domingo, 29 de novembro de 2009

Porque é que a Wikipedia é melhor que a Wikipédia?

Trabalho para História e Cultura das Artes, sobre o poeta italiano Dante. Preciso de alguns dados biográficos. Comparemos o mesmo artigo, sobre a Educação de Dante, nas duas versões.


Tell me, Wikipedia...


But while finding his orientation as a poet Dante was also engaged in the study of philosophy, and spent "some thirty months" frequenting "the schools of the religious orders and the disputations of the philosophers" [Conv. 2.12.7]. This period must have included study in the Dominican school at Santa Maria Novella, where Dante could have learned logic and natural philosophy, and heard Fra Remigio de’ Girolami (d. 1319) expound a theology based on Thomas and Aristotle [Panella; Davis (1984), 198-223].


Óptimo. Então e tu, Wikipédia?


Pouco se sabe sobre a educação de Dante, presumindo-se que tivesse estudado em casa, de forma autodidata.


Ah, ok.

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Momento de Poesia: "Topless (ou Emancipação Feminina)

Os mamilos da menina
Encostados aos corais
São conchinhas pequeninas
Cor-de-rosa naturais

Passa um tipo musculado
E olhando prá menina
Grita logo de enfiada
“Vou saltar-te para a espinha”

A menina sorridente
Sobre a areia deitada
Diz “Assim que aqui chegares”
Tiro-te a pila à dentada”

Ganham cor avermelhada
As bochechas do tarado
Que perante tal resposta
Se virou pró outro lado

Lá estão eles os mamilos
Onda vai e onda vem
São mamilos da menina
Dela e de mais ninguém

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quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Aniversário

O texto que se segue pode conter linguagem ou cenas susceptíveis de ferir a sensibilidade dos leitores.


- Hoje, meu amigo – disse-me o Marcos – vais ver gajas à séria.

Eu dizia que sim, com um sorriso que não podia controlar mas que também não era sincero. Os outros rapazes uivavam e repetiam “Gajas, gajas!”, mas eu não partilhava do seu entusiasmo. Estávamos todos enfiados num carro enorme, do pai de um dos amigos do Marcos. Era uma carrinha de nove lugares, e lá dentro eram todos grandes e barulhentos. Eu ia no banco de trás com o Marcos, que se via como minha figura paternal no meio daquela confusão toda e parecia sentir uma grande responsabilidade em educar-me.

- Vais ver gajas à séria e vais-te soltar um bocado. Nas calmas. Isto aqui é tudo gente amiga e liberal, topas? – disse-me ele.

Eu não topava lá muito, mas o que é que ia fazer? Meti-me na embrulhada, tinha de a aguentar. Houve risos gerais, e eu mostrei-lhe mais uma vez aquele meu sorriso amarelo de quem recebeu umas meias como prenda de Natal. O Marcos era um tipo engraçado quando queria, mas se lhe dessem duas cervejas e trinta segundos para as beber entrava num estado de euforia completa; e o pior é que, para um tipo que não aguenta a bebida, ele fazia aquilo demasiadas vezes.

Éramos todos menores ali dentro, menos o primo do Marcos, que era quem ia a conduzir. Pelo estilo da condução, e pelos sinais vermelhos que o vi passar, deduzi que a maioridade não lhe tinha dado grande juízo. Nos bancos de trás, passavam-se garrafas de vodka como se fossem de sumo de laranja.

Eu só ali estava por ser o aniversário do Marcos, e por ser seu amigo de infância. Crescemos juntos e ainda me lembro quando realmente bebíamos sumo de laranja natural, e brincávamos no jardim. Algures entre esses tempos e o presente as nossas vidas tinham tomado rumos diferentes, e enquanto eu escolhera as notas constantes na escola e os concursos literários, ele preferira vomitar num beco escuro todas as sextas feiras à noite. As pessoas mudam mas as amizades não se perdem; e quando o Marcos veio falar comigo sobre irmos celebrar a noite de aniversário dele a “um bar muito fixe” e com “uns conhecidos, e mais o meu primo que é super responsável” eu não tinha razões nenhumas para dizer que não. Na altura. Agora a minha resposta teria sido muito diferente.

- Hei, Marcos, onde é aquela merda? – perguntou o primo do Marcos, o tal que era maior de idade, o tal que era “super responsável”.

- Segue que é mais à frente!

- Onde, caraças?

- Mais à frente, pá!

A julgar pela companhia e pela conversa das “gajas a sério”, o “bar muito fixe” seria um lugar realmente encantador, e apesar do cheiro a álcool e a fumo que se entranhava na minha roupa comecei a desejar que não chegássemos ao nosso destino.

- Como te estava a dizer antes daquele paneleiro ao volante me ter interrompido – disse o Marcos, virando-se para mim outra vez – Vais ver gajas a sério, e vais podes descontrair-te. Acho que devias sair mais comigo, pá. Tu precisas de agitação, de ver coisas bonitas ao vivo e a cores. Oh Grajolas, passa aí a gasolina!

O Grajolas estendeu-lhe a garrafa de vodka, que ia a meio. Era um dos mais recentes amigos do Marcos, que vivia entre comas alcoólicos e lojas de roupa de marca. Os pais não tinham propriamente dificuldades económicas, pelo que o Grajolas podia frequentar as melhores escolas e comprar praticamente o que quisesse. O pai dizia que ele ia ser médico, mas eu acho que lá no fundo tanto o pai como o filho sabiam que aquela carreira em Medicina era muito improvável.

- Aqui o Grajolas, que gosta de homens – dizia-me o Marcos, sempre com uma entoação paternal. Os outros riam-se à gargalhada – É que se vai sentir um bocado à parte. Não é, oh Grajolas? Ah, ganda Grajolas!

O Grajolas mostrou-lhe o dedo do meio e um sorriso por entre o fumo do tabaco.

- Onde é aquela merda, porra? – perguntou o primo super responsável do Marcos.

- É já aí á frente, tá quase! – respondeu o Marcos, e depois virou-se para mim outra vez com a garrafa de vodka na mão – Toma, dá um golinho que deves estar com a boquinha seca.

- Não, obrigado.

- Epa, vá lá, isto é noite de festa!

- A sério, Marcos. Sabes que não gosto dessas coisas – respondia-lhe eu com o meu melhor sorriso amarelo. Ele tomou aquilo como uma ofensa pessoal.

- Epa, vais-me fazer esta desfeita…? Faço 18 anos, irmão! Logo hoje, que tava mesmo a ver que te apanhava com uma ganda bezana!

- Epa, oh Marcos! Ou me dizes onde é esta porra ou paro o carro!

- É já aqui, primão! Não stressa, não stressa! – disse o Marcos. O carro começou a abrandar, e consegui ver pela janela as cores vermelhas e roxas do tal bar “super fixe”. Chamava-se “Roxy’s”.

- Meus amigos – anunciou solenemente o Marcos com uma garrafa na mão esquerda e um cigarro na mão direita – Bem vindos ao melhor parque de diversões do mundo e arredores, patrocinado aqui pelo Marcão. A noite é nossa, meus queridos animais. Toca a enfrascar à séria, porque a noite é uma criança! Tchin tchin!

Saímos do carro um por um, e eu fui o último. A fachada do edifício estava coberta de neons com cores fortes, e as letras do nome, em itálico, estavam emolduradas pelos desenhos de duas simpáticas meninas semi-nuas. O Marcos viu a minha cara, que não deve ter sido muito entusiasmada.

- Aqui, irmão – disse-me ele ao ouvido – É só chicha!

No parque de estacionamento carros estacionavam e de lá saiam grupos de jovens como nós, e homens de fato caro e aspecto de quem leva no bolço muitas notas de cem.

- Oh Grajolas, se calhar ainda vemos por aqui o teu pai! Han? Han? – gritava o Marcos. O Grajolas voltou a sorrir-lhe por entre dois goles de bebida, e mostrou-lhe o dedo do meio.

Dirigimo-nos à entrada. A porta estava tapada por uma cortina vermelha, e de lá de dentro saía o som abafado de música da pesada. Dois homens quase carecas e absolutamente cúbicos iam deixando entrar pessoas, ou proibindo outras. “Somos imensos, somos barulhentos e somos menores”, pensava eu. “Não nos vão deixar entrar de certeza”. Mas isso nunca iria acontecer. Não com o Marcos. Ele arranjava sempre forma de dar a volta à questão, e com certeza inventaria uma desculpa, mentiria sobre as nossas idades e ainda faria amizade com um dos seguranças.

Não foi preciso. Assim que o Marcos se aproximou da porta, liderando o nosso grupo, um dos seguranças viu-o e a cara de brutamontes abriu-se num sorriso. Cumprimentaram-se com um aperto de mão afectuoso, e senti a esperança a abandonar-me completamente quando o Marcos apontou para nós ao falar ao ouvido do segurança, e ele sorriu mais uma vez e abriu a cortina vermelha. O Marcos virou-se para trás, levantou os polegares e entrámos. Encolhi-me, para ver se os seguranças conseguiam perceber que eu era menor e não era suposto ali estar, mas nenhum deles reparou. O Marcos veio agarrar-me pelo pescoço e gritou-me por cima da música: ~

- Diz lá se aqui o teu irmão não é um lábias do caraças? Eu podia ser ménagér dos Rolling Stones, irmão! Curtes a música?

Eu não percebi praticamente nada por causa da barulheira, e por isso disse que sim e sorri. Estava lá dentro, o mal estava feito. Assim que avançámos o suficiente para conseguirmos ver a primeira plataforma, com uma bailarina loira semi-nua que parecia feita de borracha, o Marcos começou a agitar os braços no ar como uma criança a ver um espectáculo de golfinhos. Os amigos estavam entusiasmados também, e o Marcos teve de os puxar pelas mangas para podermos continuar. O Grajolas estava absolutamente fascinado pela loira, e ficou especado a olhar para ela.

Eu fiz um esforço enorme para não olhar. Acho todas aquelas coisas terríveis. Primeiro tenho um respeito enorme por aquelas raparigas, porque não deve ser nada fácil subir para cima de um poste todas as noites e dançar semi-nua para umas dezenas de viciados em testosterona. Mas por outro lado tenho pena delas, porque não percebo porque é que se dignam a fazer uma coisa daquelas. Talvez dê dinheiro, e compense pagar as contas com a falta de dignidade. Para mim aquilo era uma óbvia exploração, e não me sentia nada confortável. A loura olhou para mim, como se eu fosse só mais um cliente a olhar-lhe para o decote, com a diferença de que eu não estava a olhar para lugar nenhum a não ser para a cara dela. Quando ela olhou para mim eu senti-me extremamente envergonhado, e quase estive para a cumprimentar com um “Boa noite”. Entretanto o Marcos chegou ao pé de mim e encostou a boca ao meu ouvido

- Epa, não te fiques só nessa que lá dentro há umas com o dobro da prateleira! Anda, vamos ao bar comprar um danoninho! Uhu! – soltou um uivo triunfante, e antes de avançar comigo permaneceu à frente da loura, a agitar o rabo ao mesmo ritmo que ela dançava.

Chegámos ao salão principal, onde uma plataforma central com postes cinzentos estava iluminada com pouquíssimas luzes lilases. Lá em cima, quatro raparigas dançavam ao ritmo da música. Estava tão alta que sentia batidas profundas na caixa torácica, como se me estivessem a bater levemente. À volta da plataforma central sentavam-se vultos indistintos de homens de bebida na mão e notas de cem na outra. Tudo parecia retirado de um livro de banda desenhada a duas cores, e todas as figuras eram difusas.

Conseguia ver os amigos do Marcos a furar por entre a multidão até ao bar. O Grajolas continuava lá atrás, arrebatado pela loura da entrada. O Marcos veio-se agarrar a mim outra vez:

- Diz-me lá se isto não é o paraíso na terra, irmão! Anda apanhar uma bezana, vá lá! Gajas! Gajas! Uhu!

Os amigos dele regressavam com pequenos copos cheios de um líquido que parecia gasolina.

- Ai a porra! Então vossemecês vão à fonte e não me trazem com que molhar os secos lábios, seus cães? - disse o Marcos, como se recitasse poesia. O primo disse qualquer coisa indistinta, que eu não percebi por causa da música. Ninguém ligou nenhuma ao Marcos; estavam demasiado preocupados a contemplar as mulheres nuas, que se deixavam deslizar pelos postes abaixo em posições estranhíssimas. Tudo aquilo estava longe da minha própria noção de sensualidade, e começava a perguntar-me se não me faltaria algum cromossoma masculino importante, uma peça chave para entender os mistérios do que é ser um verdadeiro macho. Comecei a ficar com dores de cabeça. O Marcos estava a dançar outra vez, aproximando-se de uma morena de curvas enormes e cabelo encaracolado. Os amigos aplaudiam. Eu passei os olhos pela sala mais uma vez.

Havia só mais uma morena, a terceira entre o sítio onde estava e o fundo da sala. Para além dela havia uma ruiva e uma loura, todas elas completamente nuas sem contar com alguns centímetros quadrados de tecido na virilha. Desviei os olhos, quase arrependido, e foi aí que reparei numa coisa que até aí não tinha reparado.

A morena, lá ao fundo. A descer pelo poste com as pernas abertas cada uma para seu lado, e com os cabelos castanhos a varrer o chão.

Fiquei a olhar para ela durante alguns segundos, e tentei estudar-lhe os movimentos por entre as luzes e o fumo.

- Epá, aqui o nosso menino já pescou ali qualquer coisa! – disse o Marcos, quando deu por mim a olhar para a morena – Queres um babete, oh seu maluco!?

Os amigos dele riram-se, e o Marcos aproximou-se de mim e olhou também para a morena.

- Epa, e não é que tens um bom gosto do cara… - mas calou-se. Ele já estava mais habituado àqueles ambientes semi-escuros, e por isso deve tê-la reconhecido mais rapidamente do que eu.

- Puto – balbuciou ele – Puto, eu juro-te por tudo.

Eu continuei a olhar para a morena, que entretanto saiu da sua posição da pernas para o ar e se endireitou junto ao poste.

- Puto, eu juro-te que não fazia a puta da ideia que… - continuava ele. Como que atingido por um raio, saiu do meu lado e colocou-se entre mim e a morena. Olhou-me bem nos olhos – Eu sei que isto esta cena é fodida, mas podes ter a certeza que eu não fazia a puta da ideia que isto ia acontecer, pa!

Eu tinha a certeza que o Marcos não sabia, mas de qualquer forma não fiquei zangado com ele. A morena mudou outra vez de posição, virou a cara para o sítio onde estávamos e parou de se agitar ao ritmo da música. Ela viu-me e reconheceu-me. Eu também.

Sim. Era ela. Mesmo àquela distância, com todo aquele fumo e luzes coloridas, eu conseguia reconhecer a minha própria mãe.

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terça-feira, 24 de novembro de 2009

The Fernandez Challenge #3

Desafio para hoje: "Relinchar"

Romeu estacionou o cavalo num dos cantos do jardim, e o bicho começou imediatamente a pastar. Mastigava satisfatoriamente as flores do canteiro, mesmo por baixo da janela do quarto de Julieta. Deixar ali o cavalo, estava certo, ia dar merda. Romeu, que pouquíssimo devia à inteligência mas em compensação era de um lirismo extremo no amor, desceu do cavalo e caminhou pé ante pé até à janela, picando-se numas rosas. Os espinhos afiados furaram-lhe os collants, e Romeu praguejou em italiano medieval. Os collants foram à vida, e Romeu prosseguiu com um buraco, deixando antever a rótula.

A janela estava entreaberta, tal como combinado. Romeu empurrou-a com cuidado, dobrado sobre si próprio como um gatuno que procura entrar num museu sem acordar o segurança que dormita. Da escuridão do quarto ouve uma voz:

- Romeu, meu amor… És tu?

Romeu, entusiasmado, entra pela janela e fecha-a atrás de si. Sorri, abertamente, com o êxtase característico de um homem que sonhou com aquele momento durante o dia todo.

- Sou eu sim, meu amor…

- Romeu, meu amor, Romeu… Finalmente! Porque demoraste tanto?

- Entalei-me numa rosa e fiquei com os colantes presos…

- Isso pouco importa agora. Anda, diz-me belas palavras, como aquelas que costumas dizer.

Romeu parou a meio do quarto, subitamente surpreendido.

- Meu lírico amor, minha rosa a desbotar, porque não passar já ao amor personificado nos nossos corpos? Porquê perdermo-nos em lirismos que só adiam o que é do bom?

- Romeu, que falta de romantismo… Pensei que me amasses…

- E amo, e amo muito, minha fonte de vida! Meu cardo em crescimento vivo e colorido! Meu pedaço de mel derretendo ao sol como um gelado de framboesas italianas, doces e vermelhas como pequenas rosas que despontam na mais bela floresta encantada, de azuis e floreados riachos que descem pelos vales como as minhas lágrimas vertem pela minha face quando sinto a tua falta!

- O quê?

- Era um elogio, mas entretanto perdi-me. Meu amor, por favor…

- Vem, vem aquecer-te no meu leito.

O cavalo, lá fora, relinchou. Acabaram-se as flores do canteiro. Para Romeu, no entanto, a noite começava. O cavalo relinchou outra vez. As luzes do quarto de cima acenderam-se.

- Que luz é esta, como um aceso pirilampo na noite que era fria e agora, porque estou nos teus braços, é a mais quente do mundo? – perguntou Romeu, lutando para se desenvencilhar dos collants.

- Mãe, está tudo bem? – perguntou uma inocente voz, do andar de cima.

- Minha filha! É Julieta! – disse a voz por detrás do cobertor. Romeu sobressaltou-se.

- Corra! – disse a voz.

- Minha mãe? – chamava Julieta do andar de cima. Romeu voltou a enfiar os collants, e saltou pela janela. O cavalo relinchou. Romeu manda-o a um sítio, em inglês medieval. Em inglês medieval gritou também Julieta, quando debruçando-se da janela de seu quarto viu o seu Romeu, o amor da sua vida, a sair meio despido do quarto de sua mãe.

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sábado, 21 de novembro de 2009

Até Segunda

Não vão ver por aqui nada de novo até segunda-feira, altura em que tenho Exame de Código.

O que significa que se até terça não aparecer nenhum post novo é porque estou demasiado ocupado a trabalhar para pagar a repetição de exame.

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The Fernandez Challenge #2

Desta vez o tema escolhido por Mariana Fernandes foi: "Era uma vez o homem que fazia tudo de trás para a frente".


O que isto significava, no fundo, era uma estranha apetência para levar a vida de forma contraditória. Na escola, começava pelo resultado da conta de multiplicar e só depois fazia a conta. Ao jantar, comia primeiro a sobremesa e só depois a sopa, o que seria o suficiente para a mãe o castigar se não soubesse já que ele sairia do castigo mesmo antes de lá entrar. Na adolescência, entrou primeiro no 12 ano e só depois no 10, pelo que nas aulas sabia o final antes de ouvir o princípio e começava pela folha de trás dos testes. Em viagem, chegava primeiro ao destino e só depois apanhava o comboio. Com tanta actividade, estafado, chegando primeiro aos sítios e só depois tomando o caminho até eles, o homem que fazia tudo de trás para a frente decidiu fechar-se em casa para não enfrentar mais o mundo de constantes trases para a frentes. Saiu-se mal, pois trancou a porta de casa antes mesmo de entrar, e viu-se cá fora, à chuva, mergulhado em lágrimas. A sua vida, desastrosamente espelhada com a vida dos outros, era uma tortura generalizada. Um carro parou ao seu lado, a porta abriu-se, e ele viu por entre as lágrimas a cara de uma bela mulher a sorrir-lhe e a perguntar-lhe:

- Sente-se bem? Quer ajuda?

- Favor por sim – respondeu ele, e a mulher parou por momentos pensando naquilo. Ele recomeçou a chorar, e ela sorriu-lhe mais uma vez:

- Não se preocupe. Venha comigo, eu ajudo-o.

O homem entrou no carro com a ajuda da mulher, porque senão fecharia a porta atrás de si antes mesmo de entrar. Com tamanha ambiguidade, sempre presente na sua vida, o homem recomeçou a chorar. A mulher conduziu pela cidade, em plena chuva torrencial, e o homem explicou-lhe a sua condição e contou-lhe a sua vida, começando por aquele dia e recuando até à sua infância. A mulher emocionou-se, fizeram amizade, chegaram a casa dela e subiram. A mulher acendeu a lareira, sentaram-se a tomar café, e rapidamente deram um beijo; ambos sozinhos, ambos a precisar de alguém que lhes mostrasse que ainda há uma linha condutora na vida, algo que os agarre à realidade (mesmo que essa linha comece no fim e termine no princípio). Despiram-se, abraçaram-se, e enquanto faziam amor o homem chegou ao clímax, a meio começou a sentir entusiasmo e quando a mulher finalmente terminou o homem estava mais do que preparado para começar. A mulher, cansada e satisfeita, agradeceu-lhe aquele belo momento de amor. O homem, no entanto, sentindo-se com a máxima luxúria, recomeçou a chorar, com as lágrimas primeiro na bochecha e depois a nascerem-lhe nos olhos.

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quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Um fígado para um idiota

Um jovem de 16 anos, com certeza num momento de iluminação (e fome), ingeriu um cogumelo selvagem. Surpreendentemente, o cogumelo era venenoso. Ele e o pai deram entrada no hospital depois dos primeiros sintomas se terem desenvolvido.

Isto foi há dias. Entretanto o pai morreu, porque uma das consequências de comer um cogumelo venenoso daquela espécie é uma paragem de fígado. O filho, o tal jovem de 16 anos, lá se foi aguentando. Recentemente recebeu um novo fígado, e depois do transplante o seu estado passou de moribundo para estável.

O rapaz deve ser bastante ignorante, ou então não queria contrariar o pai; o que é certo é que (não gosto de generalizações, mas tenho de insistir nesta) toda a gente sabe que comer cogumelos silvestres, apanhados no bosque, não pode ter consequências levezinhas. Os cogumelos venenosos não são ovos estragados: têm consequências severas como, oh, sei lá, paragem do funcionamento de um órgão vital. O que passava pela cabeça de quem teve a brilhante ideia de ir aos cogumelos, “Ah, este eu sei que não é venenoso, tem aqui estas pintas roxas em cima, é tal e qual aqueles que se vêem nas lojas!”, e comê-los com a tranquilidade de quem apanhou umas clementinas na árvore da vizinha?

O jovem teve sorte, no entanto. Ficou sem pai, mas ganhou um novo fígado. Neste caso não houve listas de espera, porque provavelmente toda a gente ficou com imensa pena do miúdo que estava a morrer. Não quero parecer exagerado nem insensível, mas gostaria de saber até que ponto morre gente nas listas de espera para transplantes deste tipo. Pessoas com doenças a sério, mortais ou perigosas, que não vão ao bosque colher cogumelos para o almoço.

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Mulher descobre buço depois de tomar a Vacina da Gripe A

Uma mulher em Azeitão deu por si com um enorme buço apenas dois dias depois de ter tomado a vacina da gripe A.

A mulher, de 55 anos, foi vacinada na segunda-feira de manhã, no centro de saúde da sua região. Apenas dois dias depois, na última quarta, foi vista na mercearia da região com um enorme buço, o qual nunca ninguém tinha reparado.

“Não é normal”, disse uma vizinha, que deseja permanecer anónima “Estas coisas das vacinas são tudo uma conspiração globalizada dos governantes e dos farmacêuticos para destruir as populações e controlar a natalidade. Eu sei, que o meu primo é farmacêutico e ele sabe dessas coisas “

A mulher, que é proprietária de um aviário e vê o “Serviço de Urgência” às segundas-feiras, garante que a única causa médica que pode explicar o seu buço é a vacina da gripe A.

Entretanto, numa notícia em nada relacionada, a comunidade de cientistas e médicos a nível mundial garante a segurança da vacina da gripe A, depois de milhares de vacinações em todo o mundo terem decorrido com normalidade.

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terça-feira, 17 de novembro de 2009

Óscar II, O Guerreiro

Composição escrita há já quase um ano, para a disciplina de Projecto e Tecnologia. O tema do ano era (vómito) "O País das Maravilhas Ao Quadrado". Daí surgiu a necessidade de escrevermos uma pequena história com o tema da fantasia e do mundo do maravilhoso, que serviria de base para uns quantos trabalhos. Cá está. Peço desculpa pela perda de tempo, mas tinha de contextualizar.


Óscar II, o Guerreiro, é o mais bravo e corajoso de todos os Reis da sua dinastia. Aliás, de entre todas as dinastias, de todas as Eras e de todos os Impérios do mundo.

Óscar II, o Guerreiro, é um espectáculo. Recebeu tal cognome pela sua performance na Batalha dos Mil Anos, onde decapitou mais de 100 bárbaros sanguinários com a sua espada mágica, sozinho e em pleno campo de batalha inimigo. É alto, musculado, atraente e forte. Não transpira. Não sente dor. Não sabe o que é a solidão.

Óscar II, o Guerreiro, vive num palácio absolutamente brutal, forrado a diamantes e repleto de armaduras e espadas antigas penduradas nas paredes. O seu quarto tem prata por todo o lado. A sua cama tem almofadas bordadas a outro, os seus lençóis são de linho importado, anti-alérgico. À porta do palácio há uma fonte com a altura de dois andares, esculpida em bolacha e de onde brotam centenas de litros do melhor chocolate quente. O salão de refeições apresenta um buffet permanente com cem sabores de gelado diferentes.

Óscar II, o Guerreiro, é infinitamente rico, mas o seu povo não é deixado ao abandono. Todos os habitantes do Reino recebem casas novas de seis em seis meses, decoradas por designers internacionais. Os impostos são inexistentes. A inflação é coisa do passado. Os hospitais estão totalmente equipados, e todas as consultas são grátis. Das escolas saem engenheiros, médicos e artistas. Ninguém se queixa, não há reclamações. E todos os dias, quando Óscar II desce da cama e vem à janela, o povo aplaude-o em êxtase e grita “Viva o Rei!”.

Neste momento, Óscar II passeia montado no seu dragão de estimação, um gigantesco lagarto alado de escamas barradas a titânio inoxidável e asas cobertas de espinhos. Desce as colinas, saltando riachos e florestas. Pelo caminho, cumprimenta os seus concidadãos com um aceno e um sorriso de dentes brilhantes. Vai até à Aldeia Cogumelo, onde as casas foram esculpidas dentro de gigantescos cogumelos. Passa pela Cidade da Luz, onde as casas orbitam à volta de um candeeiro arredondado. Visita a Montanha das Prateleiras, onde vivem sábios antigos e barbudos por entre as páginas de livros gigantescos, que fazem barulho ao fechar. Passa pelos Subterrâneos Proibidos, cavalgando por entre bolas de cotão. Sobe sem esforço para uma cadeira, depois para cima da secretária. De lá, avista o seu Reino infinito. A cama, os armários, a porta aberta com as letrinhas em madeira a dizerem “Quarto do Óscar” do lado de fora. Óscar II segura as rédeas do seu dragão e vira-se para trás. A janela. A gigantesca e rectangular janela. Do outro lado do vidro, as nuvens e os prédios em frente.

De súbito, sem que nada o explique ou justifique, surge ao seu lado uma segunda personagem: Gastão, o fiel escudeiro de Óscar II. Diz Gastão:

- Meu Rei, a janela! A gloriosa janela, que ilumina o nosso Reino! Nunca ninguém teve coragem para a atravessar!

- Pois então – respondeu Óscar II, segurando a sua espada mágica, na qual premiu o botão electrónico que lhe ilumina a lâmina – Eu, Óscar II, serei o primeiro a atravessar este perigo!

- Óscar! – chamou uma voz, que nasceu da porta aberta e ecoou pelo Reino – Óscar, vai lavar as mãos, vamos jantar!

- Já vou, mãe! – gritou Óscar II em resposta. Puxou as rédeas do seu dragão. Ele cuspiu fogo e abriu as asas violentamente.

- Meu Rei! – gritou Gastão, o fiel escudeiro.

- Óscar, anda lá! – gritou a mãe.

Mas Óscar II, o Guerreiro, não respondeu. Abriu a janela e voou corajosamente, montado no seu dragão.

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sábado, 14 de novembro de 2009

Portugal, Futebol e uma molécula qualquer esquisita

Hoje Portugal joga com a Bósnia, num dos maiores acontecimentos nacionais da semana. Entretanto, nos confins dos noticiários e jornais online, está a notícia de que três investigadores portugueses foram premiados pela sua investigação no campo da biologia molecular.
Com certeza que neste momento está toda a gente a ver o jogo da selecção, e por isso demasiado ocupados para reparar em tais trivialidades. Quando vos passar o patriotismo vão espreitar a tal notícia.


Uma equipa de cientistas portugueses foi premiada com o Prémio Grunenthal Dor pela descoberta de um fármaco com capacidades analgésicas que pode vir a ser usado no combate à dor e na terapia de doenças neuro-degenerativas, como a doença de Alzheimer e a doença de Parkinson.


Nada de especial, até aqui. Não se percebe até que ponto esta coisa de combater as doenças neuro-degenerativas se possa sequer comparar com o Cristiano Ronaldo ter o joelho entrevado. Continua a notícia, explicando na prática o que isto tudo significa significa:


Os cientistas basearam-se numa molécula com propriedades analgésicas já conhecidas, a quiotorfina. Contudo (…) esta era incapaz de chegar ao cérebro, o que impossibilitava a sua utilização como analgésico. A fim de contornar este impedimento, a equipa de investigadores desenhou uma nova molécula derivada da quiotorfina que mantém as propriedades analgésicas e tem capacidade de atravessar membranas biológicas (…) A patente do medicamento já foi registada e, além disso, já há um financiamento europeu para o seu desenvolvimento industrial.


Enquanto nós, pessoas sérias e patrióticas, nos perdemos em acutilantes elogios e longos tempos de antena dedicados aos nossos heróis nacionais, esses grandes jogadores de fubetol, andam por aí estes tipos a brincar aos médicos, e que lá se vão lembrando de umas coisas, patenteando medicamentos absolutamente inúteis e gastando o dinheiro europeu (em estádios?) em trivialidades, como o combate às doenças degenerativas. Temos cientistas portugueses a redesenhar moléculas para o bem da população, mas porque é que isto me deveria interessar mais do que as fintas e os penaltis?

Chega de sarcasmos. Faço questão de deixar aqui esta mensagem de parabéns aos cientistas em questão, que parecendo que não fizeram mais por todos nós com uma molécula do que o Cristiano Ronaldo alguma vez fará com os seus golos.

Parabéns às televisões, que ignoram acontecimentos como estes; parabéns aos organismos do estado, sempre a apoiar a ignorância científica do povinho que lá vai deixando passar estas coisas. Parabéns a Portugal, se ganhar o jogo. Se não ganhar, parabéns na mesma. O que interessa é o orgulho nacional, não é?

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quarta-feira, 11 de novembro de 2009

The Fernandez Challenge

Um novo jogo, contando com a ajuda e apoio preciosos de Mariana Fernandes (leitora deste blog): a Mariana diz uma palavra aleatória, e eu tenho de escrever uma pequena história sobre/ com/ baseado no que ela disse. A primeira palavra foi “pudim”. A história que saiu foi esta:


Felãn, o pudim, sentado à prateleira do supermercado, olhava para baixo e despia com os olhos as caixas de gelatina. Que maravilhosas. A de morango era sem dúvida uma das mais apetecíveis, mas a nova gelatina que chegara à uma semana, de framboesas, ganhava pontos na sua imaginação. Lilás, exótica, transparente e tremeliques. Felãn imaginava o pacote a abrir-se num rasgo sonoro, e o pacotinho de pó a sair lá de dentro com uma arrastada sensualidade. Felãn, entusiasmado, não tirava os olhos das embalagens. Imagina todos aqueles pacotinhos de pó a sair sensualmente das caixas, como sugestivos convites à luxúria açucarada. Conseguia imaginar os pacotinhos a abrirem-se, puxando-se uns aos outros numa orgia de movimentos bruscos e impacientes. O pudim ao seu lado olhava igualmente babado para a nova embalagem de gelatina de framboesa.

- Que corante… Que transparência… - murmurava, também ele dando largas à imaginação.

Os pacotes agora abertos despejavam-se sobre uma tigela de água, como cataratas luxuriantes. Uma nuvem de pó alastrava-se em todas as direcções. Os pós contorciam-se. As tigelas arrastavam-se em passadas largas e determinadas para a um frigorífico aberto. Entraram, a porta fechou-se. Felãn, de água na boca, esperava impaciente. A porta abriu-se, e de lá saíram as tigelas coloridas, todas lilases, espelhadas, de corada e irresistível transparência. Para Felãn, era a loucura. As gelatinas caminharam na sua direcção, agitando-se, provocando-o com o seu abanar entusiasmado que nenhuma pudim podia sequer imitar da forma correcta. Era agora, ai vinham elas, agitavam-se tão perto…

Uma mulher e uma criança com um pacote de chapéus para aniversários na mão aproximou-se, e empurraram todos os últimos pacotes de gelatina que havia na prateleira para dentro de um carrinho. Felãn viu as gelatinas afastarem-se, em desespero. Ao longe, do outro lado da prateleira, sua mulher Felana chamava-o com gritos histéricos de mulher ciumenta. O sonho acabou.

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terça-feira, 10 de novembro de 2009

Parabéns Poupas!



Faz hoje 40 anos que a primeira emissão da Rua Sésamo foi para o ar. É uma data importante, uma vez que se trata de um dos melhores programas infantis de sempre. A Rua Sésamo anda a marcar e ensinar crianças há 40 anos, incluindo eu. Lembro-me perfeitamente de ver as cassetes e os episódios da Rua Sésamo. Lembro-me que todos os miúdos que chegavam ao infantário depois de verem a Rua Sésamo já sabiam as cores, contar, ou até algumas letras.

Hoje estava a pensar nisso e a perguntar-me: o que aconteceu entretanto? Como foi a evolução dos programas infantis desde a Rua Sésamo? Não faço a mínima ideia em relação aos últimos 40 anos, mas posso fazer um balanço dos últimos 12 ou 13. Lembrei-me rapidamente dos Domingos de manhã na TVI, onde um programa de wrestling faz as delícias dos mais novos mostrando homens musculados e de cuecas a esmurrarem-se mutuamente. Lembrei-me do Noddi, com o seu carro amarelo, cujo dia vai ser tão belo, que nada mais é do que uma animação de baixa qualidade com as aventuras parvas de um boneco cabeçudo e em nada educativo. Lembrei-me de todas as variantes do Noddi, Bob o Construtor, Paulo o Carteiro, Roberto o Canalizador, por aí fora, todas elas igualmente fazias de conteúdo. Lembrei-me ainda do programa A Ilha das Cores, que seguia o mesmo esquema da Rua Sésamo mas que, talvez por isso, tenha sido atirado para horários estranhos e entretanto desaparecido do ecrã.

O que é que aconteceu entre a minha infância, em que cantávamos com o Poupas e aprendíamos a contar com o Egas e o Becas, e a actualidade, onde a noção de entretenimento são animações digitais pobres ou bonecos japoneses à pancada uns com os outros?

Sim, “no meu tempo” também havia o Dragon Ball, é verdade. Era fã, e tudo o que a série tinha para nos oferecer era uma história um tanto fantasiosa e complicadas cenas de porrada generalizada entre Songoku, seus amigos e raças de aliens invasores. Mas nessa altura eu SABIA que aquilo era violento. Eu SABIA que era tudo uma brincadeira, um desenho animado até bastante idiota. Eu não andava a imitar o Songoku no recreio da escola, como os miúdos fazem agora com o Wrestling e acabam a partir os pulsos uns dos outros.

Para além disso, eu tinha motivo de comparação. Sabia o que era um bom programa de crianças, e sabia que tinha crescido com um: a Rua Sésamo. Hoje em dia olho para o meu irmão mais novo e penso: o que raio é que ele verá na televisão?

Felizmente, muito pouco. Mas se o fizesse teria pena dele. A Rua Sésamo é uma parte integrante da minha infância; não porque aprendia, mas porque aprendia divertindo-me. Não havia uma fenda tão grande entre a escola (o local das obrigações e das aprendizagem) e os desenhos animado, ou brincadeiras que tinha em casa. Eu sabia ver desenhos animados violentos, ou vazios de conteúdo, porque tinha termo de comparação: hoje em dia, não há um único boneco animado na televisão que estimule uma criança ao ponto a que a Rua Sésamo conseguiu estimular-me. Os programas infantis de agora são pornografia visual, com gritos, cenas de pancada e muitas, muitas cores, trazendo à mistura uma furiosa estratégia de marketing (O que raio são os Gormiti, que se vendem em TODO o lado?!)

A culpa é das televisões, que metem este lixo para as crianças verem (Wrestling ao Domingo de manhã; TVI, a rainha do conteúdo e do bom gosto); mas a culpa também é dos pais, que ligam o televisor e plantam as crianças à frente do ecrã para poderem ir às suas vidas. Resta saber até que ponto o que está a dar na televisão os vai entreter apenas, ou também prejudicar.

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domingo, 8 de novembro de 2009

Momentos na Vida de Alguém

Se alguma vez me tornar um autor famoso, este texto vai aparecer nas antologias. É um marco na minha obra literária, feliz ou infelizmente. O que, por sua vez, diz muito da qualidade da minha obra literária.


Acorre à casa de banho logo chegado a casa, e é com esforço hercúleo que levanta a mão para o interruptor e o prime, desfalecendo sobre a maçaneta e deixando-se cair para o interior da divisão. Os azulejos pálidos olham para ele, mas ele nem repara. É rapidamente que o faz: com uma mão, levanta a tampa de porcelana e olha para dentro da Terra Prometida com um sorriso encantador: com a outra, desaperta desajeitadamente as calças, quase arrancando o botão e por pouco não destruindo a berguilha. O tecido desce-lhe pelas pernas, e é em pânico que repara que falta a cueca. Leva logo a mão de novo à cintura e remove a cueca já em pleno voo, aterrando sobre o buraco de porcelana e respirando fundo.

A casa de banho espera.

E, de súbito, num grito do Ipiranga, todas as suas preocupações se vão pelo cano abaixo; primeiro, a libertação do gás, um silvo quase celestial. De seguida, uma pausa pela de suspence, e só depois a libertação em si, para todo o lado, o choque com o fundo da sanita, e o respectivo splash. Gotas de água voam, indo incrustar-se-lhe na bunda, e o cheiro invade a divisão, violando-lhe as narinas delicadas, mas nada o move, nada lhe retira aquele momento de pura felicidade.

A diarreia escorre, e ele sorri, suspira, deixa-se ficar. Ocasionalmente olha para baixo, como que perguntando Já está? E logo lhe acode nova vontade, e mais um silvo improvisado seguido de um ronco intestinal e da libertação de mais e mais e mais nhanha castanha.

Logo que se alivia, prepara-se agora para se lavar, e continuar com a sua vida. Carrega na alavanca por cima da sua cabeça e logo lhe acode à virilha e rêgo da bunda a frescura da água cristalina do autoclismo; agradece por viver num mundo civilizado, onde tais luxos são possíveis, e levanta-se da sanita cuidadosamente, agora com um destino bem definido e apenas uma missão: lavar-se no bidé.

FIM

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Mudança de opinião

Reconheço com modéstia que mudei de opinião, e que fui rápido demais a opinar sobre o Referendo sobre o Casamento Homossexual.

Reformulando, portanto: Para mim não há cá referendos. Não há forma de tornar legítimo um referendo cujo resultado pode muito bem forçar sobre uma minoria a vontade de uma maioria. Os que não concordam com o casamento homossexual terão a sua opinião, mas azar. As opiniões pessoas de nada servem para justificar uma descriminação desta natureza, a não ser que haja realmente algo objectivo que prove que o casamento homossexual é um poço de horríveis consequências para a sociedade.

Trata-se de uma liberdade básica, e acho que ainda vivemos num estado democrático.

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sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Contrastes de Sexta à Noite

Hoje vinha eu de metro para casa e deparei-me com uma estranha evidência. Eram isto umas dez e quarenta da noite, e apanhei o metro da linha verde em direcção ao Cais do Sodré. Ia eu de mochila às costas, suado e cansado, contemplando já a possibilidade de chegar a casa e deitar-me na cama para uma reparadora noite de sono quando olhei em volta. Por todo o lado, como uma invasão de baratas, estavam Jovens. Pessoal da minha idade, pessoal mais velho, pessoal com 14 anos que se veste como se tivessem 20 e olham constantemente para as superfícies reflectoras para alisar o cabelo ou reposicionar a gola do casaco.

Ia eu para casa estafado e esta gente, da minha idade, saíra agora das suas casa e dos seus jantares de amigos em direcção à baixa da cidade, prontinhos para uma madrugada de excessos. Pergunto-me: indo eu para casa mal vestido e estafado, a esta hora que para mim é tarde e para esta gente muito cedo, estarei a perder alguma parte marcante, quiçá irrecuperável, da minha juventude? Quantas experiências estarei a deixar passar por escolher a minha casa, a leitura e o descanso em vez dos copos de álcool, ruas cheias de raparigas de decote e festas com música aos berros?

Olhei melhor para esta gente. Perfumada, bem vestida, de cabelos penteados com uma precisão cirúrgica. Passam provavelmente mais tempo na casa de banho a pentear-se do que a estudar para os testes de matemática. Mexem nos seus telemóveis de alta geração, conversam sobre superficialidades, antecipam a noite de festança garantida. Comparam marcas de roupa, procuram raparigas ou rapazes para o flirting, e tentam ao máximo minimizar qualquer resíduo de personalidade para se melhor misturarem na mistela de cabeças vazias que é a minha geração. Actualizam-se no calão, saltitam de bar em bar, seguram o copo de álcool na mão como se dele dependesse um estatuto social. Plastificam-se à vista de todos, para que assim, todos plastificados, não sejam cá diferentes nem esquisitos. Todos amigos, todos iguais. Vistos de longe parecem saídos da fábrica. Uns apanham pielas, outros levam pancada, outros chegam a casa vivos e de moralidade intacta, talvez porque têm mais juízo; a assim na próxima sexta lá estarão outra vez, e o ciclo recomeça como se de uma obrigação se tratasse.

Então? Estarei eu a perder um marco na minha juventude, uma one in a life time experiencia que quanto mais envelhecer mais longínqua se torna? E principalmente, terá isso importância?

Não. Não me parece.

Estou em casa, confortável e no quentinho. Vou deitar-me, amanhã acordo cedo.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Ai ai, os chatos desses homossexuais, sempre a quererem direitos iguais aos nossos!

A discussão sobre o casamento homossexual vai começar, para o bem da sociedade. Os dois grandes poços de valores familiares que são o CDS-PP e a Igreja já vieram defender o Referendo, o que é uma forma de dizerem que não querem cá casamento homossexual nenhum; acho que vão apanhar uma surpresa, mas ok.

Neste caso estou a favor da mania das grandezas do PS, que quer avançar com a Lei sem fazer referendo nenhum e não perguntar nada a ninguém como é seu hábito. Concordo com a lei, mas não com o princípio: acho que o referendo é importante por duas razões. Primeiro, para calar de vez a Igreja e os comichosos que se ofendem à mínima menção da palavra “gay”. Segundo, para meter Portugal a discutir um assunto que em comparação com a crise económica ou as máfias das sucateiras não parece importante, mas que se trata de uma questão realmente crítica. Estamos a falar da igualdade de direitos de uma minoria não tão minoritária assim. É tempo de falar sobre isto.

Por achar o tema importante e ser um ferrenho apoiante do casamento homossexual, deixo já aqui a minha opinião. Casamento homossexual: SIM. Sim porque se trata da união de duas pessoas que se amam e querem partilhar uma vida, com benefícios fiscais envolvidos. Sim porque se trata de combater uma discriminação que já se alonga há demasiado tempo no nosso país. Sim porque os homossexuais devem ter a liberdade de casar com quem querem, porque querem, tal e qual como um típico casal heterossexual. Sim porque sim. Acho que se trata de um SIM tão óbvio que nem consigo imaginar as objecções.

Ou melhor, consigo mas não preciso. O CDS-PP utilizou, estranhamente ou não, o mesmo argumento que o Bispo do Porto e outras figuras da igreja católica: o casamento é uma instituição, bla bla bla, definida na constituição como a união de um homem e uma mulher, etc etc, e deve continuar assim porque, caramba, sempre foi assim. “Desde que há civilização”, parecem-me ter sido as palavras do Bispo do Porto.

Sabem o que é que também há desde que há civilização? A escravatura. Ou a mutilação genital. Ou os casamentos entre homens de 50 anos e raparigas de 12. Até há uns 500 anos (ou muito menos, se formos a outras partes do mundo) era absolutamente legal e considerado banal ter escravos. Escravo, o que significa que um ser humano era dono de outro ser humano. Porque é que não temos escravatura, então?

Porque alguém se sentou a pensar nisso e chegou a uma conclusão: “Ei… isto é um bocado injusto para os escravos”. É assim que a sociedade evolui. Adopta um modelo, e quando vê que não funciona esse modelo é substituído. Assim acontece “desde que há civilização”, e assim deve continuar a acontecer. Temos de tomar decisões para que o maior número de pessoas tenha as mesmas liberdades e responsabilidades, sem grupos minoritários a verem os seus direitos esmagados pela opinião da maioria.

Vem na Constituição e no Dicionário que casamento é entre homem e mulher? Pois mudem a Constituição! Mudem o Dicionário! As coisas evoluem, e as consciências também. Será que ninguém vê que ao votar NÃO ao casamento homossexual está a impedir outras pessoas de exercerem um direito que deveria ser de todos? Não percebem que pela sua teimosia e umbiguisse estão a proibir a união entre duas pessoas? Que argumento racional pode ser apresentado contra o casamento homossexual? De que forma é que um casamento gay magoa o resto da sociedade, ou sequer tira valor à “instituição” (?) do casamento?

Ao menos gostaria que a Igreja e o CDS-PP argumentassem com mais honestidade, uma vez que o seu ponto de vista é o equivalente a dizer “Ei, isto SEMPRE foi assim, por isso quem somos nós para estar para aqui a ilegalizar a escravatura?”. Alguma honestidade, senhores. Digam abertamente: “Olhem, a nossa religião não gosta nada da ideia”. Continuariam, na minha opinião, a ser da pior espécie de intolerantes; continuariam a ser uma nulidade do ponto de vista argumentativo; mas ao menos seriam honestos.

E não, não acho que comparar o casamento homossexual com a escravatura seja um grande salto. Ambos se baseiam na mesma coisa: a maioria tira liberdades à minoria só porque pode, sem razões que o justifiquem e sem que a minoria possa combater a sua situação. Não há um único argumento decente que justifique proibir algo tão básico como a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo terem a sua união reconhecida pelo Estado. Simplesmente não há.

Parabéns ao dogma religioso, sempre a dar cartas no campo da igualdade. Ama o teu vizinho como a ti próprio; só não o deixes é casar-se com outro homem.

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terça-feira, 3 de novembro de 2009

Dia da Defesa Nacional (estive lá)

Para as centenas de leitores deste blog que o lêem apesar de não saberem quem o escreve, fica a informação: tenho 18 anos, e por isso este ano fui convocado para o Dia da Defesa Nacional. É um dia passado numa base do exército, onde aprendemos sobre a vida nas Forças Armadas, comemos comida de cantina, vemos armas ao vivo e acordamos cedo demais. Aqui fica a reportagem completa e em tempo real (sim, levei um bloco de notas e uma caneta).

8:14 – Cá estamos. O exército sempre foi um exemplo de rigor, honra e cumprimento do dever; talvez por isso os autocarros tenham chegado atrasados mais de quinze minutos. Sinto-me um verdadeiro macho, rodeado por tipos da minha idade que parecem partilhar comigo o desportivismo. Alguém levará isto a sério? Talvez para quem goste da tropa e queira seguir carreira militar este dia seja uma espécie de Noite de Natal. Alguém que se entusiasme com isto, ao menos. Somos uns 50, e vão chegando mais. Mandaram distribuirmo-nos por três autocarros Estremadura. Não há camiões com padrões de camuflagem, nem oficiais de cabelo rapado e arma na mão a ordenar-nos que façamos flexões, apenas o motorista gordo e de gravata sem autoridade nenhuma. O autocarro que estava marcado para as 8:oo arrancou às 8:19. Viva a disciplina militar!

8:26 – Os meus colegas de tropa discutem a mão de Liedson. Será algum cientista ou pintor, não? Deve faltar-me um importante gene, para os lados do cromossoma Y, que passa de geração em geração pelas mistelas químicas que definem o homem comum.

8:32 – Atravessando o Tejo via Ponte 25 de Abril. O Cristo Rei é realmente enorme.

8:35 – Ups, esqueci-me do cinto (pausa) Já está.

8:41 – Sono.

8:48 – Penso que chegámos.

8:53 – Alfeite. É aqui, é.

9:20 – Saímos do autocarro, esperámos uns 20 minutos numa paragem à entrada da Base Naval do Alfeite e agora voltámos para dentro dos autocarros. Que raio…?

9:21 – Vai uma carrinha do exército à nossa frente, a abrir caminho tipo escolta policial. Hurray!

9:42 – Fomos divididos por ordem alfabética para sermos identificados. Sou um R. Toda a gente nos trata por “juventude”. Vimos o Içar da Bandeira. Os três representantes dos três ramos das Forças Armadas (Força Aérea, Marinha e Exército) estavam alinhados, a fazer continência. A bandeira ia subindo, puxada por um velhote bem vestido com ar de cerimónia. A acompanhar, dois altifalantes arcaicos cuspiam uma música militar, que pela harmonia e musicalidade parecia uma trompa a ser tocada por uma foca. Não há armas à vista, e ninguém nos ameaçou com pancada quando vimos o içar da Bandeira Nacional. Que raio de exército é este? Eu não sabia o meu código postal no momento da identificação, e em vez de me prenderem pediram-me para “ir saber isso” e mandar uma mensagem a um familiar. Agora estou sentado numa espécie de auditório, com cadeiras individuais, um pequeno palco à frente e inspiradoras fotografias à volta da plateia, com homens do exército a segurar metralhadoras, aviões de guerra e barcos apetrechados de canhões, e com mensagens inspiradoras e originais como "Não fiques apenas a ver navios" (Marinha) ou "Uma boa escolha para mudar de ares" (Força Aérea). Quando vai começar a palestra?

10:02 – Deram-nos de comer. Fiquei no fim da fila para o balcão, e por isso não cheguei a tempo do sumo. Fiquei-me por uma sandes de chourição execrável; como era grátis, voltei ao balcão e tirei outra.

11:13 – Isto é como uma gigantesca aula de condução, só que sobre carros de combate e cidadania. Vamos ver um filme, mas o Subtenente não está a atinar com o projector.

12:50 – Almoço, finalmente. Foi uma das piores experiências gastronómicas da minha vida, mas estava com tanta fome que os filetes com arroz de feijão e azeitonas (estranha combinação) me souberam bastante bem.
Fomos visitar os fuzileiros. O sargento que nos apresentou o armamento era bastante cómico. Falava de armas, granadas e morteiros com o carinho e descontracção de quem nos apresenta os animais da sua quinta. “Um atirador experiente mete esta bala (aponta para uma coisa enorme do comprimento do meu dedo indicador) na cabeça de uma pessoa e rebenta com ela”.
Ver o armamento foi divertido, até. Há uma quantidade imensa de formas engenhosas e eficazes de matar pessoas. O Sargento apresentava muitas armas começando com a frase “Vocês devem conhecer esta dos jogos, é uma…”. Agora percebo a atracção de muita gente por este universo. Lá no meio também me lembrei de quem estaria do outro lado da bala, a “levar com o balázio”; mas isso não interessa. Só se quisesse ir para os Fuzileiros é que me iria preocupar com as implicações morais do meu “emprego”.

14:25 – Depois do almoço fomos visitar a Fragata Côrte-Real. Ao que parece, a tripulação da fragata apanhou aqui há uns tempos uns piratas ao largo da Somália; aliás, não os apanhou. Tiraram-lhes as armas e as embarcações e deixaram-nos seguir com as suas vidinhas de piratas. Isto aconteceu porque, segundo a legislação portuguesa, nenhum navio português pode prender gente; e como a fragata é considerada território português, aqui ou na Austrália, os piratas da Somália foram libertados… graças à lei portuguesa!
De qualquer forma foi uma visita interessante. Basicamente demos um passeio pela ponte do navio e visitámos as armas pesadas (como o Phalanx, um canhão enorme que dispara 3.600 munições por minuto. Por Minuto! Isso são 60 disparos por SEGUNDO. Nas palavras do chefe de artilharia, “parte qualquer coisa ao meio”), e a seguir vimos um vídeo sobre a fragata e respectivas cenas de pancada com outros navios. Toda a visita se baseou mais na capacidade da fragata em rebentar com outros navios do que propriamente na vida a bordo, nos vários postos ou na forma de funcionamento do navio. Pena; mas já era de esperar. Pancadaria vende mais do que qualquer outra coisa, especialmente quando o público alvo é uma centena de jovens facilmente impressionáveis e danados para as armas de grande calibre.

14:35 – De volta ao auditório, para outra palestra. Pelos vistos os 4 meses de tropa obrigatórios foram substituídos pelo Dia da Defesa Nacional, no que toca a obrigações militares. Obrigado, Paulo Portas. Vou votar a teu favor até ao fim da minha vida.

14:37 – Em caso de entrarmos em guerra de repente e faltarem militares, quem se baldou ao Dia da Defesa Nacional é chamado primeiro. Eh eh!

16:20 – De volta ao auditório depois de um “reforço da tarde”. Havia pão com chourição mais uma vez, mas não estou assim com tanta fome. Fiquei-me pelo sumo de laranja.
Vamos agora receber a Cédula Militar, que devemos conservar até aos 35 anos. Depois podemos deitar fora porque já estamos demasiado velhos para combater. Um a um vamos ter com a Tenente para receber a Cédula, e depois vamos lá para fora ver o arriar da bandeira. A Tenente está a mandar vir com quem fez lixo na sala do lanche, e ameaçou não distribuir as Cédulas e dar-nos todos como faltosos. Eu acharia bem feito, não fosse não ter nada a ver com os selvagens dos outros jovens. Não quero ter falta num dever cívico e militar só porque alguns idiotas não sabem meter os guardanapos no caixote do lixo.

16:55 – Cá estamos no autocarro em direcção à cidade. O arrear da bandeira foi calmo, porque a Tenente fez perceber que estávamos todos tramados se alguém se mexesse. Mesmo assim, houve risadas idiotas e bocas generalizadas. A falta de respeito fica mal a toda a gente, especialmente a todos estes universitários com a mania das grandezas. Deve fazer parte da idade ou da educação, achar que só porque estão na faculdade são uma espécie de seres superiores, de tão incrível importância e inteligencia quando comparados com o típico mortal, e agir como se ser estudante universitário fosse só por si um inatingível estatuto social, um cargo que exige um permanente desdém pelos outros. Eu também não ligo nenhuma a estas coisas do patriotismo ou do exército, mas respeito tanto como qualquer outra coisa. Caramba, é o meu país. O que estivemos a fazer hoje foi um dever cívico, para conhecer as pessoas e a instituição que garantem a nossa defesa nacional. São estas pessoas que, em caso de invasão, vão dar o corpinho por Portugal. Se um destes universitários ficar preso nos escombros de um edifício depois de alguma catástrofe natural, o mais provável é que seja um destes militares a tirá-lo de lá. Por mais inútil e sobrevalorizada que possa parecer, a nossa bandeira é um dos símbolos nacionais. Se calhar para muitos ver içar a bandeira é uma estupidez pirosa; são os mesmos que, quando a selecção de Portugal ganha um jogo de futebol, vão para a rua gritar o orgulho de serem portugueses. A bandeira nacional é mais símbolo nacional que o Cristiano Ronaldo. Deixem-se de hipocrisias. Se gostam e se orgulham tanto do vosso país, respeitem as suas instituições. São elas que garantem há oitocentos anos de História essa etiqueta que agora se põe em qualquer brasileiro que venha para cá marcar golos. Portugal era um país antes de se tornar marca. Orgulhem-se e respeitem o país e o que o representa. Cambada de hipócritas.

17:20 – Trânsito volumoso. O que é que esta gente toda veio fazer para a mesma rotunda a uma segunda-feira à tarde?

(hora desconhecida, mas provavelmente lá para as seis da tarde) – Chegada a Lisboa. Em conclusão: gostei, mas não me convenceram. Dou por terminada esta reportagem. Falta, claro, passar tudo para o computador para que a possa partilhar com o mundo.



E cá está ela. Até à próxima e Viva a Nação.

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Minha Querida,

Escrevo-te esta carta com toda a sinceridade que me é possível. Eu sei que nem sempre fui capaz de mostrar os meus verdadeiros sentimentos por ti, talvez por ter medo da tua rejeição. Coisas tolas de rapaz apaixonado! Mas sinto que hoje é o dia de te falar do quando és especial para mim.

Desde que nos conhecemos que tens estado num lugar especial no meu coração. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que te vi. Estava tão nervoso que mal conseguia falar. Tu, do outro lado da sala de aula, ouvias a professora a dar-nos as boas vindas à escola. Tinhas o cabelo castanho escovado, e preso por duas tranças que te caíam pelos ombros. Tinhas um vestido vermelho aos quadrados, e um par de sapatos pretos. É-me difícil recordar outro momento na minha vida mais importante do que aquele. Houve qualquer coisa em ti que me despertou uma profunda curiosidade e um sentimento que nunca experienciara antes, como quem vê uma paisagem ao vivo ou ouve uma música comovente. Foi como se a importância do mundo passasse para segundo plano, relativamente fácil de ignorar quando comparada com a luz que saía dos teus olhos.

Pode parecer lamechas, mas foi isso que senti. Andava mal disposto, com dificuldades em comer, e sonhava contigo todas as noites. Na escola mal ouvia a professora, porque tentava arranjar todas as oportunidades para olhar para ti e absorver a tua figura, as tuas cores, as tuas formas, como quem estuda um quadro obsessivamente.

Provavelmente não te lembras de mim tão bem como eu me lembro de ti nessa altura; não faz mal. O que importa é o presente. Crescemos, e por sorte fomos de escola em escola, sempre colegas de recreio ou de turma. Vi-te crescer, e de menina passaste a uma mulher incrível. Passaste de um estranho e abstracto sentimento infantil para uma profunda paixão de adolescente. As férias eram um martírio, porque estava longe de ti. As aulas estendiam-se por horas e horas, e as oportunidades de olhar para ti de relance sem levantar suspeitas iam ficando cada vez mais escassas. Estávamos numa idade em que já reparávamos nestas coisas, e houve quem notasse. Brincavam comigo, dizendo que tu eras demasiado para uma pessoa como eu. Que deveria perseguir outros objectivos, e encontrar outra rapariga simpática. Que fácil é dizer estas coisas, quando não se partilham sentimentos tão sentidos… E tu, impávida e serena, passeavas a tua beleza, e transformavas-te de menina bonita a mulher maravilhosa.

Crescemos. Hoje estás uma mulher, eu uma amostra de homem. Sinto-me mal, por vezes. Na verdade, não sei porque te estou a escrever isto. Talvez porque seja mais uma forma de alimentar este amor, colocando-o numa folha de papel. Tenho umas saudades tuas que nem imaginas. Sabes há quanto tempo não nos vemos, não estamos juntos, não me cumprimentas com um bom dia? Há demasiado. Faz hoje 458 dias. Tenho-os marcado no meu calendário, por cima da minha cama. 458 para ti são colecções de memórias, fragmentos de instantes, um ou outro acontecimento marcante: entraste na faculdade, encontraste um namorado, compraste um carro. Para mim, são a cronologia de uma prisão, são a medição metódica e contada da minha mais profunda saudade.

Por isso decido ver-te, decido procurar-te. Tu não me vês, provavelmente. É melhor assim; especialmente depois do que aconteceu da última vez. Para que é que tiveste de chamar a polícia? Eu amo-te, não compreendes? Eu amo-te. Eu amo-te. Nunca te faria mal.

Em vez disso, continuou a absorver-te, a alimentar-te no meu coração. Vejo-te todos os dias a sair de casa, e penso como seria ver o amanhecer nos teus braços. Acordar numa praia paradisíaca contigo de bikini, bela como sempre. Amo-te como nem imaginas. Quando sais de casa, vou contigo até ao autocarro, onde te vejo na paragem de livros no braço como quem espera por alguma coisa banal, mais banal que os teus olhos que são tudo. Vejo-te de longe, detrás de um dos carros estacionados na rua, porque duvido muito que gostasses de me ver lá.

Vejo-te entrar no autocarro, e fico a sonhar. Imagino-te a ir até à escola, e a entrares na aula, e a sentares-te na cadeira, e a roeres a pontinha da tampa da caneta como fazias quando andávamos na escola juntos. Às vezes confundo-me, aqui sentado no meu quarto, imaginando-te na escola. Penso que me transportei para o passado; que subitamente tudo na vida é uma segunda oportunidade, e que cada dia pode ser repetido e vivido uma segunda vez de forma a que os meus erros possam ser corrigidos, e de forma a que finalmente nos possamos unir.

Fico muito envergonhado por dizer estas coisas, mas sinto que tenho de o fazer, meu amor. Eu amo-te de uma forma inimaginável. Sonho contigo todas as noites, especialmente quando adormeço muito tarde e a chorar. Fazes-me pensar na vida que poderíamos ter tido se não fosse o facto de o nosso amor ter sido destruído por aquele rapaz.

Diz-me, o que terá ele que eu não tenho? Será o visual? As roupas? Terá um sorriso mais sincero ou um amor mais verdadeiro? Juro-te que não. Juro-te que te amo mais do que ele alguma vez te amará. Podes não acreditar em mim, mas um dia vais entendê-lo. Um dia vou mostrar-to e dizer-to com todas as letras. Um dia ele vai sair das nossas trajectórias, vai sair de cena, e vamos finalmente ter espaço e tempo, todo o tempo do mundo. Um dia.

Quando sonho vejo a tua cara, sem maquilhagem, porque é bela e perfeita ao natural. Vejo-a a boiar numa infinita imensidão de esbranquiçado material, como se a tua perfeição fosse única e material numa realidade de pura incongruência física. No sonho sorris para mim, e aproximas-te com calma e tranquilidade, pois toda a eternidade será minha e tua se tu me amares como te amo a ti. Aproximas-te assim desta forma, e a tua cara passa de pequena a média, de média a grande, e de grande a enorme, até cobrires toda a minha visão e os teus olhos rebolarem das órbitas que os seguram e da tua boca saírem serpentes roxas. O meu médico diz-me que com a medicação os sonhos poderão ficar mais agradáveis, mas para mim é mais do que suficiente lá estares tu, grande e sorrindo para mim como se só eu existisse para ti.

Ando a tomar os comprimidos, como o médico recomendou. Sinto-me melhor. A psicóloga obrigou-me a deitar fora o revólver, e assim o fiz. Estou a tentar entrar nos eixos, talvez encontrar uma forma de me aproximar de ti. Às vezes arrependo-me, claro. Imagino-te com ele, com aquele que nem sei o nome. Conheço-lhe a cara, mas não o nome. Imagino-te com ele e choro, choro bastante, e desejo não ter deitado a arma ao rio. O que está feito está feito, e há que viver com o que temos. Talvez um dia ele tenha um acidente qualquer, ou eu mude de ideias. Um revólver não é uma coisa difícil de encontrar.

Meu amor, como te amo. Serás minha um dia? Eu quero acreditar que sim. Gostava que a medicação fizesse efeito, que a terapia funcionasse, e que este amor por ti passasse ao passado. Mas por outro lado, o que seria de mim sem ti? Não sei do que seria capaz. Não sei mesmo. Não faças nenhum disparate. Aceita-me. Farias de mim o homem mais feliz do mundo, acredita.

Com todo o amor do mundo,
O teu apaixonado


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domingo, 1 de novembro de 2009

O Cereal Killer (Final)

Lá dentro, no gabinete do dentista, um doente estava sentado na cadeira; e o dentista, de bata branca, saltitava à sua volta.

- Ora bolas, ora bolas... Tenho de parar esta hemorragia!- dizia o dentista. Retirou de um saco um rolo de papel de cozinha, e arrancou várias folhas com que encheu a boca do doente. Depois, tirou de uma gaveta uma agulha e uma tesoura.

- Vou fazer-lhe uma costura, para que fique apenas com uma pequenina cicatriz, pode ser?

O doente exclamou qualquer coisa como “Arbgh augh augh!”.

- Depois conversamos, ok?- disse o dentista, a sorrir; reparou que se lhe tinha acabado a linha de costura, olhou em volta para a sala, a cantarolar baixinho para aliviar a tensão, e pousou os olhos nos ténis do doente. Ajoelhou-se, retirou um dos atacadores, prendeu uma das pontas à linha e inclinou-se para cima da boca do doente.

- ARGH! Argh?

- Sim, uma COSTURA!- exclamou o dentista, a agitar a agulha à frente dos olhos do doente.

- Argh argh? Blargh ugh argugh!

- Escusa de estar a falar porque não o entendo!- disse o dentista, e um pequeno repuxo de sangue brotou da boca do doente, encharcando a bata do dentista e atirando-o de encontro a um móvel. Uma caixa de medicamentos caiu de cima do armário e estatelou-se no chão. De cima do armário surgiram gritos de terror e pânico, enquanto outras caixas de medicamentos se aproximavam da borda do armário e olhavam lá para baixo, onde o cadáver da caixa jazia. Uma das caixas começou imediatamente a chorar, e, pelas semelhanças faciais, Jovial concluiu que ela e a falecida eram familiares próximas.

O doente contorcia-se na cadeira, enquanto a hemorragia aumentava. Agora, os esguichos de sangue chegavam à entrada da sala, e por pouco não sujaram o casaco do capitão, que se desviou a tempo. O dentista ergueu-se com dificuldade, exibindo um galo monumental no alto da cabeça.

- Ora bolas!- clamou, e mergulhou a cabeça numa gaveta do armário. De lá tirou uma pequena chapa de alumínio, que se contorcia entre os seus dedos, temendo o seu destino. De seguida, o dentista retirou um maçarico, e aproximou-se do doente, que se tentava levantar da cadeira.

- Relaxe!- colocou a chapa de alumínio, relutantemente, dentro da boca do doente, e com agilidade soldou-a à gengiva, altura em que a hemorragia parou, e o sangue deixou de brotar da boca do doente. Orgulhoso, o dentista colocou o maçarico em cima da mesa dos equipamentos e ajudou o doente a levantar-se.

- Bôssê eimou-me a oca!- dizia o doente, enquanto tirava o seu atacador da agulha do dentista.

- Quê? É normal, sim, é normal nos primeiros dias ficar a falar assim. Ponha gelo de hora a hora e vai ver que isso passa!

O doente saiu do consultório constrangido, aproveitando para se queixar a Jovial e ao capitão de qualquer coisa que eles não conseguiram entender. Depois, foi-se embora, e na recepção recusou-se a pagar a conta. No entanto, o alarme voltou a tocar, e o doente teve de depositar duas notas chorudas em cima do balcão, sem antes ajudar a senhora do cabelo vermelho a recolocar o braço no lugar, que caíra, assustado, com o som do alarme.

- Bom dia! Em que posso ajudá-los? Têm consulta marcada? - perguntou o dentista, enquanto tirava as luvas de látex e as colocava num caixote do lixo. O caixote recebeu-as, mastigou-as, arroto e de seguida encaminhou-se para o W.C.

- Eu sou o capitão das autoridades e este é Jovial Trestonho, detective temporário.

- Como os prazos de validade?- perguntou o dentista.

- Como?

- Os prazos de validade! Dos iogurtes, por exemplo...

- Sim, mais ou menos isso. Estamos aqui para lhe fazer umas perguntas.

- Claro, claro... sou suspeito de algum crime?- perguntou o dentista, subitamente pálido.

- Não, não, claro que não.

O dentista benzeu-se com veemência.

- Precisamos de uma lista de todos os seus pacientes que no último ano o visitaram com cáries ou inflamações por excesso de açúcares.

- Andam à procura de um assassino?

- Sim.

- Uau! Ena, quem sabe eu já tenha tratado um assassino sanguinário!- animava-se o dentista, a procurar qualquer coisa num monte de papéis em cima da sua secretária
- Aqui está a listinha - estendeu ao capitão uma folha de papel com diversos nomes.

- Muito obrigado - disse o capitão- Bom dia!

- Não recebo uma medalha ou assim?

- Uma medalha?

- Por vos ter ajudado numa importante investigação policial!

- As autoridades costumam oferecer senhas de refeição, e não medalhas...- resmungou o capitão. Tirou do bolço um papel amarelo e estendeu-o ao dentista - Quinze por cento de desconto no “Churrascaria do Manel”. Está bem assim?

- Sou vegetariano...- queixou-se o dentista.

- Ora bolas... pronto tome lá!- estendeu-lhe um papelinho de 20 por cento de desconto no “Horta do Manel” e, sem mais demoras, o capitão e Jovial saíram do consultório, cada vez mais perto de apanhar o seu assassino.

- Jovial, meu amigo! O assassino está nestas duas listas! Consigo já cheirar o prestígio, as medalhas de honra, as entrevistas, a fama, os benefícios fiscais…!- sonhava o capitão, ao sair do consultório do dentista. Quando estava prestes a dizer a Jovial como era bom ser famoso e receber pudins de graça, tropeçou, à saída, e caiu com o nariz no chão. O nariz saltou-se da cara e indignou-se. O capitão olhou para os seus pés e viu que tinha tropeçado numa caixa de cereais integrais e pedaços de fruta.

- Jovial! Uma caixa de cereais!- o capitão, alarmado, apreçou-se a medir o pulso à caixa. Nada a fazer, estava morta!

- Jovial!- chorava o capitão, com uma voz estranha por causa da falta de nariz - Matei-a! Matei a caixa de cereais!

- Eu vi, eu vi!- disse um transeunte com sacos de compras pendurados nas orelhas - Ele deu-lhe um pontapé!

- Foi ele! - berrou uma senhora, a apontar para o nariz do capitão, que descia a rua. O nariz apanhou um susto, fungou, inspirou-se, e espirrou para cima da cara da senhora, que ficou cheia de ranho nos olhos. Distraída, a esfregar os olhos, deixou o nariz fugir por uma esquina.

- Não, capitão! A caixa de cereais já estava morta!- disse Jovial, consolando o capitão que chorava estendido no chão- Repare! A caixa tem uma colher de gelado dentro da boca! Foi asfixiada!

O capitão olhou para o cadáver da caixa de cereais e viu a colher a sair-lhe da garganta.

- Tirem-me daqui!- implorava a colher. Jovial arrancou-a da boca da caixa e ela respirou fundo, aliviada.

- É mais uma peça do faqueiro da “Caramba”!- disse o capitão, a limpar as lágrimas.

- E fala! Talvez nos possa ajudar a descobrir o criminoso… Diga-me, colher… quem matou a caixa de cereais?- perguntou-lhe Jovial.

A colher olhou à sua volta. Para além do capitão e de Jovial, os transeuntes olhavam também fixamente para ela.

- Não lhe vi a cara, porque usava uma máscara… uma máscara de pinguim… e era pequeno, muito pequeno…

- Um anão!- disse o capitão.

- Uma anã!- gritou a senhora do ranho nos olhos.

- Não lhe viu o corpo? – perguntou Jovial, a apanhar uma coisa do chão.

- Não… a máscara tapava-o todo…- a colher, talvez pelo nervosismo, começou a chorar, e Jovial deixou-a ir.

- Pois bem, vamos lá apanhar este assassino! Tem de estar na lista do quiosque, na lista do dentista e ser pequenino! - disse o capitão, seguido de aplausos da parte das pessoas na rua, que paravam para assistir.

- Na lista há apenas quatro nomes comuns…- disse Jovial. Do nada, apareceu um senhor com um tambor, e começou a tocar um ritmo rápido. A expectativa aumentava, e os transeuntes ficavam cada vez mais inquietos. O capitão transpirava da testa e, sem saber, afogou com uma gota do seu suor uma formiga que passava por ali. Então, Jovial clamou:

- Vamos a casa de cada um destes suspeitos até encontrarmos o assassino, e depois as caixas de cereais poderão para sempre viver em paz! - a multidão aplaudiu entusiasticamente, e Jovial montou o seu peru com defeito. O capitão, seguindo-o em cima do porco, indicou a morada do primeiro suspeito, e os dois, eles mais os dois agentes da autoridade e seus perus, aceleraram pela via pública.

Foi então que Jovial teve uma ideia fabulosa. Pensou, repensou, voltou a pensar e finalmente, depois de pedir a lista de suspeitos ao capitão e de a ler, gritou:

- Já sei quem é o assassino!

- Tem a certeza?- perguntou o capitão.

- Absoluta. Capitão, siga-me!

Pouco tempo depois, chegaram a uma pequena quinta. Havia uma pequena casa e, ao lado, um galinheiro, onde as galinhas jogavam dados a dinheiro, e uma pequena horta.

Jovial desceu, entusiasmado, do seu peru, e bateu à porta da casa.

- Já vai- disse uma voz, lá de dentro. Ouviu-se uma flatulência, depois um “Ah…” aliviado, depois um autoclismo e, finalmente, a porta abriu-se, revelando o agricultor da beterraba pendurada no nariz.

- Você!?- perguntou o capitão, surpreendido.

- Eu?- perguntou o agricultor, a apertar o botão das calças e a clicar num ambientador de plástico que tinha em cima da televisão.

- Podemos entrar?- perguntou Jovial, a sorrir.

- O que se passa?- perguntou o agricultor.

Jovial olhou para o chão e viu, perto da porta, um monte de revistas.

- Edições antigas da “Caramba”, hum? Aposto que a todas elas falta o cupão do faqueiro!

- Que quer dizer?.- perguntou o agricultor.

Jovial entrou, e o capitão também. Olharam em volta.

- Jovial, olhe!- disse o capitão, espreitando por detrás de um armário. – É… é…- e revelou uma máscara de pinguim.

O agricultor corou - Eu não sei como isso foi aí parar!

Jovial dirigiu-se à cozinha e abriu uma gaveta.

- Capitão, repare… O faqueiro está quase completo, faltam apenas uma colher de gelado, um garfo e uma faca… as armas dos crimes!

- Crimes? Não… eu…- disse o agricultor, perturbado.

As galinhas interromperam o jogo de dados e postaram-se à janela, para ver melhor.

- E Jovial… este homem tem apenas um metro e meio de altura! É pequenino!

Jovial continuou as buscas na cozinha, e encontrou uma fantástica colecção de cereais de baixo valor nutritivo, tal como tinha adivinhado.

- Estas caixas todas foram o móbil do crime…- disse Jovial- O assassino não conseguia compreender, na sua mente paranóica, como alguém podia preferir cereais saudáveis a uma bela refeição de cereais cheios de açúcar.

- Agricultor, o senhor está preso pelo assassinato de…- disse o capitão, a preparar as algemas.

- Não, espere! Eu não fiz nada!- dizia o agricultor.

- Deixe-se de mentiras, já o apanhámos!- resmungou o capitão.

- Espere - disse Jovial - Este homem está a dizer a verdade.

- Como? - perguntou o capitão, surpreendido.

- O assassino não é este homem mas sim… a beterraba!- disse Jovial, a olhar para a beterraba que pendia do nariz do agricultor.

- Não!- gritou ela, a contorcer-se.

- Sim! Os dois primeiros crimes foram cometidos com mestria, pois não deixou nenhuma marca nem no cadáver nem na arma do crime… No entanto, no terceiro assassinato, o facto de as autoridades estarem tão longe da verdade, fez com que ficasse mais descuidada, como acontece com todos os assassinos em série…

A beterraga contorcia-se, negando tudo.

- Por isso, no terceiro cadáver… encontrei isto!- disse Jovial, a tirar do bolço aquilo que apanharam do chão. Era um pedaço inegável de casca de beterraba.

- Não! Não fui eu!- disse ela.

- E aposto que se observarmos bem essa máscara…- Jovial pegou na máscara e aproximou-a dos olhos - Cá está!- com os dedos, retirou um outro pedaço de casca de beterraga de dentro da máscara.

- Não!

- É pequena e usou inegavelmente esta máscara, que a colher de gelado poderá reconhecer em tribunal; teve sempre acesso às armas dos crimes e, para além disso, esteve com toda a certeza no local do terceiro crime, como este pedaço de casca poderá comprovar. E não dizem que o criminoso volta sempre ao local do crime? Aposto que, na manhã do primeiro assassinato, foi a beterraba que o convenceu a ir até à aldeia…

- S… sim…- disse o agricultor, incrédulo.

- Só teve de se escapulir de noite, altura em que aconteceram os dois primeiros crimes, e voltar, antes de amanhecer, para o nariz deste pobre homem. E aposto que hoje, na altura do terceiro crime, a beterraba lhe pediu para sair…- sugeriu Jovial. O agricultor estava estupefacto.

- Disse-me que ia comprar iogurtes à mercearia…- disse ele.

- A única coisa que me falta compreender, beterraba… é… porquê? Porquê matar todas aquelas caixas inocentes?

- Este ingrato não me liga nenhuma! - explodiu a beterraga, a olhar para o agricultor.

Saiu do seu nariz e foi apanhada pelo capitão, que a prendeu com as algemas - Sempre lhe fiz companhia e sempre o ajudei, mas ele prefere aqueles malditos cereais cheios de açúcar! Quando está com eles esquece-me completamente! É injusto!- gritava a beterraba, desesperada. E a seguir, para o agricultor - Eu sempre te amei! Sempre! Como me pudeste trocar por aqueles cereais?! Como?

O capitão pegou na beterraba e levou-a.

- Beterraba, está presa pelo assassínio de três caixas de cereais integrais.

Jovial seguiu-os.

- Lamento muito…- disse ele ao agricultor.

- Eu… não sabia que ela pensava assim… eu… eu também a amava… - correu para a rua e teve ainda tempo de gritar - Beterraba! Eu também te amo! - antes dela ser levada pelos agentes da autoridade.

- Fantástico, Jovial! Tem a certeza que não quer seguir uma carreira de detective? - disse o capitão, despedindo-se do agricultor. O agricultor, por sua vez, entrou em casa a chorar e, lá dentro, pôs termo à vida dentro do armário das mercearias, junto das conservas e das bolachas.

- Não sei, capitão…

- Ora, ora! Resolveu este caso com uma mestria fantástica! Tem um futuro promissor à sua frente, tenho a certeza!


Passaram-se cinco meses desde que Jovial Trestonho resolvera o que ficou conhecido como o mistério dos cereais integrais. Com alegria, saltitou pela rua da aldeia e por pouco não tropeçou numa boca de incêndio. Era um homem novo: fora condecorado com uma medalha que ostentava com orgulho no sovaco, e recebera um prémio em dinheiro oferecido pelos cereais integrais da cidade por serviços prestados. Com o dinheiro, comprara uma prótese para substituir o seu antigo polegar, que entrava ocasionalmente em curto circuito e começava a fazer o sinal de “fixe” a qualquer pessoa; e comprara também um escritório. Na porta, podia ler-se “Jovial Trestonho, Detective Criminal”; o peru com defeito, excelente dactilógrafo, é agora o seu secretário.

O capitão foi promovido a comandante, mas continuou a chefias as autoridades como sempre fizera e gostara. Fez as pazes com o seu porco; vão casar em Janeiro no primeiro registo civil para animais.

A beterraba, essa, foi condenada à cadeira eléctrica.

- Beterraba, algumas últimas palavras…? - perguntou o agente da autoridade, com a mão na alavanca.

- Sim…- disse a beterraba, presa à cadeira eléctrica e com um capacete de alumínio na cabeça - Amo-te, meu amor… e nem todas as caixas de cereais do mundo podem alguma vez igualar esse amor!

O agente da autoridade, comovido, puxou a alavanca. A beterraba estremeceu com o choque e faleceu rapidamente.

FIM

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