que a mulher tenha alguma vez tenha tido, por estar casada com um homem, um estatuto igual ao seu.

E, já que estão a tentar impossibilidades, expliquem-me também porque raio é necessário um casamento especificamente entre duas pessoas de sexo diferente para que haja “uma estrutura estável e saudável para o desenvolvimento físico, emocional e espiritual (espiritual?) da criança”. Com certeza todas as mães e pais solteiros, ou todos os filhos de pais divorciados, ou todos os filhos de pais que não estejam casados, concordarão com o Portal Evangélico: de que outra forma poderemos criar uma criança saudável e feliz? Eu próprio fui criado por pais divorciados; talvez isso explique a falta de “desenvolvimento espiritual” na minha infância e o meu consequente ateísmo rebelde e violento.

A união entre um homem, uma mulher e os seus filhos é a base de uma sociedade equilibrada. Nela a sexualidade é saudável e a intimidade é profunda, porque baseada na diferença e na complementaridade.

Porque uma sexualidade entre dois homens e duas mulheres é simplesmente impossível de imaginar. Aliás, nunca poderá ser saudável! (o que quer que isso signifique; para o Portal Evangélico, “saudável” parece ser sinónimo de “nada de coisas que a nós nos pareçam esquisitas”). E, pela mesma ordem de ideias, toda a gente sabe que um casal de homossexuais é absolutamente incapaz de qualquer tipo de intimidade que chegue sequer aos calcanhares da íntima relação entre um bom homem e uma boa mulher cristãos. Mas já que falamos da muitíssimo óbvia superioridade do casamento heterossexual, porque será ele tão importante? Alguma ideia?

Quando essa união (casamento heterossexual) falha – e infelizmente falha muitas vezes – toda a sociedade paga um elevado preço, em depressões, violência doméstica, suicídios, pobreza, delinquência juvenil, insucesso e abandono escolar, abuso sexual de menores, criminalidade, etc.

Tirem alguns momentos para controlar as gargalhadas, se precisarem. Então subitamente todos os problemas do planeta, desde a pobreza até à violência doméstica, delinquência juvenil e criminalidade generalizada, têm finalmente uma explicação: o divórcio! Os leitores que sejam um pouco mais inteligentes que o Portal Evangélico poderão estar a perguntar-se, “Mas espera, mesmo que o fim de um casamento tradicional levasse à completa destruição da sociedade organizada, o que raio é que isso tem que ver com o casamento homossexual?”. O Portal Evangélico não revela essa importante relação, por estranho que pareça; muito menos parece ser tão activamente contra o divórcio (que causa tamanhas consequências destrutivas) como é contra o casamento homossexual (que, a julgar pela falta de explicações no Portal, não causa nenhuma).

Outra coisa que o Portal Evangélico também não explica é de que forma o casamento entre os meus dois vizinhos do sexo masculino vem destruir o fundamento básico do casamento da minha mãe e do meu pai, e consequentemente o equilíbrio da nossa família. Se o casamento tradicional é assim tão comichoso e frágil é porque algo de estranho se passa com a vossa estrutura familiar perfeita. Continuemos a nossa viagem pelas estranhas paisagens da aridez intelectual:

Pretende-se afirmar equivalência moral entre o estilo de vida homossexual e o heterossexual monogâmico. Esta mensagem, de fundamento biológico, moral e social mais que duvidoso, é perigosa para um Estado activamente envolvido na educação de crianças e jovens. Ela dá a entender que nada existe de moralmente intocável e indisponível, que tudo é mera construção social e resultado de preferências individuais e colectivas. Ora, um pilar fundamental da teoria moral, política, e jurídica Ocidental é a existência de valores e princípios nucleares, que os Estados, as sociedades e os indivíduos não podem criar nem devem tentar destruir, sob pena de pagarem um elevado preço no processo.

Ok, outro desafio para os leitores: pensem em posições morais, leis ou qualquer tipo de valor que hoje está alterado mas que em tempos foram “valores e princípios nucleares”. Eu fiz a minha lista: escravatura, mutilação genital, falta de direitos das mulheres, casamento ser apenas uma união entre pessoas da mesma raça, inexistência do divórcio, contracepção, educação ou saúde públicas… Acho que podia continuar, mas devem ter percebido a ideia. Se o Portal Evangélico existisse na altura com certeza teria feito um tão volumoso beicinho quando um idiota qualquer tentou alterar as tradições e valores fundamentais da altura, libertando os escravos, ou levando tratamento médico aos mais desfavorecidos. Loucuras modernas, isso sim!

O que o Portal Evangélico não consegue perceber é que a nossa noção de moral vai sendo alterada ao longo dos tempos, desde que começámos a viver em sociedade uns com os outros. Ao longo de milénios, fomos percebendo que regras funcionavam melhor e quais deviam ser abandonadas. Coisas óbvias e “nucleares” como não roubar ou não matar, só são tão óbvias não por serem por si só valores mágicos e insubstituíveis, mas porque têm aplicações práticas no dia-a-dia das pessoas e nos permitem viver melhor. Vamos acrescentando direitos, fazendo limitações aqui e ali, com o objectivo de melhorar a sociedade PARA TODOS. Assim libertámos os escravos negros, demos os mesmos direitos que os homens às mulheres, e assim daremos o casamento aos homossexuais, tudo pela mesma razão: não magoa ninguém, apenas traz mais liberdade e uma vida melhor e mais justa às pessoas envolvidas.

Todo este processo de melhoramento progressivo da sociedade será dificultado enquanto houver dinossauros como vós, sempre a tentar atacar o avanço e a arrastar o país e o mundo para trás. Tudo o que precisavam de fazer era demonstrar de que forma o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a homossexualidade em geral pode realmente destruir a sociedade; e se o conseguissem fazer, seria o primeiro a concordar convosco; mas infelizmente são incapazes de apresentar uma defesa decente da vossa posição, e por isso as pessoas que andam para aqui a tentar melhorar o planeta para o bem de todos vão continuar a dizer-vos adeus a bordo do comboio do progresso. Feliz estadia na Idade Média (e por favor parem de nos tentar arrastar convosco).


( link original: http://www.portalevangelico.pt/noticia.asp?id=3585 )

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Saramago era um homem sem esperança que agora arde no Inferno: uma reflexão sobre a beleza das crenças cristãs

Saramago poderia ser relembrado por aquilo que foi: um dos mais brilhantes escritores da língua portuguesa do século, ou talvez uma figura importante na nossa sociedade independentemente dos seus ideais políticos; mas há uma insistência em continuar a tratá-lo, agora que morreu, como um idiota hostil que ganhou a vida a maltratar a pobre e desamparada comunidade cristã. Afinal, para quê elogiar um escritor que ganhava a vida a escrever romances brilhantes quando o podemos maltratar e representar erradamente só porque não concordava connosco? O texto publicado no jornal do Vaticano fez a sua parte, e o Portal Evangélico publicou também o seu “parecer” em relação a Saramago.
O próprio título do artigo, “O fim das dúvidas”, contém a principal mensagem a reter: Saramago estava enganado, e agora vai descobrir o quanto estava enganado quando der de caras com o Salvador; Salvador esse que, “na Sua misericórdia” como é dito no artigo, o conduzirá ao mais terrível Inferno onde Saramago será torturado para toda a eternidade só porque era ateu. Sim, eu sei; estou a revelar a parte mais bonita da opinião evangélica sobre este assunto cedo demais. Vamos por partes.
O que nos custa é que alguém viva a sua vida sem esperança, na negação diante de todas as evidências da existência do Deus pessoal. Mas morrer sem esperança é terrível, quando é perfeitamente possível morrer não confiado nas nossas virtudes.
Deixemos de parte o que poderia abrir caminho a um post muito, muito comprido sobre "todas as evidências da existência do Deus pessoal". Sinceramente, e isto pode ofender algumas pessoas e se for o caso peço desculpa previamente, mas estou mais do que cansado desta ignorante visão dos ateus ou não-religiosos. Acho irónico que uma trupe que acredita que esta vida serve basicamente para fazer as malas para uma estadia permanente no Paraíso defenda que tem mais esperança e sentido na sua vida do que as pessoas que tentam aproveitar a única vida que provavelmente terão para serem felizes e viverem as suas paixões e gostos pessoais. Já que, como ateu, sou muitas vezes mal representado, respondo na mesma moeda: não me cabe na cabeça como alguém pode dar valor à vida que vive neste mundo quando SABE com toda a certeza que assim que morrer vai direitinho para a companhia infinita do Omnipotente criador do Universo. Não serão os anos que cá passamos na Terra uma mera oportunidade para aceitar Jesus e ler muitas vezes a Bíblia, como quem se prepara com aftershave e meias lavadas para um encontro importante?
Parece inacreditável, mas é possível não acreditar em Deus e mesmo assim ter pena de morrer, ou saber aproveitar a vida, ou até dar sentido à nossa existência. Morrer sem uma crença não é sinónimo de morrer mergulhado numa falta de esperança amedrontada. Por favor parem de tratar quem não acredita no mesmo que vós como uma parte deprimida da população.
A vida e a morte de José Saramago custa-nos, porque ironizou, brincou, ofendeu, parodiou, blasfemou, insultou o texto sagrado e a pessoa de Jesus Cristo. O Prémio Nobel alcançado na linha destes ataques não nos orgulha.
Ok, não bastava a má representação de outros pontos de vista mas, à boa maneira da religião, tinha de vir o erro factual. José Saramago não ganhou o Nobel por causa de nenhum ataque a nenhuma religião. Eu sei que pode ser difícil de engolir, mas havia quem realmente desse importância aos livros do senhor e não aos seus ocasionais comentários sobre a Igreja. Aliás, tenho outra notícia de última hora: a vida de Saramago não foi dedicada a “ironizar, brincar, ofender, parodiar, blasfemar ou insultar o texto sagrado e a pessoa de Jesus Cristo”, muito menos construiu uma carreira baseando-se nessas opiniões. A única razão porque Saramago se revoltou pessoalmente com a fé cristã foi simplesmente porque viu um dos seus livros ser atacado por pessoas mesquinhas como vós, caros evangélicos, que fazem um enorme alarido de cada vez que alguém sequer menciona o nome do vosso salvador sem ser para lhe fazer festinhas. O vosso problema é que são incapazes de separar o…
Esperem, porque o artigo tirou-me as palavras da boca:
Não podemos separar o engenho e a arte dos conteúdos afrontosos da pessoa de Jesus Cristo.
Claro que não podem, aí está o vosso problema. O resto do planeta pode afastar o engenho e arte de Saramago das suas opiniões e declarações (que, diga-se de passagem, eram muito mais sobre a Igreja Católica, a Bíblia e Deus e menos sobre Jesus Cristo propriamente dito), e assim apreciar a obra e respeitá-lo como o escritor que era independentemente das suas crenças pessoais.
Pode parecer chocante, mas é possível dividir aquilo que a pessoa faz daquilo em que acredita. Eu não concordava com Saramago num enorme número de questões, incluindo em algumas das suas críticas à religião, mas isso não me impede imediatamente de o apreciar como escritor, mestre da língua portuguesa e da arte do romance, e de me entristecer com a morte não de um senhor com o qual não concordava, mas de um dos grandes autores portugueses. Quem morreu foi um grande autor português, não um gajo qualquer com o qual eu não concordava. Aliás, Saramago era ambas as coisas, e por isso morreram os dois Saramagos; mas o que fará falta e merece ser recordado é o Saramago Grande Escritor, e não o Saramago Ateu. Prioridades, minha gente. Falta-vos olho para as prioridades.
Claro está que poderão dizer o que vos aprouver sobre Saramago, mas não esperem serem levados a sério. A vossa mastodôntica necessidade de fechar a concha quando há uma mínima referência à vossa religião afasta-vos cada vez mais do resto do mundo. A venda dos livros de Saramago aumentou brutalmente, e com certeza a sua obra vai viver nas próximas gerações; os únicos a gritarem e a darem importância ao quanto Saramago era um não-religioso terrível são vocês. Juntem-se à Igreja Católica, fechem-se numa bolha e esperem pelo regresso do vosso muito amado (e ofendido repetidamente, certo?) Jesus Cristo. Eu cá vou ler “A Caverna” e fortalecer o meu ateísmo depressivo e auto-destrutivo.

.

domingo, 27 de junho de 2010

100 mulheres católicas, Sem Mulheres Inteligentes

Mais de cem mulheres católicas pedem a António Bagão Félix que se candidate à Presidência da República, certas de "não existem em Portugal muitas pessoas com a capacidade de representar um povo maioritariamente católico", num "tempo particularmente perigoso" em que "os valores parecem tornar-se absurdos, em muitos casos alvos a abater".

Eu devia estar em hibernação quando Portugal se transformou num país onde o catolicismo é um critério tão importante numa pessoa que lhe pode custar uma eleição. Ou, pior, parece ser agora possível formar um movimento que diga com seriedade que os católicos não se sentem representados, ou por outras palavras a religião de uns deve ser questão política.

Escolher um candidato pela sua religião (porque o próprio nome do movimento evidencia o porquê de toda esta iniciativa) é simplesmente absurdo. Parece-me ser do senso comum que a última coisa que queremos é ter um Presidente com uma agenda católica, ou muçulmana, ou de qualquer outra religião simplesmente porque nunca poderá garantir a parcialidade e objectividade que um representante de todo o país deve ter. Não é suposto o Presidente representar só a maioria do país e borrifar-se para o resto.

Num país ideal, um Presidente da República é escolhido pelas suas capacidades, pelo seu currículo, pela sua integridade ou pelas ideias que coloca em cima da mesa; e nunca, nunca, nunca um grupo de pessoas se reúne para colocar uma crença pessoal do candidato à frente de qualquer outra coisa.

E obrigado aos católicos portugueses por continuarem a achar que eles merecem representação política mas o resto da população não.


(link original: http://www.publico.pt/Política/cem-mulheres-catolicas-apelam-a-candidatura-de-bagao-felix_1442257 )

.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

A chuva

Paulo, de fato e gravata, botões de punho caros, sapatos engraxados ao ponto de serem espelhos e uma mala de pele preta era a personificação de um estereótipo. Quem o visse poderia cheirar o aroma dos cheques passados em seu nome. O seu trabalho era livrar pessoas que ganhavam muito mais do que ele de problemas temporários ou consequências desagradáveis de um acidente ou outro, como um homicídio mal explicado ou a presença de um cabelo do cliente num local de um crime violento. Saía de mais um julgamento onde o juiz soubera imediatamente qual seria o veredicto, para isso lhe bastou ver Paulo entrar pela porta. Às portas do tribunal, uma mão porca estendeu-se a seus pés e uma voz embriagada pediu-lhe uns trocos.
- É meio-dia e quarenta – disse Paulo, olhando para o seu estereotipado relógio de marca – E já está bêbado?
O vagabundo aos seus pés sentou-se direito contra a coluna do edifício, e mandou a manga grossa do casaco coçado sobre as latas vazias.
- Ora essa, sotôr, eu não estou embriagado.
- Se eu lhe der uma moeda vai ao supermercado a esquina comprar outra lata de cerveja?
- Quanto muito uma sopinha. Ou um salgadinho.
Paulo sorriu abertamente, e escondeu-se na sua autoconfiança. Racionalizou que se este homem aproveitava os trocos que a solidariedade alheia lhe disponibilizava de forma tão mal aproveitada, mais um troco ia apenas enviá-lo para uma bebedeira ainda mais profunda e humilhante. Perguntou-se, isto tudo em apenas alguns segundos, porque estaria este homem sentado ao sol, de roupa porquíssima, à espera que lhe caia dinheiro aos pés, quando podia estar, sei lá, a tirar um curso superior para encontrar um emprego como o seu; com certeza porque era um preguiçoso.
O estereotipado advogado abandona o estereotipado vagabundo, que lhe lança um dedo médio energético, pimba. O advogado desce as escadas, caminha até ao seu carro (descapotável), e nele entra preparando-se para ir até casa.
Um sinal vermelho e as suas memórias das aulas de código indicam-lhe uma paragem, e Paulo trava. Olha à sua volta, para a cidade que se estende à sua frente. Um sol abrasador que faz brilhas qualquer superfície minimamente polida lança reflexos lindíssimos sobre os prédios dos dois lados da rua. Uma faixa de luz, esmagada pelo peso dos arranha céus que o rodeiam, mostra um pedaço de céu lá muito ao cimo. Paulo olha para ele, admirado com o calor que está, fascinado com a beleza natural do mundo onde vive, e perguntando-se que serão aqueles pontos negros.
Os pontos negros deixam de ser pontos para serem formas, multiplicam-se cobrindo o céu, e atrás das formas que deixam de ser formas para ganharem volume aparecem mais formas e mais pontos, mostrando que atrás se aproximam mais do que quer que lá venha. Paulo semi-cerra os olhos para melhor distinguir o que cai do céu. As formas ganham forma, e Paulo distingue corpos. Começa a chuva. Dezenas, senão centenas, caramba, até milhares de corpos de pessoas, crianças, homens, velhos, mulheres de todas as formas e feitios, chovem dos céus e estatelam-se no chão como pesos mortos. Uns caem sobre os carros estacionados, partindo vidros, outros atingem os passeios e o asfalto da estrada e desmancham-se num desagradável florir de órgãos internos e fluidos salpicantes, outros atingem pessoas que passeiam pela rua, multiplicando o número de corpos estendidos. Começam gritos, as pessoas abrigam-se dentro das lojas, debaixo dos carros, e a chuva continua torrencial. Corpos e mais corpos caem sobre a cidade, partindo vidros, quebrando árvores, atingindo transeuntes, esmagando carros. Paulo baixou-se, desaparecendo debaixo do banco do carro, e aterroriza-o o som dos crânios e das pernas e dos braços dos corpos que chovem a baterem no capot e no tecto do carro.
Durante quantos segundos ou minutos ou horas dura a chuva depende da pessoa a quem se faz a pergunta. Os que lá estavam diriam que foram horas, repletas de um pânico e de uma incredulidade bloqueadora de pernas. Quem viu tudo das suas janelas, no alto dos prédios, sem levar com nenhum pedaço de pessoa em cima mas vendo-os cair como uma chuva de granizo de mau gosto diria que tudo não demorou mais do que vinte a trinta segundos. O tempo pouco importa, importam as consequências, e terminada a chuva quando os céus não tinham mais nenhum corpo para cuspir, uma camada espessa de não-identificados corpos abandonados cobria a rua.
As cabeças de quem assistiu começaram a sair de dentro dos carros e de dentro das lojas, e das janelas dos prédios em volta, e um silêncio pesadíssimo marcou a solenidade da situação até que uma mulher, que lá teria as suas razões, soltou um guincho estridente e pareceu despertar as cordas vocais de quem tinha um grito semelhante preso na garganta. A rua encheu-se de choros e berros, enquanto Paulo rastejou de dentro do seu carro e olhou em volta. No cimo do se capot, de cabeça pendurada como uma galinha depenada na montra do talho, estava o vagabundo bêbado, mais morto do que nunca.
Paulo enfiou a cabeça debaixo do chuveiro e deixou-se ficar a descansar na água quente. Depois saiu da banheira, salpicando o chão, e enrolou-se no toalhão turco. Foi até à sala, descalço, e olhou outra vez para o pequeno terraço que dava para o mar. Sete corpos retorcidos estavam deitados em posições impossíveis, dois em cima de uma espreguiçadeira, outro atingira uma das plantas e os restantes espalhados junto ao canteiro das orquídeas. Paulo observou-os, e perguntou-se até que ponto poderia manter o pequeno-almoço no devido local. Foi até à sala e ligou a televisão. Um qualquer representante da autoridade pública, repleto de medalhas e insígnias na farda verde, declarava o estado de calamidade pública no país, aconselhando as pessoas a irem imediatamente para casa ou, se já lá estivessem, não saírem para a rua. Não quis adiantar um número de vítimas possível, mas sublinhou que tudo estava a ser feito para compreender as ramificações do fenómeno. Paulo mudou para um canal internacional, e outro indivíduo com as suas medalhas e farda de cerimónia decretava o estado de calamidade pública noutra língua qualquer. A situação repetiu-se nos canais ingleses e franceses. Vídeos amadores da chuva de corpos eram transmitidos, enviados às estações de televisão por espectadores russos, iraquianos, sul-africanos, brasileiros, peruanos, americanos, coreanos ou australianos. O fenómeno era global. Paulo desligou o televisor, já chegava de más notícias, e perguntou-se o que iria fazer com os corpos no terraço. Deveria deixá-los ali a apodrecer, varrê-los para o terraço debaixo visto que o seu vizinho estava fora do país, ou até ligar para o com certeza bloqueado número de emergência? Não querendo parecer insensível, foi à cozinha e fritou um bife de peru para o almoço.
Até às oito da noite os desenvolvimentos tinham sido muitos. Relatos surpreendidos de todo o planeta chegavam aos diversos governos, informando que grupos inteiros de desfavorecidos, pobres, crianças abandonadas, doentes terminais e outro tipo de classes sociais baixíssimas tinham desaparecido misteriosamente das associações, creches, hospitais, casas de repouso, ou até das savanas africanas. As imagens assustadoras de um vídeo amador mostravam uma favela brasileira completamente vazia, deserta como uma cidade abandonada. E depois de alguns casos pontuais de pessoas que reconheceram alguns dos corpos caídos pelas ruas, começou a gerar-se o rumor de que tudo aquilo não passava de uma vingança contra o mundo moderno e capitalista que ignorava os mais fracos e oprimidos.
Ao que parecia, e isso só comprovava o facto de Paulo ter reconhecido o vagabundo morto no cimo do seu carro, os pobres e abandonados tinham deixado os seus locais reservados a quem é pobre e desfavorecido para choverem sobre o mundo que continuava a sua vidinha sem eles. Líderes religiosos profetizavam o óbvio fim do mundo, e a condenação dos pecadores; os políticos desfaziam-se em desculpas pela forma como as autoridades lidavam inutilmente com a situação; e manifestações pela cidade exigiam pedidos de desculpas formais de algo ou alguém, porque alguma organização ou algum político corrupto teria culpa com certeza.
Passaram-se dois dias, e Paulo estava a ficar sem bifes de peru para cozinhar. “Isto é absurdo”, pensou, e saiu à rua para comprar alimento. Não poderia usar o carro, porque muitas ruas estavam ainda impedidas. Máquinas destacadas pelos governos atravessavam as ruas, varrendo os corpos e empurrando-os e amontoando-os sem cerimónias quando todos perceberam que uma identificação eficiente era impossível. Mesmo ali, na sua rua, dois montes gigantescos de corpos observavam-no como duas torres de degradação. O cheiro começava a ser enjoativo, pelo que helicópteros ocasionais sobrevoavam a área dispersando um pó perfumado e que, pelo aroma, parecia incluir na sua composição um qualquer tipo de desinfectante.
Paulo observou que outras pessoas, mas poucas, tinham tido a mesma ideia que ele. Juntou-se a uma pequena multidão à porta de um supermercado, cujo letreiro caíra havia momentos sob o peso dos corpos que tinham chovido. Uma confusão enorme gerou-se entre aqueles que desejavam entrar no supermercado. O dono da superfície, vendo todo aquele potencial de compra, ofereceu-se para afastar o letreiro caído com a ajuda de braços voluntários. Logo um grupo de homens se reuniu e empurrou com esforço o contorcido pedaço de metal colorido, até que um corpo de uma pequena criança negra caiu como um peso morto em cima de uma senhora que por ali esperava e soltou um grito apavorado. Outros dois corpos caíram de cima do letreiro, e alguém gritou que estavam a chover pobres outra vez. Uma abertura foi disponibilizada finalmente, o letreiro removido, e a multidão entrou no supermercado agitando notas e garantindo que pagava bom dinheiro por cada garrafão de água e por cada lata de detergente. Paulo olhou em volta e sentiu-se subitamente esmurrado no estômago emocional que todos temos, e que é esmurrado em todas as ocasiões em que a nossa sensação de normalidade é violentada por algum acontecimento fantástico. “Um mundo de ricos”, pensou, “será melhor ou pior? Se morrem todos os pobres, e se sobrará apenas os ricos e as notas e as moedas, de que valerá esse dinheiro?”. Paulo entrou pelo supermercado, e depressa compreendeu que se não se despachasse as águas engarrafadas iam desaparecer, assim como os artigos de farmácia e primeiros socorros. Havia no ar a sensação de que aquela era uma situação idêntica à de qualquer filme de terror, onde uma catástrofe limpa parte da população e a restante tem de lutar pela sobrevivência. Era ver todos aqueles advogados, empresários, enfim, fatos de marca com peras, a correr por entre as prateleiras e a agarrar o que pudessem com as mãos, mãos essas que estendiam notas de dezenas de euros aos funcionários das caixas. Enquanto Paulo esperava na fila, o preço do litro de água engarrafada passou de 60 cêntimos para trinta e cinco euros e meio, e enquanto pagava um funcionário do supermercado foi colar uma etiqueta que dizia ESGOTADO sobre o placard dos produtos de primeiros socorros.
Paulo arrastou-se pelo meio da multidão, paparicando um pacote de bolachas de chocolate e trazendo alguns alimentos. A rua estava deserta, fora, claro, a omnipotente presença de todos os corpos por ali deitados. Ao pé de uma ambulância, dois corpos em cima um do outro contorciam-se. Paulo parou, petrificado, pensando que o que mais faltava era que todos aqueles corpos se levantassem e andassem por aí a comer os vivos, aí sim seria um filme de terror autêntico e um salve-se quem puder. Mas o corpo que estava por cima levantou-se, olhou em volta e, estupefacto, Paulo viu a face de uma rapariga nova aparecer por entre os farrapos de gabardine que lhe escondiam o corpo. Era uma cara bonita, de olhos claros, e com as bochechas repletas de fuligem.
- Hei – disse a rapariga, aproximando-se dele – Por favor, água.
Paulo viu-a aproximar-se. Teria dezasseis anos, talvez menos.
- Água – repetiu a rapariga.
Paulo tirou de dentro dos saco uma garrafa de plástico e as mãos sôfregas da rapariga agarraram-na, puxando-a na direcção da sua boca gretada. Bebeu quase meio litro de uma vez, engasgando-se de vez em quando, e quando parou olhou para Paulo nos olhos e disse:
- Desculpe-me, tem de me desculpar mas estava a morrer de sede.
- Tu…
- Eu.
- Porque estás assim vestida? A que pobre coitado é que roubaste essas roupas?
- A ninguém. São minhas. Deram-mas há anos.
- Tu és pobre.
- Sou.
- Vives na rua?
- Vivo.
- E… - Paulo olhou para os céus, e a rapariga percebeu a pergunta não formulada.
- Se caí de lá de cima? Sim.
A rapariga voltou a beber água, desta vez mais calmamente.
- Como assim, caíste?
- Como todos estes que estão para aqui espalhados – disse ela com toda a calma – Aterrei num parque de diversões, em cima de um castelo insuflável.
Dizia tudo aquilo com toda a calma deste mundo, agarrada à água como se lhe pertencesse.
- Tens comida?
Paulo estendeu-lhe um pão, e ela comeu-o. Sentaram-se do outro lado da rua, num banco de um pequeno jardim onde, pelo ar deserto da relva, uma das máquinas escavadoras já tinha passado.
- Isto foi Deus a puxar o autoclismo – disse a rapariga sem cerimónias. Mastigava de boca aberta – Limpando do mundo todo o lixo que estava a mais.
- Isso é uma coisa terrível de se dizer, não achas?
- Não. É a verdade que todos os que sobreviveram pensam, só que eu ponho-a por palavras. Tudo quando era pobre, escória da sociedade, indigente, maltrapilha, doente ou infectado. Choveram todos dos céus e vieram cair aos vossos pés.
Paulo olhou em volta para os corpos estendidos na rua.
- E vocês que pensavam que nós éramos um incómodo quando estávamos vivos – disse a rapariga com uma gargalhada.
- Ninguém pensava tal coisa.
- Ai não? Olha para eles, a lutarem por uma garrafa de água ou por uma caixa de aperitivos – disse a rapariga, apontando para a entrada do supermercado – Repara na preocupação. Nem quando lhes cai o maior pecado da humanidade à frente dos pés são capazes de parar para pensar e tirar a cabeça de dentro do próprio rabo.
A rapariga deu uma dentada no pão e mastigou de boca aberta.
- O que viste? – perguntou Paulo.
- Onde?
- Lá em cima, antes de caíres.
- Nada. Quando dei por mim estava a descer e a ver a cidade estendida à minha frente, e à minha volta caiam outros mal vestidos e porcos e doentes como eu. E gritavam, e berravam, e choravam também.
- Isto é um sonho, ou uma alucinação.
A rapariga olhou para Paulo de lado, com um esgar sarcástico na boca coberta de farinha.
- Diz-lhe isso a eles – apontou para os corpos. Ao longe, uma máquina empurrava uns quantos para perto de um dos montes.
- Tens onde passar a noite?
- Ei, nem penses que me vais levar prá cama – disse a rapariga.
- Tens onde passar a noite ou não? Há mais pão de onde esse veio, e roupa lavada também.
- A sua senhora não fica com ciúmes?
- Eu não tenho nenhuma senhora, não te preocupes.
Paulo sentiu-se estranho por ver uma estranha adormecer no seu sofá. Lá fora, as luzes de dezenas de helicópteros cruzavam os céus, e aqui e ali havia ruídos de máquinas a funcionar. Amanhã seria dia de trabalho, mas tudo indicava que tal nunca viesse a acontecer. Teria de esperar quanto tempo até que o mundo voltasse a rodar normalmente? Adormeceu.
No dia seguinte Paulo acordou com alguém a remexer por entre os móveis da sala e vestiu o roupão para ir até lá e expulsar a rapariga de casa. Estaria com certeza à procura de mais comida, dinheiro, jóias, ou talvez dos três. Pensou até que seria capaz de violência física. Abriu a porta do quarto e atravessou o corredor. A rapariga estava de pé no centro da sala, e um homem musculado tinha numa mão o seu pescoço nu e na outra uma arma apontada à cabeça dela. Um segundo homem musculado, de bigode, percorria a casa, pontapeando gavetas e revirando móveis. Viram-no entrar na sala, e o homem que segurava a rapariga disse qualquer coisa em italiano. O segundo homem olhou para Paulo e estendeu-lhe uma pistola.
- Está carregada. Não tentes nada estúpido. Diz-me onde está o dinheiro e ninguém se magoa.
Paulo levantou os braços e baixou o queixo, porque a sua postura geralmente intimidatória e auto-confiante podia jogar contra si numa situação tão delicada.
- Na gaveta debaixo do televisor estão cerca de quinhentos euros em dinheiro. É tudo.
- E as jóias?
- Sou solteiro.
- Dá-me a carteira.
- Está no quarto, tenho de a ir buscar. Podem baixar as armas? Olhe para ela, está nervosa.
A rapariga tremia descontroladamente, sem tirar os olhos do cano apontado ao meio dos seus olhos. O primeiro homem não tirou a arma do lugar. O segundo homem apontou a arma ao peito de Paulo.
- Siga.
Foram ao quarto, Paulo deu-lhe a carteira, e o homem correu as gavetas e as cómodas à procura de mais qualquer coisa. Não encontrou. Regressaram à sala. O segundo homem lançou mais um olhar pela casa e disse qualquer coisa em italiano. O primeiro homem largou a rapariga, atirando-a com desdém para cima de uma cadeira, e seguiu o outro porta fora. Deixaram-na aberta, sem cerimónias.
A rapariga começou a chorar, e Paulo só baixou os braços depois de ouvir os passos dos dois homens desaparecerem corredor abaixo. Foi até à porta, fechou-a, ia trancá-la se não tivesse sido obviamente arrombada e depois aproximou-se da rapariga.
- Tem calma – disse estupidamente à rapariga que tremia. A sala estava caótica.
Paulo percorreu as gavetas de uma cómoda que, milagrosamente, tinha escapado ao ataque. Por graça não se sabe se de algo ou alguém divino ou simplesmente na Senhora Coincidência, era onde Paulo guardava uma jarra onde colocava por brincadeira os trocos ocasionais que encontrava nos casacos e nos bolsos das calças, imaginando que um dia cheio daria um bom pé de meio para comprar algum livro de arte ou algum CD de música clássica. O jarro estava a meio. Agarrou-o, enfiou-o no bolso do roupão e foi até ao quarto, onde procurou pela gaveta onde guardava alguns relógios. Retirou os dois mais caros, felizmente intocados como o jarro dos trocos, e colocou-os também no bolso do roupão. Foi para a sala.
- Eles levaram tudo – disse a rapariga. Estava levantada, de frente para o frigorífico aberto. Ainda tremia. Sem gabardine, apenas com uma camisa de noite e umas calças de ganga, parecia muito mais magra do que no dia anterior.
- Vou comprar mais ao supermercado. Espera aqui.
- Vou contigo – disse ela imediatamente – Se eles voltam estou lixada.
- Não voltarão, sabem que daqui já levaram tudo o que podiam.
- Mesmo assim.
- Ok.
Paulo não pensou muito, até porque lhe saberia bem a companhia. Também ele não queria ir sozinho. Desceram até à rua. O supermercado estava quase vazio. Lá dentro pouco restava de alimentos ou bens de primeira necessidade. Um cartaz dizia SÓ EM ARMAZÉM, PEDIR À ENTRADA. Paulo aproximou-se do homem que reconheceu como sendo o proprietário.
- Vim buscar água – disse.
- Quanto? – o proprietário olhou-o de alto abaixo.
- EU sei que estou de roupão, mas tenho dinheiro. Dê-me um garrafão. Dois, talvez.
- São cento e setenta euros.
- Perdão?
- Cada.
- Ouça, eu…
- Pisgue-se.
- Trouxe dois relógios, valem cada um muito mais do que cento e setenta euros.
- Para que quero eu dois relógios?
- Ora, para os vender.
- Hoje tive aqui uma senhora que me deu noventa e dois euros por uma caixa de pensos. Acha mesmo que vai haver alguém a quem vou conseguir vender dois relógios desses?
- Ouça, eu..
- Já lhe disse, pisgue-se.
- Não pode fazer…
- Ai isso é que posso.
O proprietário dobrou-se e regressou com uma caçadeira na mão.
- Isto é simplesmente exagerado – disse Paulo, forçando um sorriso cordial – Eu compreendi, vamos embora. Tenha calma. Já é a segunda vez que me apontam uma arma hoje, estou a ver que os tempos mudam depressa. Nós vamos embora.
Paulo e a rapariga iam sair quando o proprietário lhes deu uma ordem para pararem.
- Já agora dê-me lá esses relógios, vá.
Paulo olhou o proprietário nos olhos. A caçadeira ainda ali estava.
- Dá-lhe isso, vá – disse a rapariga, quase se escondendo. Paulo tirou os relógios do bolso do roupão e sentiu-se estúpido por os estar a dar assim. Atirou-os para cima da mesa. O proprietário olhou para eles de soslaio e pareceu satisfeito.
- Tenham um bom dia e voltem sempre.
Paulo e a rapariga saíram para a rua, onde os corpos ainda espalhados se apodreciam carcomidos pelas moscas. Os helicópteros que passavam lançavam o pó com aroma e desinfectante, mas o cheiro a podre parecia já entranhado nos corpos, nos prédios, no chão da rua e nos carros abandonados. Paulo olhou em volta, sem saber bem o que fazer, e sentiu dentro do bolso do roupão o jarrão de trocos que, na situação económica onde se encontrava, de nada valeriam.
- Num mundo de ricos, hein? – disse a rapariga.
- O que tem?
- Mesmo num mundo de ricos onde sobre dinheiro a todos vai sempre haver alguém que seja menos rico que os outros ricos todos, porque todos os ricos têm tendência a serem mais ricos do que os outros.
- Confundiste-me. Vamos para casa – disse Paulo, e a rapariga seguiu-lhe as passadas sem sentir a necessidade de se explicar; e antes de chegarem ao prédio, o chão por baixo dos seus pés, sobre o qual até ali caminhavam procurando não pisar os corpos caídos, desapareceu como que por magia e em vez dele Paulo sentiu nas solas o ar gelado da atmosfera. Do bolso voou o seu jarrão de trocos, e Paulo viu-o descer ao seu lado como um companheiro involuntário apanhado nas garras da gravidade. Quando deu por si estava a descer, e a ver a cidade estendida à sua frente.
.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma história de vampiros

Malaquias estava na cozinha a preparar o pequeno-almoço quando tocaram à campainha e ele foi abrir. Assim que puxou a porta para ver quem era um punho rijo entrou-lhe pelo hall adentro e atingiu-o na boca. Se Malaquias não fosse um vampiro, e por isso insensível à dor física, aquele murro teria trazido consigo uma pesada dor de cabeça e quem sabe um estalar desagradável do maxilar. Ainda assim, dois dentes pequenos e agudos saíram a voar da sua boca e aterraram na carpete. Malaquias levou as mãos à boca, cambaleou para trás completamente apanhado de surpresa, e viu o autor do murro afastar-se a correr da sua porta, desaparecendo na rua escura.

Malaquias dobrou-se sobre a carpete, apanhando os caninos arrancados, e não pôde evitar um sentimento de raiva. Ajoelhou-se, procurando meter as ideias no lugar, e ainda pensou em sair feito doido pela noite, procurando o engraçadinho e mostrar-lhe o que sabia fazer aos testículos de alguém que o chateava. Tudo coisas que aprendera na Coreia, durante a guerra.

No entanto, o choque sentido ao ver os seus caninos ali estendidos na carpete fê-lo bloquear completamente. Ficou de joelhos e mãos no chão, de gatas. Alguém entrou em sua casa.

- Então? Estás bem?

Um braço agarrou-o e puxou-o para cima.

- Morto é que não deves estar, por isso não há-de ser assim tão mau. Eu vi tudo, Malaquias. Vamos à polícia.

Malaquias virou a cabeça. Era Sofia, a sua vizinha. Às vezes era mais do que sua vizinha, especialmente depois de se ter divorciado do marido.

- Digo o quê à polícia? Que me arrancaram dois dentes?

- Isso é agressão, Malaquias – Sofia estava com o seu cachecol roxo e com o seu barrete a condizer enfiado até à linha das sobrancelhas, e ajudava-o a levantar-se com as luvas da neve. Era uma exagerada, não estava assim tanto frio à noite.

- Viste quem foi?

- Vi. Quer dizer, pareceu-me ter visto. Que era um homem enorme tenho a certeza, e era careca.

- Como sabes?

- Ele passou por mim a correr, e meteu-se dentro de um carro. Acelerou rua abaixo ainda há bocado. Anda, senta-te aqui.

Sentaram-se os dois nas cadeiras da cozinha, e Sofia foi fechar a porta da rua.

- Carlos.

- Desculpa?

- Carlos. É o nome dele, Carlos.

- Então viste-o!

- Não, mas só pode ser ele. Careca, enorme, e com a lata de me entrar em casa e partir-me dentes. Só poderá ser ele.

- Que fizeste a esse Carlos?

- Ele acha que sou um perigo para a comunidade.

- Queres gelo?

- Não tenho circulação, lembras-te?

- Ah. Como podes ser um perigo para a comunidade?

- É isto de ser vampiro.

- A mania que as pessoas têm de discriminar! Quer dizer, só porque os vampiros têm fama de atacar pessoas indefesas e chupar-lhes o sangue?

- Ele tem dois filhos pequenos.

- E isso é justificação? Vou fazer café, mas a seguir vamos à polícia. Ias jantar?

Sofia afastou o copo de sangue que estava em cima do balcão para chegar à máquina do café.

***

Sofia conhecia um advogado, que por alguma razão achou que aquele caso era imprescindível para chamar a atenção das pessoas para a comunidade de vampiros no país. Aceitou tratar de tudo pro bono, e duas semanas depois estava o julgamento marcado. Malaquias levou o seu fato e uma gravata azul (não convinha ser vermelha). Estava nervoso.

- Tens de te acalmar. O Paulo é de confiança – Paulo era o nome do advogado.

- Ontem cheguei a casa e tinha carne crua pendurada na campainha – disse Malaquias – Vou ter de mudar de casa rapidamente. Ninguém gosta de mim no meu bairro.

- Não percebo porque necessitas da aprovação de um grupo de pessoas que te partiu os dentes e te pendura carne crua à porta de casa.

- Não preciso. Mas se me mudo dali já não seremos vizinhos.

Houve uma pausa. Sofia começou a brincar com o cachecol.

- Só vizinhos? – perguntou Sofia.

- Sim. Não seremos vizinhos, mas podemos continuar… Tu sabes.

- Verbaliza.

- Podemos continuar com os nossos, er, encontros amorosos.

Antes que Sofia pudesse responder, quase de certeza positivamente, Paulo aproximou-se de fato, gravata e pasta de pele na mão.

- Ora aí estão, andava à vossa procura. Pronto?

Malaquias levantou-se.

- Nada de respostas compridas e descritivas – disse Paulo – Tudo sins e nãos. E tenta ao máximo que te pareças com a minoria discriminada que representas.

***

- Paulo Marques, representando Malaquias Sousa, o queixoso. Sr. Dr. Juíz, hoje será um dia histórico neste tribunal – anunciou Paulo. Tinha uma qualquer qualidade egocêntrica, e movia-se como se fosse a estrela numa série de advogados da televisão – O meu cliente, Malaquias Sousa, sofreu no passado dia 23 um dos mais ferozes ataques à sua identidade, mas temos hoje a possibilidade de reaver a honra perdida do meu cliente e mostrar que vivemos numa sociedade tolerante em relação a outras culturas, e intolerante em relação a quem não as respeita.

- Eu só lhe pedi para se apresentar – disse o juiz olhando para os papéis à sua frente. Teria no mínimo cento e cinco anos, e usava um antiquado par de óculos castanhos – Leio aqui que o queixoso é um vampiro.

- É verdade, Sr. Dr. Juiz.

- Ou seja, alimenta-se de sangue humano.

- Sangue, Sr. Dr. Juiz.

- Humano, correcto?

- Não necessariamente. Verá no processo que o meu cliente é o número 678 da Liga dos Vampiros Vegetarianos Europeia.

- Isso soa-me a uma má série de livros para adolescentes que houve aqui há uns tempos.

- Aqui está o problema com a nossa sociedade, Sr. Dr. Juiz. Partimos imediatamente para o estereótipo do vampiro sanguinário dos livros para adolescentes.

- Não, neste caso o vampiro era vegetariano e brilhava ao…

- Garanto-lhe que o meu cliente não se alimenta de sangue humano, se era isso que estava a perguntar – interrompeu Paulo. O juiz olhou para Carlos, um homem enorme e sentado com maus modos na cadeira da acusação.

- E qual é a acusação?

- Invasão de propriedade e agressão qualificada. O réu entrou em casa do meu cliente e partiu-lhe propositadamente os dois caninos, sinal inequívoco da agressão não só física como à identidade cultural do meu cliente, criando um dano físico irreparável.

- Sr. Dr. Juiz, o meu cliente não fez de propósito para partir aqueles dentes específicos – o advogado de defesa tinha-se levantado – Não era a sua atenção partir nenhum dente específico, ou sequer partir qualquer dente. Muito menos provocar algum dano físico irreparável.

- Mas conseguiu transfigurar o meu cliente! – disse Paulo. Era muito dramático.

- O seu cliente não parece minimamente desfigurado. Olhe, está a bocejar.

Malaquias fechou rapidamente a boca.

- Isso é porque está a avaliar o seu aspecto de uma forma parcial e simplesmente racista. Para o meu cliente, vampiro há mais de três séculos, perder os seus caninos é perder uma parte integrante do seu corpo e da sua identidade.

- Pode explicar-me porque é que deu um murro ao Sr. Sousa? – perguntou o juiz.

- Só falo na presença do meu advogado – respondeu Carlos, cruzando os braços.

Houve uma pausa.

- Sua Majestade, eu dei um murro no Malaquias mas foi em legítima defesa – disse Carlos. O advogado fez-lhe sinal para se calar.

- Está a dizer que foi até casa do meu cliente, tocou à campainha, esperou que ele a abrisse e depois o esmurrou na cara em legítima defesa? – Paulo levantou os braços sarcasticamente.

- O Malaquias é um vampiro. Não queremos vampiros a viver no nosso bairro. Eles são esquisitos.

O juiz olhou para o advogado de Carlos.

- Ou você controla o seu cliente ou este julgamento vai acabar daqui a muito pouco tempo.

O advogado engoliu em seco.

- Sr. Dr. Juiz, é inegável que um vampiro, que por definição se alimenta do sangue de pessoas indefesas, é um potencial perigo para a comunidade do meu cliente.

- De que forma foi o meu cliente um perigo para a comunidade? – perguntou Paulo.

- Sou eu quem faz as perguntas – disse o juiz. Paulo desculpou-se.

- Ele é um vampiro, Sr. Dr. Juiz – disse o advogado de Carlos. “Duh”, apeteceu-lhe acrescentar.

- O que significa ser um vampiro vegetariano? – perguntou o juiz.

- Um vampiro vegetariano é aquele que se alimenta exclusivamente de sangue de origem não-humana, como é o caso de sangue de vaca, coelho, porco, peru, ou outros animais. Nunca humanos – explicou Paulo.

- Ainda assim. É um vampiro, Sr. Dr. Juiz – disse o advogado de acusação.

- Eu já ouvi isso. Mas poderá dizer-me de que forma o facto de o Sr. Malaquias ser um vampiro se apresenta como justificação suficiente para o seu cliente o ter esmurrado? – perguntou o Juiz.

- Sr. Dr. Juiz, o meu cliente achou que estava a agir nos melhores interesses da sua…

- Por outras palavras, o Sr. Malaquias estava a tentar chupar o sangue da carótida do seu cliente no momento da agressão?

Houve uma pausa.

- Não – disse Paulo com um sorriso.

- Não, Sr. Dr. Juiz – repetiu o advogado de acusação.

- Então porque raio acha que pode defender esse homem? Ele entrou pela casa do Sr. Malaquias e partiu-lhe os dentes, por amor de Deus! – O juiz não conseguia perceber.

- E temos outro problema, Sr. Dr. Juiz – disse Paulo levantando um dedo – O meu cliente é modelo.

- Isso é um problema?

- De facto, se tivermos em consideração que o meu cliente foi o mais recente contratado para representar a comunidade de vampiros num cartaz da Liga para a Igualdade. Escusado será dizer que sem os caninos afiados lhe será impossível aceitar o trabalho.

O juiz dirigiu-se à defesa.

- O seu cliente indemnizará o Sr. Malaquias na quantia referente ao contrato de trabalho perdido, e a esse valor será acrescentado dez mil euros por danos morais. Além disso, pagará na íntegra a colocação e manutenção de uma prótese dentária na forma dos dois caninos perdidos.

- Sr. Dr. Juiz, apresentarei um recurso que…

O juiz riu-se, mostrando um par de dentes caninos afiados e compridos.

- Não apresentará coisa nenhuma. Terminámos.

***

- Eu nem precisei de falar – disse Malaquias.

- Foi melhor assim, pareceu mais indefeso e aterrorizado com a situação – disse Paulo, conduzindo-o pelos corredores do tribunal – Espere algum tipo de retaliações no seu bairro, mas com dez mil euros poderá facilmente mudar de casa.

- Obrigado, Paulo.

- De nada, meu caro.

Cumprimentaram-se. Paulo afastou-se com o queixo levantado e a postura de quem sai de cena. Sofia agarrou em Malaquias e puxou-o para dentro de uma casa de banho, onde lhe espetou um beijo e o abraçou.

- Dez mil euros! – disse ela.

- Vou doá-los à Liga pela Igualdade. Quero ajudar outras pessoas como eu.

- Não percebo porque é que és tratado como algum tipo de monstro. Se as pessoas te pudessem conhecer…

- Ora, eu…

- Morde-me. Já.

- Desculpa?

- Quero que te alimentes do meu sangue e que me faças vampira. Quero viver para sempre ao teu lado, Malaquias.

- Não achas que devíamos primeiro falar sobre isto?

- Não. Esta história está quase a chegar à sétima página e se nos perdemos em diálogos ou considerações filosóficas as pessoas deixam de a ler. Morde-me.

Malaquias olhou em volta, e ia espetar-lhe os dentes no pescoço quando se lembrou que não tinha dentes.

- Oh pá.

- O que é?

- Terás de esperar pelas próteses.

- Eu espero. Por ti, espero para sempre.

- Sabes que viver para sempre é aborrecido, não sabes?

- Estás a brincar? Vou poder ir ao funeral da minha mãe e de todas as outras pessoas que odeio. Vai ser lindo.

***

As próteses deram alguma sensibilidade dentária a princípio. Treinara primeiro em alguns nacos de carne, e compreendera que era como andar de bicicleta. Depois de três lombos e duas entremeadas, Malaquias já se sentia confiante para morder a carótida de Sofia e transformá-las numa vampira. Entretanto tinham vivido juntos e adorado a experiência, pelo que se sentiam à vontade para avançar com aquele grande passo.

- Vai doer? – perguntou Sofia, sentando-se ao lado de Malaquias. Estavam na sua sala, era de noite, e a lareira estava acesa.

- Um pouco, quando os dentes entrarem. Mas depois tens de te manter quieta para eu te beber algum sangue. Vais-te sentir tonta, mas depois passa.

- Estou tão nervosa, Malaquias – estava nervosa mas tinha um sorriso de expectativa na cara. Estava realmente feliz – Vamos a isso.

Malaquias dobrou-se sobre ela, deu-lhe primeiro um beijo na boca e depois desceu até ao seu pescoço. Abriu a boca, o maxilar estalou, e encostou os dentes afiados à pele clara de Sofia. Deu uma dentada com a maior suavidade que conseguia. Sofia deu um pequeno salto, e o sangue começou a escorrer pescoço abaixo. Malaquias bebeu-o, chupando-o com os dentes e com os lábios, e foi aí que o pedregulho partiu a janela e foi embater na têmpora direita de Malaquias caiu sobre o peso da pedra, e consigo arrastou metade da pele do pescoço de Sofia.

Ela gritou, e levou as mãos à ferida que se abria. Começou a sangrar. Malaquias tentou levantar-se, mas viu a sala a andar à roda e a pedra caída a um canto. O chão estava cheio de vidros. Sofia gritava, caída ao chão, e Malaquias conseguiu levantar-se finalmente. Olhou lá para fora mas não viu ninguém. Voltou-se para Sofia. Ela esperneava descontroladamente no chão, e a carpete e o sofá estavam cheios de salpicos de sangue. Malaquias atirou-se para a frente, agarrou no cachecol de Sofia, encostou-o à ferida e procurou controlar-se. Sangue. Sangue. Sangue. Sangue. Era sangue. E mais sangue. E era doce, o sangue. O sangue de vaca também, e o de porco, e o de peru, mas o de humano era ainda melhor. Era mesmo muito melhor.

Malaquias desceu sobre Sofia e começou a beber do sangue, às golfadas, descontroladamente. Tentou estancar a hemorragia, mas abria a bocas para beber os repuxos ocasionais. Era uma situação um pouco inconsistente. Sofia estava absolutamente branca, e parara de se mexer. Malaquias sentiu-a ficar quieta debaixo do seu corpo, e olhou para ela de olhos muito abertos e quase vivos.

- Sofia?

Sofia não respondeu. Malaquias não se mexeu.

- Sofia?

Sofia não se mexeu. Malaquias ia começar a chorar, achava ele, quando Sofia deu um salto para a frente, engoliu ar e começou a tossir.

- Aurgh! – fez a garganta dela.

- Calma, calma!

Malaquias arrastou-a para cima do sofá, ajudou-a a acalmar-se.

- Estou viva – disse ela entre soluços – Estou viva.

Malaquias olhou para a boca dela, e viu dois dentes pontiagudos.

- Não necessariamente.

Sofia olhou para Malaquias.

- Tens sangue na boca.

Malaquias olhou para ela.

- Tu estiveste a beber o meu sangue enquanto eu me estava a esvair ali deitada? – perguntou.

Malaquias continuou a olhar para ela.

- Inacreditável! Eu estava a morrer e tu estavas a beber do meu sangue!

- Hei, tecnicamente fui eu que te salvei. Eu não tive culpa, levei com uma pedra na cabeça e… Se não fosse eu a matar-te previamente, tu estarias morta.

- Só podes estar a gozar! Agora é suposto agradecer-te?

Sofia mexeu-se, o cachecol desceu ligeiramente e outra golfada de sangue voltou a sair-lhe do pescoço aberto.

- Oh, lindo, simplesmente lindo! – Reposicionou o cachecol.

- Anda, eu ajudo-te…

- Pára! – gritou ela, afastando-lhe as mãos – Não acredito que fizeste isto!

- Morder-te? Tu é que pediste!

- Não, estares a ver-me esvair-me em sangue e começares a bebê-lo!

- Eu estava a beber sangue enquanto procurava estacar a hemorragia.

- Uau!

- Não, a sério!

- Sai-me da frente. Por favor não me dirijas a palavra.

Sofia levantou-se do sofá completamente decidida, sapateou por cima dos vidros caídos e saiu porta fora. Malaquias olhou em volta para a sala toda suja e começou a lamber as almofadas.

.

domingo, 20 de junho de 2010

Carta ao Passado

Olá Renato,
Espero que estejas bem. Aliás, eu poderia saber se estás bem ou não, bastava que me dissesses em que data estás a receber esta carta. Com algumas voltas à memória, poderia recordar onde estava nessa altura, e com certeza repararia que fui muito mais feliz do que sou agora.
Escrevo-te do futuro, mais especificamente do ano 2037. Por esta altura tenho (e tens) 46 anos. O que preferes primeiro, o contexto social ou a tua vida privada? Sinceramente não sei por onde começar, mas como estou desempregado tempo é o que não me falta.
A economia não está melhor. Estamos a dever biliões a países como a Alemanha, a Suíça, Espanha e Somália. Muita gente começa já a mudar-se para a Etiópia, onde a vida parece melhor. Não sei porquê, mas talvez me mantenha por cá mais uns anos.
Não que seja pelo emprego, que cá não há. A maior parte da população é idosa, e por isso a população jovem tem de ter pelo menos três empregos para aguentar todas as despesas. Eu, por exemplo, fui até há pouco tempo produtor de um musical para a televisão, revisor de textos científicos e varredor de rua. Todos eles me consumiam tempo que eu poderia ter gasto com os meus filhos. Felizmente eles cresceram dois rapazes saudáveis e inteligentes, em parte porque sempre escondi livros (verdadeiros, sim, daqueles em papel e não e-books) para eles lerem e também porque nunca foram à escola.
Depois da Revisão Curricular Revolucionária de 2026, a escola passou a ser não só o centro de aprendizagem mas também o local onde os pais depositavam os filhos durante o dia. Assustei-me quando vi o horário dos meus filhos. Tinham aulas das seis da manhã até às dez da noite, porque os pais estão demasiado ocupados a trabalhar. A escola oferecia disciplinas onde todos os miúdos eram avaliados por um exame apenas, onde tinham de escrever uma lista de todas as palavras que tinham decorado durante os 12 anos anteriores. Outro dos problemas é a falta de qualificação, que acontece porque as escolas já não têm condições por serem repletas de funcionários e professores não qualificados. Assim, o investimento na educação tornou-se obsoleto, já ninguém liga nenhuma a uma licenciatura ou a um mestrado e por isso o Governo decidiu investir na des-tecnologia, de modo a simplificar tudo ao ponto de qualquer analfabeto que nunca foi à escola ser capaz de tirar um curso superior. Diziam que era apenas uma questão de democracia. Eu, por exemplo, tirei ontem o curso de medicina. Eu sei, eu sei; um dia inteiro para tirar um curso parece muito, mas isso é porque medicina é o mais complicado de todos. O curso de Artes, por exemplo, tira-se em quarenta e cinco segundos.
Apenas dois tipos de pessoas ganham bem hoje em dia: os políticos e os jogadores de futebol. Cada cidade tem aproximadamente vinte e cinco equipas de futebol, e por haver muitas há imensos campeonatos e imenso mercado de trabalho para todos os jogadores de futebol. O Governo criou até o Incentivo à Natalidade, incentivando os casais a terem mais filhos oferecendo-lhes caneleiras vitalícias para os pequenos. Os meus filhos não gostaram da ideia do futebol, e pensaram que talvez fosse interessante desenvolver um tipo de trabalho que ajudasse as outras pessoas. Um seguiu a área de apoio social, o outro a investigação médica. Ambos trabalham agora nas bilheteiras de um dos estádios de futebol. Não é mau de todo, pelo menos têm emprego garantido.
Quanto à saúde, estamos muito melhor. O número de hospitais triplicou, assim como as tecnologias e qualidade do serviço. É uma sorte danada para um por cento da população que pode pagar o seguro de saúde. Aos outros resta inscreverem-se nas religiões que vão aparecendo e que prometem milagres, ou ficarem em casa à espera que lhes passe a leucemia.
Ah, e a propósito, o casamento gay continua a acontecer e não é por isso que a sociedade está toda corrompida.
Passemos às trivialidades. A construção do TGV continua, a linha está já quase a Badajoz. A Oposição, composta por cinco bloquistas, dois Verdes e o cadáver ressequido de um comunista instalou na Assembleia um painel que mostra, em tempo real, a actualização da dívida nacional. O Governo da altura acusou-os de estarem a diminuir a confiança dos portugueses, e garantiu que até dali a dois anos tudo entraria nos conformes. Dali a dois anos, o número da dívida já não cabia no quadro, mas o Governo publicou uma declaração dizendo que estava tudo bem, e que se os portugueses achavam que estava tudo mal era porque estavam enganados. A população não percebeu que estava a ser tomada por idiota, e por isso votou no mesmo partido nas eleições que se seguiram.
A Apple lançou mais um iPod, com 40 mil GB de memória. Toda a gente começou a poupar nas contas do mês para o comprar, e agora podes ver as filas à porta das Finanças cheias de pessoas com iPod’s de quinhentos euros nas orelhas, segurando os papéis para pedir o Subsídio de Existência Inútil. É outra novidade futurista, que serve para apoiar aqueles que basicamente não querem trabalhar ou estão mesmo muito muito cansados ou aborrecidos.
E, já que gostas de ciência, ficam as últimas descobertas. O cancro está mais do que curado, pelo que uma série de celebridades que ganham dinheiro com as suas carecas e as suas sessões de quimioterapia deixaram de receber atenção e prémios-carreira. A depressão é a nova doença da moda, e és extremamente out se não tiveres um episódio psicótico pelo menos duas vezes por semana.
O contacto com uma civilização extraterrestre também foi outro grande acontecimento. Os extraterrestres vieram à Terra numa pequena nave de reconhecimento, e traziam uma cruz de madeira enorme. Os cristãos acharam que aquilo era a prova inegável de que a história bíblica era verdadeira, e perguntaram aos extraterrestres se aquele não era o maior Deus de todos e o mais simpático. Os extraterrestres disseram que sim, e que para acalmar a fúria de Cruxifork teriam de sacrificar setenta e sete infiéis terrenos. O Dia do Contacto ficou também conhecido como o Dia do Massacre.
Bem, e é tudo. Espero que esta carta sirva de aviso para algumas das coisas que te irão acontecer, e quiçá poderás mudar o futuro de alguma forma. Torna-te jogador de futebol ou assim.
Cumprimentos,
O teu Eu do futuro
.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

A importância da grossura: um post sério sobre um assunto que nos toca a todos

Deixemos de lado o óbvio mau gosto do título acima, cujo único objectivo era, ainda que mantendo coerência com o que lhe segue, atrair os leitores mais marotos e distraídos.
A todos os meus caros leitores que consomem produtos com chocolate, nomeadamente bolachas, declaro que hoje trago boas novas para todos vós. Um problema que a todos nos preocupa é a aparente falta de brio profissional dos inventores e produtores de bolachas com chocolate que, não sei se num rasgo economicista ou de forma a poupar os estômagos mais sensíveis, colocam nas suas bolachas uma tão pequena e insignificante quantidade de chocolate que, à língua do apreciador, a pouco sabe senão à bolacha que lá está. Mas e o sabor do chocolate, que é no fundo (ou deveria ser) o protagonista da bolacha?
A solução está encontrada. Foi com alegria comovida que abri hoje um pacote de bolachas oferecido por minha mãe para as provar, e constatei que a razão bolacha/chocolate é muito diferente de qualquer outra bolacha que já tinha visto; nomeadamente, que a quantidade de chocolate presente na bolacha é muito superior ao habitual (uma vez que, tendo o disco de chocolate entre as duas bolachas o mesmo raio e portanto a mesma área que as bolachas circulares, apenas se considera a espessura dos mesmos para a análise que se segue).


Uma análise aprofundada da fotografia revela que esta bolacha respeita uma fórmula matemática por mim desenvolvida, aplicável a qualquer doce composto por “chocolate+ (outro ingrediente)”, e que quando obedecida produz um equilíbrio perfeito entre o sabor de chocolate e o do outro ingrediente.


Por linguagem matemática, temos que:
Qc = ½ Qi
Sendo Qc “quantidade de chocolate ideal” e Qi “quantidade do outro ingrediente”. Ou seja, traduzindo a fórmula para linguagem comum, chegamos à Lei de Rocha (por mim desenvolvida)
Lei de Rocha: Para qualquer bolacha ou doce em que o chocolate seja um dos dois únicos ingredientes, a quantidade de chocolate deve ser equivalente a metade da quantidade do segundo ingrediente, qualquer que ele seja.
Temos, portanto, um caso prático onde esta fórmula é aplicada e com sucesso, porque as bolachas são realmente deliciosas. A toda a comunidade científica os meus mais sinceros agradecimentos pela atenção e a promessa de que continuarei a desenvolver o meu trabalho na área da matemática aplicada às doçarias de supermercado.
.

Birra no Facebook

As pessoas gostam mesmo de usar serviços pelos quais não pagam, não é? Sim. Tudo o que é grátis a malta adora e utiliza até à exaustão. Mas quando se fala da mínima possibilidade de ser necessário realmente PAGAR pelo serviço que se está a utilizar, erguem-se as fileiras e soam os tambores de guerra.

Não sei se é verdade ou não, mas um grupo no Facebook garante que Não vai pagar 4 euros e meio por mês a partir de 9 de Julho para utilizar o Facebook. O grupo conta já com 166 mil membros, e com certeza vai crescer. As mensagem SÓ EM MAIÚSCULAS mostram bem o grau de indignação presente.

Só porque as massas se uniram no Facebook e encontram nele o único entretenimento e forma de comunicar com as suas centenas de amigos íntimos não significa que tenham o direito de exigir a utilização grátis de um site que tem todo o direito de pedir dinheiro pelo serviço que oferece. Se usam, deveriam pagar. Isso seria válido para qualquer outro serviço ou trabalho, mas aparentemente o Facebook tem um estatuto diferente.

Resta aos utilizadores fazer o beicinho que, graças ao próprio serviço que estão a utilizar de forma gratuita, se espalhará por milhões e servirá de chantagem aos administradores. No entanto, se o Facebook for a pagar têm bom remédio: não paguem e não usem.

.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O realismo da religião católica


.

Ignorância científica: mais perto o que nunca!


É uma mistura de sentimentos contraditórios: pânico, vergonha, mas um entusiasmo alegre. Descobri que está em construção um Parque Discovery aqui em Portugal, uma espécie de museu onde a ideia do criacionismo é explorada afincadamente e a Teoria da Evolução mal representada e, supostamente, refutada. Este parque é uma espécie de sucursal do Discovery Institute, um museu semelhante que existe nos Estados Unidos (apesar de, no seu site oficial, o Parque Discovery garantir que não tem nada que ver com o Discovery Institute: apenas têm o mesmo nome, o mesmo objectivo, o mesmo tipo de actividades e o mesmo tipo de parque. Será, com certeza, uma coincidência).

Um vídeo de um fã, gravado no local, mostra em primeira mão um senhor que parece ser o responsável pelo museu, espalhando informações erradas sobre a Evolução. A quantidade de falácias e erros é tanta que poderia escrever durante horas. É para mim um choque pensar que já chegou a Portugal uma das formas mais inacreditáveis de propaganda religiosa, que utiliza a má representação de factos científicos para vender uma mensagem religiosa; e, ainda por cima, mascarando-se de ciência.


Alguns pontos são, no entanto, demasiado chocantes e deliciosos para os deixar passar sem uma pequena (média grande) observação.

O vídeo começa com uma longa e aborrecida conversa sobre como os dinossauros viveram juntamente com os humanos (em concordância com o mural pintado atrás de Charles Brabec, o responsável pelo museu). As mentes mais cépticas podem estar a perguntar-se: mas isso não vai contra todas as descobertas científicas conhecidas? Sim; mas quem precisa de ciência quando tem… uma pedra encontrada numa caverna do Peru?

Charles mostra com orgulho uma pedra onde estão gravadas as figuras de uns monstros que bem se parecem com dinossauros. Vamos deixar de lado a estranha metodologia criacionista, que ignora ciências como a paleontologia, geologia e biologia e dá mais atenção a uma gravura desenhada num pedregulho; isto até seria compreensível, vindo do intelecto destes “cientistas”. Curioso é como o “trabalho dos cientistas” que descobriram as pedras é respeitado e levado a sério por estas pessoas, e no entanto os cento e cinquenta anos de descobertas científicas são ignorados descaradamente. Em apenas 5 minutos passados no Google descobri uma série de coisas interessantes sobre estas pedras peruanas:

The Ica stone craze began in 1996 with Dr. Javier Cabrera Darquea, a Peruvian physician who allegedly abandoned a career in medicine in Lima to open up the Museo de Piedras Grabadas (Engraved Stones Museum) in Ica. There he displays his collection of several thousand stones. Dr. Cabrera claims that a farmer found the stones in a cave. The farmer was arrested for selling the stones to tourists. He told the police that he didn't really find them in a cave, but that he made them himself. Other modern Ica artists, however, continue to carve stones and sell forgeries of the farmer's forgeries. In 1975, Basilio Uchuya and Irma Gutierrez de Aparcana claimed that they sold Cabrera stones they'd graved themselves and that they'd chosen their subject matter by copying from "comic books, school books, and magazines" (Polidoro 2002).

E ainda,

In 1998, Spanish investigator Vicente Paris declared after four years of investigation that the evidence indicates that the stones are a hoax. Among the proofs presented by this investigator were microphotographs of the stones that showed traces of modern paints and abrasives. The strongest evidence of fraud as claimed is the crispness of the shallow engravings; stones of great age should have substantial erosion of the surfaces.

In 1973 Basilio Uschuya confirmed that he had forged the stones during an interview with Erich von Daniken, but later recanted that claim during an interview with a German journalist, saying that he had claimed they were a hoax to avoid imprisonment for selling artifacts.

In 1977, during the BBC documentary Pathway to the Gods, Uschuya produced a "genuine" Ica stone with a dentist's drill and claimed to have produced the patina by baking the stone in cow dung. He continued to make and sell stones.

Links: http://www.crystalinks.com/icastones.html

http://www.skepdic.com/icastones.html

Outra prova inegável do convivo entre humanos e dinossauros? Há imensos mitos em todas as civilizações sobre dragões que “não podemos ignorar”. Portanto, a presença de mitos comuns a várias civilizações demonstra a verdade dos mitos? Isso significa que também existiram vampiros, fantasmas, fadas, unicórnios… e, claro, dragões. É a maior descoberta científica de sempre! Huray!

A seguir, Charles responde à pergunta “A forma como interpretamos eventos passados pode ser influenciada pelas nossas crenças pessoais?”; ao que ele responde que sim senhor, mas temos de ser bem focados na evidência, e é essa evidência que confirma ou não a nossa crença pessoal.

Sim, isso é o que VOCÊS (criacinistas) fazem, não os cientistas. Isso dito assim parece que a melhor forma de descobrir a verdade é primeiro inventar uma possibilidade qualquer e depois aceitar apenas tudo o que confirma a nossa posição… que é exactamente aquilo que os criacionistas fazem. Os cientistas sérios, no entanto, fazem uma coisa diferente (e que funciona, se o nosso objectivo for descobrir a verdade e não vender bilhetes aos turistas): primeiro olham para as evidências e para os factos, e só DEPOIS constroem um modelo científico que responde às questões iniciais, enquadrando-se nos factos conhecidos. Assim, garantem que quando são descobertos factos novos estes não são varridos para debaixo do tapete e apenas é dada atenção ao que lhes convém, mas sim alteram as teorias e ideias sobre o mundo para que incluam as novas observações. É assim que se progride e nos aproximamos da verdade.

Depois segue-se o que é provavelmente a maior demonstração de ignorância até agora. Diz Charles que a “evolução quer explicar a existência do nosso Universo sem Deus”. Tudo o que este homem tinha de fazer era pegar num simples dicionário e procurar o significado de Evolução; ou, quem sabe, abrir um manual escolar do décimo ano. Aí, ia descobrir que a Evolução por Selecção Natural é uma teoria do campo da BIOLOGIA, que não explica nada mais do que a DIVERSIDADE, e não origem, das espécies de seres vivos (e não o Universo). Decidiu seguir a má representação e a desonestidade; ou, quem sabe, seja mesmo ignorante. Ambas as opções não são animadoras, vindas do responsável por um museu que quer supostamente educar quem o visita.

E quando eu começava a acha que esta conversa não podia ficar pior, cai a bomba: “Não há evidências que um tentilhão se mudou para um gato bravo ou uma tartaruga”. Por esta altura levei as mãos à cabeça, em desespero, porque se há coisa que me magoa é ignorância voluntária. Como é possível ser-se o responsável por um museu destes, defender o criacionismo e atacar a teoria da evolução, e garantir que o que se está a oferecer são informações sérias e válidas, quando se demonstra uma completa e desarmante ignorância em relação ao princípio BÁSICO da teoria que se procura atacar? Como é possível haver pessoas que financiam e acreditam neste tipo de baboseiras sem sequer se darem ao trabalho de investigar MINIMAMENTE o que é ou como funciona a selecção natural? Um pássaro nunca vai dar origem a um gato ou a uma tartaruga, nem é isso que a evolução diz! Trata-se isso sim de variação nos indivíduos de uma mesma espécie e que, ao longo de muito e muito tempo, fazem com que uma espécie com determinadas características sofra alterações que a transformam no que poderíamos chamar uma espécie diferente; o próprio conceito de espécie torna-se duvidoso, porque não há um “salto” gigantesco de um ser vivo para o outro que nos permitisse fazer essa distinção. Isto parece aquelas pessoas que, com um sorriso paternalista muito semelhante ao de Charles, perguntam “Dizes que viemos dos macacos, não é? Então já viste algum chimpanzé a dar à luz um bebé humano?”. Faz lembrar também o famoso “crocoduck”, figura utilizada por alguns criacionistas americanos para “demonstrar cientificamente” que a evolução nunca aconteceu porque “um pato não dá à luz um crocodilo, porque se o fizesse teria de haver crocopatos no registo fóssil”.

O resto do vídeo cai na simples apologia religiosa, vendendo uma mensagem Bíblica que se apresenta como a única explicação para factos históricos e científicos. Talvez seja este o primeiro momento de honestidade em todo o vídeo, porque demonstra como o criacionismo se baseia única e exclusivamente na crença religiosa prévia e só depois procura uns quantos “factos” científicos onde se apoiar, escolhendo por sua vez que factos científicos apoiam a sua posição e ignorando todos os outros. Os seus argumentos baseiam-se nisto: há a Bíblica, há meia dúzia de coisas certas nela e por isso daí se conclui que TUDO na Bíblia é verdade. Logo, Deus existe e o criacinismo é facto científico.

Esperemos que este parque seja visitado por muita gente, para que todos possam ver em primeira mão o grau de ignorância que ali se concentra. Só espero que o nosso sistema educativo tenha capacidade para lidar com o rombo intelectual que uma visita ao Parque Discovery pode fazer a uma criança; se bem que essa visita poderia funcionar na perfeição como um exercício prático de biologia ou filosofia: “Encontra as falácias” ou “Descobre quantos erros disse o Charles”.

.