quinta-feira, 30 de junho de 2011

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No prelo está a próxima série do Trajectória Aleatória, depois do esmagador sucesso de O Homem que Reconhecia as Mulheres pelo Rabo, O Cereal KillerSmith e as Sereias. Trata-se de uma semi-mini-série de 12 episódios cuja temática inclui bolos frescos, pancadaria e a potencial destruição de um bairro português. Mais detalhes serão publicados em breve, para delírio dos fãs; é só esperar que o menino chinês termine o seu trabalho. 

Samora 19

 

- Sendo assim, analisemos esta questão com cuidado – propôs Samora enquanto limpava o suor com o lenço e observava as pessoas na praia – Quem apanha um escaldão fá-lo voluntariamente. Isso é claro. Não é coisa que se apanhe de um segundo para o outro, é necessária persistência. Se tal é o caso, a pessoa escaldada, chamemo-la assim, não terá qualquer justificação em reclamar com a sua condição.

- Ninguém gostará de escaldões – observei, com cuidado para não colocar os meus pés descalços ao sol.

- Ninguém, ninguém… – Samora dobrou o seu lenço e colocou-o no bolso – Há cremes para os escaldões, significa que haverá gente suficiente a tê-los voluntariamente.

- Não estará a exagerar? Um escaldão parece-me…

- Parece-lhe porque pensa que ainda estamos a falar de escaldões. Não estamos.

- Não estamos?

- Você pelos vistos está, eu não. O escaldão, voluntário e inegavelmente doloroso, é uma metáfora para aquilo que o Homem faz contra si mesmo e os outros. A História enche-se de costas escaldadas todos os dias.

- O que explica isso?

- O que explica isso? – Samora apontou para os banhistas - Estar de papo para o ar ao sol, inerte.

- Não estava a falar dos escaldões.

- Nem eu.

Samora 18

Anos antes, num almoço a dois em que nos deliciávamos com morcelas:
- Já alguma vez conseguiu estar sem pensar? – perguntou-me - Falo de uma total ausência de reflexão ou imaginação. Zero. O cérebro quieto como que em hibernação.
Pensei por momentos.
- Talvez, em momentos de maior cansaço.
Samora levantou e voltou a descer as sobrancelhas. Parecia desapontado.
- Pelos deuses… A mim, nunca! Anulação do pensamento, como querem os budistas. Que medo! Qual será a vantagem de nada pensar? Não ver relações ou contrastes entre as coisas, não imaginar nada de novo, não questionar o que pensamos e pensar para que nos questionemos? E sem nada para poder expressar aos outros senão comentar que hoje se esteve à sombra de uma árvore a sentir o vento nas orelhas – levantou um dedo - A antítese do pensamento é a antítese do Homem e do que o distingue dos animais. Para plantas temos já os pinheiros.
- Dará paz de espírito.
- Que paz de espírito? A do desapegado ao mundo, que deseja ver e sentir apenas? Pureza, chamam-lhe eles. Onde está a pureza de não chegar a lado nenhum? Para onde iria a Humanidade se fosse pura?

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Samora 17


Só alguns meses depois, já perto da sua própria hora, é que Samora me confidenciou mais pormenores sobre o seu brevíssimo encontro com o pai moribundo.
- Olhou para mim, perguntou-me quem era. Respondi, Samora, seu filho. E ele olhou-me outra vez como se pesasse as palavras mas as esquecesse logo a seguir e repetiu, Quem é o senhor? Eu ia repetir-me também mas parei porque não sabia a resposta. Era seu filho? Chamo-me Samora? E depois? Isso não é o que eu sou, é o que sou em relação aos outros. Filho dele, amigo deste, vizinho da Sra. Primm. E Samora foi o nome que me deram quando nem sequer sabia que existia, antes de saber andar e ver o mundo. E é o nome de outros tantos que por aí andarão, menos inteligentes, é certo, mas também eles filhos de alguém. Não soube a resposta. Ele não me reconhecia como seu filho nem pelo nome que me tinha dado e por isso era como se não existisse, não sabia quem eu era porque tirando isso não me sobrava nada. Depois fechou os olhos e morreu-me. E eu ali de pé, à procura de mim. Deixei-me naquele quarto pavoroso e agora não sei encontrar-me.

domingo, 26 de junho de 2011

Samora 16


Entrámos e perguntaram-nos:
- São da família?
- Eu – disse logo Samora; e para mim – tolere-me fazê-lo esperar…
Era um pedido. Concordei.
Samora seguiu o enfermeiro e eu sentei-me na sala de espera. Estava a meio de uma revista sobre decoração de interiores quando se aproximou, limpando os olhos húmidos e o suor como se não houvesse distinção entre os dois líquidos, ou quisesse esconder um no outro a mim e talvez a ele próprio.
- Nada feito, o velho partiu – sequíssimo e pragmático.
- Conseguiu vê-lo?
Balbuciou que não, foi apanhar ar lá fora e depois voltou, enxugando a nuca. Havia papéis a preencher.

Samora 15

 

Fomos vê-lo ao hospital antes de morrer. Viajámos um dia inteiro para lá chegar e durante toda a viagem não se pronunciou palavra. Não creio que Samora estivesse introspectivo, apenas com pressa. Não o vi verter uma lágrima na vida senão por Sara e em raríssimas ocasiões; em Samora, o sentir estava associado ao agir. Reparei que o seu estado natural era um de calma inerte e sossegada: de frente a uma montra, observando as estrelas, consultando um livro no sofá. Este era Samora misógino, misantropo, desinteressado, sem sensações humanas além das básicas à sua sobrevivência. Quando sentia por algo ou alguém isso traduzia-se em urgência e em rapidez. Era fácil; os seus movimentos por unidade de tempo eram directamente proporcionais ao seu nível de preocupação. Estar quieto era para ele tão natural como a sua misantropia; e quando uma característica tão pronunciada era negada, também a outra se dobrava às necessidades. Como um bloco indivisível, o cerne mais profundo da sua identidade. Naquele dia, a horas de ver o pai moribundo, acelerou o seu veículo e forçou-lhe o motor cansado. Talvez estivesse com medo de não chegar a tempo.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Samora 14

 

- O órgão mais importante do Homem é o testículo.

- E o coração?

- Que mania essa de dar ao coração e ao sangue o crédito pela vida! Sem coração não se vive, dir-me-á.

- Ora bem.

- E sem pulmões a mesma coisa. E sem rins idem. Mas o coração é uno, sentimo-lo pulsar e aos outros seus colegas não. Pulsasse o fígado e veríamos cartões do Dia de São Valentim com outras figuras desenhadas.

- Ainda não defendeu o testículo…

- Defendo agora – sentou-se melhor na cadeira – Os testículos são o centro da vida humana pois produzem as substâncias que ajudam a gerá-la. E sem reprodução não há vida, há apenas fim. A propagação da vida é mais importante do que a sua manutenção. Mantendo-a, ela demora mas vai-se; multiplicando-a, ela dura nem que por pouco tempo e apenas o suficiente para se reproduzir outra vez ad infinitum. Daí o testículo.

- E a mulher?

- A mulher? – olhou-me com surpresa, interrompendo até a coca-cola – A mulher não tem testículos, homem!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Samora 13

Samora acreditava que sempre que andava de carro a Terra movia-se debaixo das suas rodas e nunca ao contrário.
- Ninguém me garante – dizia-me ele sempre que viajávamos de carro – que não é o planeta todo que não gira sob das minhas rodas e impulsionado por elas. Nós estamos quietos, o mundo é que se move por baixo e com ele vem tudo o que sobre ele existe. Não sou eu quem vai ter com as coisas, é o mundo que se contorce para me trazer o que pretendo. Eu ponho o carro a funcionar e acelero mas não vou ter com o meu destino, ele é que tem ter comigo; e pelo caminho arrasta o mundo com ele. Bom seria se isso só acontecesse com destinos importantes.
- Talvez – arrisquei uma vez – quando o destino é menos bom seja o carro que viaja sobre o mundo e não o mundo sob o carro. Assim o mundo não é rodado por uma ninharia qualquer.
Samora segurou o volante com as duas mãos, olhou-me e sorriu.
- Com a breca, e não é que faz sentido, isso?
- E como funciona? Se cada carro rodar o mundo sob si quando anda é o caos, o mundo não pode rodar para cada carro.
- Pois claro que não pode – Samora pôs outra vez os olhos na estrada - é exactamente por isso que só roda quando eu passo. 

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Samora 12

A senhora Primm tinha sete gatos e doze peixes dourados e duas catatuas e três tartarugas e quatro cães e, ocasionalmente, baratas na cozinha. Viva sozinha desde a morte do marido, há trinta anos. Nunca voltara a casar. Apreciava observar os homens da loja de mobiliário do outro lado da rua a descarregar móveis de tronco nu (os homens, não os móveis), ver televisão, comprar batedeiras para as suas sopas e decorar queques com cremes coloridos. Um dia convidou-me para decorar queques, mas eu recusei. Samora contara-me que um dia lhe entrara em casa e vira um bebé de plástico perfeitamente vestido e limpo sentado numa cadeirinha, na cozinha. A Senhora Primm apresentou-o como sendo o seu neto. Estava a dar-lhe de jantar. Samora observou o bebé de plástico com atenção e terá dito:
- É de plástico, minha senhora.
Ao que a Senhora Primm amargamente respondera:
- Para mim é mais verdadeiro que o senhor.
Fechou-lhe a porta na cara. No dia seguinte veio bater-lhe à porta para lhe oferecer meia dúzia de queques decorados. Samora agradeceu, trouxe-os para dentro e colocou-os em cima da mesa do estúdio. Acabei por seu eu a comê-los, estavam maravilhosos. 

terça-feira, 21 de junho de 2011

Samora 11


A primeira vez que dormi com Sara foi na cama de Samora. Tinha ido a Paris visitar um colega que estava doente, e deixara-me a chave do seu estúdio.
- Vá até lá, continue o nosso trabalho – instruiu-me antes de partir – E se Sara aparecer dê-lhe um estalo. Ela que se vá embora. Não a quero lá, conto consigo.
Nessa altura odiava-a, já não me recordo bem porquê. Samora tinha como tradição odiar as pessoas que amava com regularidade, penso que com o intuito de nunca se deixar levar demasiado pelas emoções. A ela dava-lhe gozo tê-lo na mão daquela forma, aquela estátua de saber e de dignidade chorando às quatro da manhã por uma mulher de borracha e seios largos. 

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Descobri que escrever à mão me dá prazer e torna tudo mais eficiente, primeiro porque gosto da caneta que uso e segundo porque os meus blocos de notas não possuem ligação à Internet.

Samora 10

 

Um dia eu e Samora sentámo-nos a discutir as modas.

- Hoje as pessoas vão na rua e riem-se daquelas que se vestem mal. Mas que significa vestir mal? Antigamente ser-se gorda era o traço mais apreciado numa mulher, até mais que a inteligência. Hoje as gordas são o que são, aconselhadas a emagrecer por causa da “saúde”. Saúde! – soltou uma gargalhada e quase se engasgou na coca-cola – Qualquer moda é definida democraticamente pela maioria. Uma minoria define o que a maioria deve seguir. A maioria, por ser burra, absorve o que deve absorver, aliás é para isso que lá está, se tivesse a possibilidade de decidir sozinha estava na minoria e não na massa. Depois, por mais ridícula ou aparatosa que seja a ideia, sobrevive e prolifera-se. A estupidez é toda uma questão de democracia. Um estúpido sozinho é estúpido, cem estúpidos juntos são uma voz com opinião válida. Porque é que ir à missa é virtuoso e sacrificar um galo em honra dos espíritos da Natureza é loucura?

- Mistura fé com gostos superficiais – observei – Não serão universos opostos?

- Porque os tratam assim. No fundo, ambos são interpretações parciais e imprecisas, opiniões humanas mais do que falíveis.

- Há que respeitá-los.

- Não, há que destruí-los. A História ensinou-nos que só é feita quando a vanguarda avança e toma conta da preguiça instaurada.

- A mudança é boa, portanto.

- A mudança é terrível, porque geralmente se muda para pior.

- Então em que ficamos?

- Por aqui – Samora apontou para o seu estúdio à nossa volta – é por isso que, apesar da minha genialidade, prefiro o sofá aos círculos académicos.

domingo, 19 de junho de 2011

Samora 9

Samora contou-me, mesmo antes de morrer, que tinha falado com Sara pela primeira vez num bordel. Aquilo chocou-o. Conhecia-a de vista, quando ainda dava aulas de semiótica numa faculdade do interior. Era sua aluna. Péssima, por sinal. Estava lá à conta dos pais, que queriam para a filha um futuro académico brilhante. Tratava-se bem, vestia roupa de marca e usava batom. Quando passava nos corredores e mexia no cabelo, contou-me Samora, abria-se uma fenda no espaço-tempo, na coerência-histórico-cronológica, um abismo na lógica e na ética generalizadas, e todos os homens pareciam que impelidos por um desejo carnal incontrolado, e os seus falos aumentavam de tamanho e atraiam-se como enormes e pulsantes agulhas de metal na presença de um íman gigantesco.
- Eu não era excepção – disse-me Samora, seis dias antes de morrer – E não se esqueça que me apaixonava todos os dias por uma mulher diferente. E ainda assim – pausou – por ela apaixonei-me todos os dias da minha vida.
Nada mais melancólico e patusco que ver o velho Samora desfazer-se uma declaração amorosa. Talvez por se sentir assim desfalecido, e com as suas emoções a descoberto, tenha morrido mais depressa. Se se matou ou foi acidente nunca o saberei, apesar de Sara me garantir que saber a verdade mas não me querer contar. 

Samora 8


Uma vez eu e Samora sentámo-nos a falar sobre a imortalidade.
- O maior problema do mundo é o seguinte: todos queremos viver mais. Veja os eficientes sistemas religiosos e esotéricos, todos prometem leis universais e infinitas, ou um descanso eterno qualquer. Que aborrecido, querer sempre viver tudo. Por que não morrer antes e aproveitar o que se tem? É a velha preguiça humana, que prefere ter dez anos sentados no sofá do que cinco a mexer-se pela vida. Depois ficamos com todos os velhos pendurados, inválidos, a jogar dominó nos jardins.
- Mas o avanço tecnológico é bom por natureza. As pessoas vivem mais e melhor. Não será isso uma vantagem?
- Seria se a maioria se matasse pelo caminho, mas para isso era preciso que as populações fossem altruístas e não são. À medida que vivemos mais reproduzimo-nos mais, e roubamos o trabalho aos nossos filhos e os nossos filhos roubam-nos o sustento a nós. É o ouroboro da serpente ou da pescadinha de rabo na boca. Tanto faz, peixe ou réptil vai dar ao mesmo.
- A solução?
- A solução já lha disse, rapaz. Não me ouve? É o genocídio ou a castração. Não há volta a dar, senão entupiremos o mundo. Ou tem uma ideia melhor?
- O respeito pelos mais velhos e a esperança para os mais novos – disse eu de queixo levantado.
- Ah, pois é – respondeu-me Samora com um dos seus sorrisos sarcásticos, bebendo da coca-cola e observando as próprias pantufas – já me esquecia disso. 

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Samora 7

 

Quando cheguei lá o velório tinha pouca gente. A um canto, uma velhota irrisória e sem dentadura parecia choramingar. Noutro canto, um homem de cinquenta e tal anos lia um livro pornográfico e observou-me com maus modos, como se a minha mera presença o incomodasse. Ao centro, o caixão de Samora tinha um ramo de rosas brancas em cima. Sara, com certeza. Ainda olhei em volta, espreitando a salinha com a máquina do café, mas nada. Tinha vindo e ido sem dizer nada a ninguém. Senti-me quase ofendido. Depositei o meu modesto ramo de flores sobre o caixão.

- É o senhor Gludon? – perguntou-me um vozeirão atrás de mim. Virei-me. Era o funcionário da funerária.

- O próprio.

- Como é?

- Como é o quê?

- Precisamos da sala, e aquela velhota não nos deixa trabalhar.

Fui até lá e sentei-me ao seu lado. A velhota olhou para mim com os olhos empapados em lágrimas e disse-me:

- É o senhor Gludon?

- Sou.

- Muito prazer.

Olhou para o caixão.

- O que diria o velho Samora nesta situação? Provavelmente alguma profunda reflexão sobre a existência humana, ou natureza, ou lá como ele dizia – olhou-me – Vocês eram amigos?

Disse que sim.

- Há pouco veio cá aquela mulher desprezível. De saia. Curtíssima. Aqueles pernões, esculturas pastosas e bronzeadas… Não me diga que também aprecia aquele tipo de mulher…

- De todo – menti-lhe.

- Samora dizia que se apaixonava todos os dias. Desonestíssimo. Sempre foi uma fraude com as mulheres.

- Acha que estava a mentir?

- Se acho? – a velhota observou-me de alto abaixo – Eu sei do que estou a falar, meu caro. Samora sentiu-se apenas atraído por uma mulher e uma mulher apenas. Eu.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Samora 6

Sete meses depois sentei-me com Samora e discutimos a pobreza.
- A pobreza é necessária – defendia Samora – para manter a felicidade. Porque pensas que todas aquelas pessoas dão trocos aos rapazinhos na rua que tocam instrumentos? Porque achas que se fascinam com os meninos africanos?
- Porque têm pena.
- Errado. A eles fascina-lhes a pobreza. Ter alguém inferior a nós relembra-nos da nossa própria posição na hierarquia das coisas. Nada como um menino cheio de moscas para dar valor ao nosso sofá e ao nosso microondas. E por isso a pobreza é necessária. Coloca as coisas em perspectiva e torna as pessoas melhores. Se um dia a pobreza acaba é o descalabro.
- Isso é injusto para o menino das moscas. Diria até cruel.
- Como poderá ser cruel? Ele não conhece outra realidade. Ele não tem sofá nem microondas, lembras-te?  Como pode estar triste com o que não tem?
- O ter é directamente proporcional ao entristecer.
- Bonita frase, meu caro amigo, e tão correcta quanto a tua infantil inteligência consegue imaginar. Mas errada. Ter é poder. O ter é sinónimo de felicidade, porque ter é bom por natureza. Senão, de onde vem o natural sentido possessivo da Humanidade? Não serão os impulsos naturais os mais puros e os mais verdadeiros? Já o dizia Guerfolg.
- Guerfolg?
- Filósofo nórdico – disse-me, com um aceno sem importância – O ter é bom, dizia eu antes de me interromperes, só se torna mau quando à nossa volta toda a gente tem na mesma ou em maior proporção que nós. Desde que haja alguns com menos, a vida é bela. Trata-se de uma comparação tão lógica que me admira ser dos poucos a defendê-la. Espanta-me mesmo.
Dali a uns dias reparei que Samora tinha pendurado a fotografia de um menino indiano pobre na parede do seu estúdio, ao lado da papelada do banco. 

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Samora 5

Sara fazia furor com toda a facilidade. Havia algo nela que até a mim despertava a mais pura e testosterónica luxúria masculina. Faziam-se de desinteressados, mas todos olhavam para ela quando passava e nessa noite, ao amar as suas esposas, fechariam os olhos e dariam largas à imaginação. Até eu.

Mas nunca o disse a Samora. Isso tê-lo-ia magoado imensamente, além de que com certeza me esmurraria como esmurrava todos aqueles que olhavam para Sara na sua presença. Samora objectivava-a, sem dúvida. Sara era a sua boneca favorita, e penso que ela gostava da sua posição. Um dia apanhei-a a dar-lhe de comer à boca. Morangos. Fiquei absolutamente extasiado e senti que a minha adolescência terminara naquele dia e começara a minha vida de Homem. 

Samora 4

Quando Samora tentava dormir e não podia agarrava-se à almofada e fantasiava com todas as mulheres com que se apaixonava. Já velho, contou-me que se apaixonava todos os dias por uma mulher nova. Bastava-lhe ir comprar o jornal ou passear pelo jardim ou viajar de autocarro.
- É tiro e queda, como diz o povo. Uma vez olho-a, olho-a segunda, e fico de queixo caído. A sua beleza, os seus cabelos, os seus olhos. Todos os dias encontro uma mulher com uma aura que a ultrapassa, e que talvez esteja em todas as outras mulheres. Ou só em algumas.
- É apaixonado pela Mulher, então, como ser abstracto e personificado em todas elas – resumi.
- Depende. Odeio mulheres gordas. Não as tolero, por mais inteligentes que sejam. Simplesmente me dão asco.
- Estava a dizer…?
- Estava a dizer que me apaixono e pronto. Vou para casa e fico a sonhar. Às vezes nem consigo ler nem escrever. Fico apenas a pensar, a despi-las com a imaginação. Isso faz de mim um pervertido, talvez? – não era bem uma pergunta, mais uma afirmação – Se não lhes conheço mais nada. Não sei sequer se sabem ler ou se gostam de peixe. Sei apenas que são belas e que as quero.
Tossiu longa e cavernosamente, e depois retomou a conversa.
- A mim as gordas dão-me asco mas fascinam-me também. Só não me apaixono por elas. Se me caem em cima? Fico esborrachado!
Soltou uma gargalhada pesada, deu um murro na mesa, desfaleceu por momentos e senti-o triste, como aliás costumava estar naqueles dias de chuva.
- Nunca tive uma mulher. E “tive” aqui significa ter, não possessivamente, mas sim como um marido tem a sua esposa, o namorado a sua namorada, o amante a sua amante. Uma mulher que me diga aquelas coisas porcas e belas aos ouvidos. Porque terá sido?
Bebeu da coca-cola e respondeu:
- Porque me apaixonava todos os dias. Elas ficariam com ciúmes.
- E Sara? – perguntei-lhe. Ele olhou-me com os seus olhos negros e baços como a um herético.
- E Sara quê? – bebeu da coca-cola e calou-se.

Frase Apropriada #2

 
“Eu sei”, respondi com vaidade. “E o resto?”
Rui Zink, O Anibaleitor
 

“Eu sei”, respondi com vaidade. “E o resto?”
- E o resto? Mal. Muito mal.
- Oh – fiquei todo desapontado, pá – Tens a certeza?
Cláusulos olhou-me de alto a baixo outra vez e levantou as sobrancelhas, como se fosse suficiente. Eu não percebi. Achava que estava mesmo muito bem vestido, e estava mesmo. Ele é que não percebia nada do que significava uma pessoa ser fashion. Tentei explicar-lhe:
- As calças usam-se assim, agora. A culpa não é minha.
- A culpa é tua se decidires usá-las dessa maneira.
- Que se passa, afinal? – perguntou a minha mãe, entrando no quarto. Cusca. Sempre a meter o enorme e borbulhento nariz onde não era chamada. De noite ficava acordada até tarde a rebentar borbulhas, e nas raras ocasiões em que era bem sucedida ficava com uma série de crateras no nariz e depois dava-lhe a vergonha de sair de casa para ir às compras. Mas também chorava quando tinha borbulhas. É aquela coisa de ser preso por ter gato e preso por não ter. Era um gato?
- Passa-se que és uma intrometida – respondi-lhe. Desde todas aquelas viagens ao psicólogo que tentava ser mais simpático com a minha mãe. A nossa relação não era a melhor.
- Não me fales assim – disse-me o nariz com borbulhas. Quando o nariz está assim só o vejo a ele. Como posso não ser rebelde e irresponsável quando tenho um nariz cheio de borbulhas como figura maternal? A psicóloga não percebe. Eu percebo.
- O que acha do aspecto do seu filho, senhora Princles?
O Cláusulos tinha essa mania de chamar a minha mãe de senhora, ou então de dona, como se nunca o tivesse apanhado a espreitar pela janela da casa de banho enquanto ela tomava banho.
- Acho que parece uma criança desfavorecida de um bairro social – respondeu o nariz – Puxa-me a cintura das calças para cima e ajeita o boné!
- O boné é a única coisa que se aproveita – opinou Cláusulos.
- O boné é apenas a cereja no topo do bolo – defendi-me – Também tu precisas de um boné para esconder essa cabeça de pepino.
O Cláusulos soltou uma gargalhada, e o nariz ficou ofendido por ter “vilipendiado” o meu melhor amigo.
- O melhor amigo é meu e faço com ele o que quiser – respondi, treinando a postura de rebelde. A camisa, convenhamos, estava um pouco curta demais. Mas via-se os boxers, e isso era o mais importante. Na minha escola nascia uma nova tendência à qual o meu tio chamava “putos com as cuecas à mostra”. Dava cãibras nas pernas, por que tinha de andar com elas arqueadas todos os dias para fazer atrito com as coxas e impedi-las de cair. Mas aumentava exponencialmente a minha virilidade aos olhos das gajas, e isso é coisa que não tem preço. Além disso, podia mostrar os meus boxers giríssimos com bonecos que tinha comprado há duas semanas em Badajoz.
O nariz, claro, não o compreendia. No tempo dela tinha-se apaixonado pelo meu pai não por ele andar bem vestido, mas porque usava óculos de fundo de garrafa e sabia resolver equações. É o tipo de coisas que sempre excitou o nariz, se bem que desde que vai ao ginásio às quintas feiras descobriu que também gosta de mulatos musculados. Ei, se calhar é por isso que o Cláusulos anda na musculação…
Esse é outro. Tem um crânio gigante, é muito bom aluno, tem duas namoradas ao mesmo tempo, uma delas surda-muda com a qual “nunca desenvolveu problemas de comunicação” (palavras dele, não minhas), e é daquelas figuras de que os pais gostam logo. Vá-se lá saber porquê. Tem aquele travo de menino responsável e que veste sempre cuecas lavadas todos os dias, mas é tão depravado como eu em relação a tudo e mais alguma coisa. Não sei se já vos disse, mas ele espreita a minha mãe pela janela enquanto ela toma banho.
- O Cláusulos tem razão – surpreendeu-me totalmente a minha mãe, sempre a dar-me razão e nunca aos meus amigos tão depravados como eu – Devias vestir-te como um homenzinho.
- Eu estou vestido como um homenzinho – respondi.
- Se me explicares o conceito por trás desse novo look eu dou a mão à palmatória e peço-te as mais sinceras desculpas.
Só mesmo o idiota do Cláusulos para usar uma expressão estrangeira, um dito popular, a palavra “conceito” e uma expressão bem educadinha tudo na mesma frase. Que é isso da palmatória, afinal? Como se lhe dá uma mão?
- Não tem de ter conceito nenhum, Cláusulos – respondi – Trata-se de individualidade pessoal e intransmissível.
- Como os passes sociais.
O nariz borbulhento soltou uma gargalhada parva.
- Fica bem e pronto. Não tenho de me justificar. Se as pessoas não gostam de ver a minha roupa interior, eu gosto. Eu gosto de mostrar as minhas intimidades. E ademais – era uma expressão espanhola que tinha apanhado num filme visto em Badajoz, porque naquela terra os filmes são todos dobrados e até o Harrison Ford fala castelhano – Andar com as pernas arqueadas dá estilo. Repara.
Caminhei pelo quarto, com cuidado para que o cinto não deslizasse coxa abaixo. Ainda estava a treinar-me, mas ficava progressivamente melhor. Já era capaz de atravessar o corredor da sala sem ter de dar um puxão para cima nas calças.
- Além disso – acrescentei, tirando o boné – Estou a tratar do meu penteado.
O meu cabelo assemelhava-se agora a um pedaço de contraplacado pendurado pela testa, que me tapava os olhos até ao nariz.
- Isso também dá estilo? – perguntou Cláusulos.
Eu apontei para o cabelo retoricamente, e levantei o queixo para lhe poder ver a cara por entre o meu cabelo cuidadosamente passado a ferro. Parecia-me óbvio. Cláusulos riu-se, a minha mãe também, e eu levantei a cabeça bem alto (por orgulho em mim próprio e na minha individualidade, e não porque não conseguia ver nada à frente), arqueei as perninhas e saí do meu próprio quarto, preparado para conquistar o mundo.
Depois cresci, cheguei a adulto, e quando vejo fotografias de mim naquela altura pergunto-me como poderia ser tão idiota.

terça-feira, 14 de junho de 2011

Samora 3

Um dia eu e Samora sentámo-nos a discutir o fim do mundo, e chegámos à conclusão de que não chegaria rápido o suficiente.
- Aquilo que vale a pena destruir está lentamente a desaparecer – defendia Samora – As desigualdades, as mortes por doenças simples, as guerras estúpidas, as teocracias.
- Então e África? E Israel?
- Acha que isso vale a pena destruir?
Calou-me por momentos.
- Não, de todo. A ideia do mundo a terminar é algo que me aflige.
- Não será assim tão cedo, infelizmente. Sempre tarde demais. Por uma vez o Universo seria coerente: tudo o que é bom atrasa-se e tudo o que é mau demora-se.
- Sofreremos?
Samora deu um gole na sua coca-cola.
- O suficiente, espero eu. Seria justo.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Frase Apropriada #1

 

Nova rubrica. As regras são simples: pego num livro qualquer, escolho uma página e uma frase totalmente aleatória e com ela começo a escrever uma história. Vamos ver no que dá a primeira experiência.

 

No trajecto para a casa de minha ex-mulher, a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgência urinária.

Chico Buarque, Estorvo

 

No trajecto para a casa de minha ex-mulher, a sede que eu tinha foi suplantada por atroz urgência urinária. Talvez fosse essa a consequência lógica da possibilidade muito real de a voltar a ver, depois de todos aqueles longos e sofridos dias. Lembro-me de pouco, muito pouco. Discutimos, disseram-se coisas, arremessaram-se objectos, umas verdades aqui e ali, uma ou outra mentira dita friamente, só para magoar o outro. Quando dei por mim acordei num sofá que não era o meu, e o meu amigo Carlos estendeu-me uma chávena de café e disse:

- Toma que bem precisas.

Contou-me que me apanhou bêbado e demente à sua porta, cantando Roberto Carlos e chorando o desaparecimento de Sofia. Urinei nas calças, como se tornara meu hábito sempre que me via em situações de aperto, e adormeci na banheira enquanto Carlos me tentava acordar com água fria.

- E depois?

- Depois arrastei-te para aqui, tirei-te as botas e ficaste a roncar até agora.

- Não trabalhas?

- Já fui e já voltei, são quatro e meia.

Liguei-lhe dez minutos depois e ninguém atendeu. Voltei a tentar e nada.

- Vou até lá.

Carlos impediu-me, aconselhou-me um pequeno almoço e um banho quente para acalmar. Depois sentámo-nos a conversar e procurei contar-lhe o pouco que recordava.

- Estavam bêbados?

- Nessa altura ainda não. Foi só depois de ela me falar do Outro.

- Noto aí uma maiúscula.

- Porque não é um outro qualquer, é o Outro. Um tipo enorme, musculado, que conheceu num ginásio. Sabe fazer sushi, trabalha como massagista, nos Verões vai para África construir escolas e pinta modelos nus. Um daqueles homens que desafiam o nosso género e lhe ultrapassam os estereótipos comuns. Disse-me que o sexo era incrível, que ficava sem fôlego e que com ele não precisava de fingir coisa nenhuma. Eu atirei-lhe um prato ao chão e comecei aos berros.

- Foste tu, portanto, o catalisador.

- Nada disso. Ela sugeriu tudo primeiro. Disse-me. Como foi? Ah, já me recordo. Disse-me, “O que sentia por ti desapareceu, André. Restam-me dores lombares de dormir na esquina da cama por causa dos teus pontapés. E as meias, André, as meias!”

- Quais meias?

- As que deixo sempre no chão da casa de banho. Contei-te? O Outro tem uma máquina de lavar de cinco velocidades.

Bebi o resto do café num trago.

- E que te resta?

- Resta-me ofendê-la mais um pouco – respondi, e recomecei a chorar.

Carlos foi um bom amigo, deixou-me lá ficar uns dias. Fomos sair na sexta-feira, conheci uma rapariga agradável. Era fotógrafa, e não parecia ter qualquer problema com o volume da minha barriga. Houve química. Trocámos números. Quando cheguei a casa tinha uma mensagem de Sofia no atendedor de chamadas. Dizia que queria o divórcio e que precisava que fosse lá a casa tirar a minha secretária de pinho. Era uma construção enorme, confortável, onde guardava os meus papéis. Ocupava o quarto do meio de uma ponta à outra, e o Outro queria com certeza instalar lá uma máquina para fazer batidos de proteínas.

A noitada anterior deu-me uma cede enorme. Bebi sete copos de água, olhei as horas. Carlos saira para trabalhar há minutos, o que significava que tinha a casa só para mim. Telefinei a Sofia, propondo um encontro em terreno neutro. A casa de Carlos. Ela disse-me que não, que lá fosse eu a casa porque já tinha metido as minhas camisas numa mala de viagem.

Fui. Quando lá cheguei o Outro abriu-me a porta, um negro absolutamente perfeito com uns lábios do tamanho de um bife e cara simpática. Nem parecia que estava a cumprimentar o gigante que me tinha roubado a mulher. Apertou-me a mão. Que dedos fenomenais! Reparei que tinha as unhas bem cortadas e limadas. Disse-me que Sofia estava à minha espera e lamentou o constrangimento.

Entrei na sala e o Outro, que se chamava Danilo, fechou a porta atrás de si para “nos deixar a sós”. Sofia estava a um canto, dando de regar às plantas e a fumar uma das suas cigarrilhas compridas.

- Como queres fazer com a secretária? – perguntou.

- Porque o trouxeste cá para casa assim à pressa? Nem assinámos nada, nada está definitivo.

Olhou-me com risota.

- Estou a ver se o teu cheiro a sovaco desaparece das toalhas de banho rapidamente. O Danilo tem um aroma exótico excelente, cheira a praia africana.

- De onde trouxeste todo esse sarcasmo, Sofia? Que nos aconteceu?

- Queres pedir-me desculpa?

- Desculpa? Trocaste-me por um negro lindíssimo!

- Com o qual nunca conseguirás competir. Contei-te que ele me leva ao céu cinco vezes ao dia?

- Por isso mesmo, não me estás a dar a mínima hipótese de redenção.

- André… - caminhou até mim, depois de pousar cuidadosamente o regador em cima de uma mesinha – Tu és realmente um pequeno rato amestrado. Olha para ti, com a profunda necessidade de me pedires desculpa por eu te ter traído com um homem perfeito. Dás-me pena!

- Querem tomar alguma coisa? – perguntou Danilo, enfiando a cabeça pela porta.

- Uma água tónica, por favor – disse Sofia, enviando pelo ar um beijo piroso. Danilo sorriu-lhe e assentiu. Que dentes branquíssimos!

- Se me dou a esta humilhação é porque te amo e porque desejo voltar, Sofia. Dá-me uma oportunidade.

- Dei-tas todas – espetou a cigarrilha no cinzeiro e preparou-se para acender outra – Mais do que uma vez, até. Agora chega. Nem é pela questão da traição, isso é o mesmo. Traí-te tantas vezes e tu não deste conta. Agora é pessoal. Agora sou eu que não te quero ver mais, e que te considero miserável. Compreendes?

Compreendia. Até eu partilhava daqueles sentimentos para comigo mesmo. Danilo chegou com uma água tónica fresquíssima, preparada num copo com gelo e limão. Beijaram-se longa e sensualmente, e as mãos de Danilo pareciam as de uma estátua de madeira negra à volta das nádegas de Sofia. Quase cabiam dentro do punho fechado dele. Que construção fantástica! Daria um óptimo modelo fotográfico.

Vim-me embora cabisbaixo, com pouca vontade de ligar à fotógrafa simpática da noite anterior. Estava já a descer as escadas quando Danilo que fez parar com um aceno e um sorriso. Queria ajudar-me a levar a secretária de pinho para baixo.

domingo, 12 de junho de 2011

Samora 2

A semente do menino era quente, e soube-lhe que nem gingas. Já o tinha feito com outros rapazes da vizinhança, mas aquele tinha um sabor especial. Era um daqueles virgens frustrados, pequenos, de óculos, que leva pancada na escola e espreita a prima enquanto toma banho. Coisita pequenina, irrisória, de rápido disparo e flácido retorno ao estado natural. Havia nele uma ingenuidade que deixava Sara fascinada. Não sabia o que estava a fazer, e contava que ela soubesse. Ela sabia, mas fechava os olhos, gemia aqui e ali, elogiava-lhe os gémeos, dizia-lhe coisas inocentes mas que ditas assim, por aqueles lábios, pareciam conversa de sedutora nata. O rapazito estava maravilhado, nem cabia em si. Puxou os calções para cima e começou com a sua ladainha habitual, que a mamã estava à espera, que tinha se correr para casa senão levava. A Sarinha disse que tinha pena de ele ter de se ir embora, porque tinha sido um garanhão. Quereria namorar com ela? O rapazito quase caiu de cima das próprias canelas, e Sara riu-se. Envergonhado, o menino correu porta fora e voltou para casa. A Sarinha deixou-se estar mais um pouco, depois puxou a saia para baixo e foi para a rua correr.

Sardet no coração


Estudemos com cuidado aquela que considero ser, na minha modesta opinião, a pior música portuguesa alguma vez feita (e incluo Quim Barreiros e Toy nesta classificação, apesar de não merecerem). Trata-se do último sucesso desse Tony Carreira da classe média alta chamado André Sardet, mais conhecido por ser o autor de outras dezenas de baladas igualmente responsáveis pelo declínio do bom gosto musical português.
A música é a típica ladainha repetitiva e aborrecida ao piano, semelhante às lamúrias adolescentes que um jovem pianista poderia compor para a sua amada; e a letra não destoa. Veja-se a beleza desta estrofe:
Todo o beijo que é roubado,
Tem mil anos de perdão,
Só se for guardado junto ao coração
Sardet é obviamente a autoridade máxima em piropos românticos. “Envolver-te num abraço / Ver o dia madrugar” é igualmente sofisticado; e para tornar tudo mais internacional, Sardet utiliza “dié”, que é uma expressão que todos conhecemos e que se traduz por “fim”. Como no cinema. Percebem? Sim, é sofisticado demais. Por isso, Sardet ajuda o ouvinte:
Faço uma cena
Como vi lá no cinema
Não se trata de nada específico, é apenas “uma cena”. Reparem como nos desperta a imaginação. O que será? Um anel? Um ramo de flores? Um estalo? E é lá no cinema, e não no cinema simplesmente. Um cinema abstracto seria demais, até porque tornaria o verso coxo e sem ritmo. Mas tal é compreensível. Compor uma música de tamanha complexidade e originalidade já é obra, quanto mais querer que a letra nela se encaixe! Talvez por isso Sardet conceda a si próprio uma criativa utilização da língua portuguesa. Veja-se como pronuncia “esperança” (“xprança”), logo nos primeiros segundos de música. Ou mesmo a “chávna de café” de onde Sardet bebe o amor de não sei quem.
Aliás, toda a narrativa tem um carácter épico. Sardet deseja entrar pela casa de uma pessoa para que esta “lhe diga como é”, e ao mesmo tempo “dizer tudo o que sente”. Desta vez é mesmo a sério, o que significa que já lhe mentiu antes e sabe que merece ouvir “como é”. No entanto, e apesar de mentiroso, Sardet sente-se no direito de lhe beber o amor (vão só tomar café, eu sei, mas é mais romântico do que isso. Se uma gaja prepara uma caneca de café ao gajo que lhe mentiu anteriormente e agora lhe entra pela casa adentro é porque lhe está a dar o seu amor. Até aí percebo) e de dançar com ela na varanda. E além de lhe sujar uma caneca, vai fazer “uma cena” e roubar-lhe um beijo, o que visto no contexto pode ser um eufemismo para uma violação.
Roubo-te um beijo,
Depois de roubado é meu
A falácia lógica é secundária quando falamos de algo tão belo (veja-se a mesma lógica aplicada a “Roubo-te a carteira / depois de roubada é minha”). Não se trata de um beijo qualquer. Ele vai guardá-lo “junto ao coração”, portanto, algures na cavidade torácica, e isso significa que o gajo gosta mesmo da sua gaja. É, digamos, uma forma de lhe agradecer o amor que bebeu da chávena. Sim, poderá sempre parecer mais uma daquelas ladainhas asquerosas que os cantores românticos compõem para delírio das fãs, mas isso seria desrespeitar o trabalho de Sardet. E isso não pode ser. Tratar assim um homem com tanto amor para dar não é só cruel, mas também exagerado. Em tenho xprança que Sardet, um dia, seja capaz de compor algo decente.
O que dizer de alguém que paga as suas contas com tamanho assassinato ao bom gosto? Nada. Fará sucesso, como todos os maus letristas e músicos portugueses. As pessoas não gostam de boas letras, porque essas exigem possuir neurónios para as analisar e apreciar. Preferem a ordenação desprezível e quase aleatória de “beijo”, “amor”, “quero-te não sei quantas vezes ao dia” e outras enormes inovações no panorama romântico mundial.

sábado, 11 de junho de 2011

Samora 1

Sobriamente, a Morte chegou ao cruzamento, sentou-se e esperou. Dali a sete minutos, número divino que hoje receberia outra carga mais negra, um indivíduo esquisito que conduzia uma carrinha de caixa aberta e transportava consigo uma tartaruga, uma criança pequena e uma caixa de sapatos iria espetar-se contra aquele sobreiro, aquele ali ao fundo, sim, por baixo da ponte e logo depois da ribanceira. A carrinha iria sair disparada da estrada, escorregando em alguma superfície pastosa que estivesse esquecida na estrada, e voaria sete metros (o número, outra vez, sempre o número) até ao seu último destino. A ambulância chegaria ao local catorze minutos depois (é só dividir por dois) e declararia todos os passageiros da carrinha falecidos, até a tartaruga. Era para isso que a Morte lá estava. Pela alma da tartaruga. As almas dos outros dois não lhe interessavam.

No princípio era o Verbo, mas esquecemo-nos que devemos sempre começar pelo sujeito. O Quem é, por vezes, mais importante que o Quê. Samora só se iniciou neste tipo de reflexões muito mais tarde, anos depois de ter quase morrido na ribeira da aldeia. Crescera com os pais e com os avós, todos a dormir no mesmo quarto como galinhas, e ali ganhara uma total aversão aos outros e a si mesmo. O seu suor misturava-se com o suor da mãe e do pai e do irmãozinho. Não era por serem pobres. Isso não lhe fazia confusão nenhuma. Ser pobre é uma virtude, basta ver a quantidade de ricos que, corrompidos como estão pelo dinheiro, se esquecem das suas próprias origens humildes e compram quadros e mamarrachos a que chamam Arte (com maiúscula, porque sem ela não o é) em vez se tirarem da lama os seus próprios colegas de escola primária, todos sujos e de mãos gretadas e dormindo na mesma cama no mesmo quarto miserável da mesma casota por trás da mesma colina solitária. Não era por serem pobres, era por serem muitos. Samora queria ser uno, uno apenas e não uno más, como diziam os meninos espalhóis com quem brincara. Em vez disso, era um dedinho na conta que deus fez. Por isso pensou muito cedo em matar-se, porque a ideia de ir para o campo com os avós e crescer a colher couves e deixar crescer o buço ultrapassava-lhe a sensibilidade. Deixava-o doente. Queria ser uma epopeia personificada, um viajante branco e límpido que viria do futuro ser mais do que qualquer outro herói tinha sido nas grandes viagens, no tempo em que os homens andavam de toga e eram todos rabetas. Samora sonhava com Platão e com Sócrates e com todos os gregos e romanos e monges e iluminados e renascentistas, e sonhava também ele, Samora de seu nome, constar num desses índices de génios únicos e unos da História. Daí a aversão às couves, e daí tanta porrada naquele rabo pequeno quando se fingia doente, ou fugia do campo para ir para baixo da janela da escola ouvir a lição e tentar ser alguém. As mãos sujas do pai agrediam-lhe a inocência e mastigavam-lhe os músculos de menino, e portanto cresceu chorando e queria morrer sorrindo. Atirou-se de cabeça para dentro da ribanceira, na esperança de bater logo com ela numa pedra e ir daquela para melhor. Teve azar. Bateu com a cabeça nas algas, ficou enrodilhado, o pânico tomou-lhe os bracinhos e começou a chapinhar como um gato a afogar-se. Chamou a atenção dos compadres do pai, que o viram ali caído e foram em seu socorro. Quando lhe perguntaram porque tinha mergulhado na parte mais funda não explicou que queria morrer, até porque ninguém o ajudaria se ajuda lhes pedisse. Não lhe restou outra alternativa senão sobreviver, e aproveitar a primeira oportunidade que teve para se fazer à estrada e partir dali para longe. Porque é que nunca se tentou matar outra ver era pergunta que nunca lhe assolou a mente, especialmente agora já adulto. Mas que se arrependia de não ter morrido naquela tarde na ribeira, ai isso arrependia.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

O Pepino Assassino

A noite estava fria e escura quando…
 
- Não, não, não – disse a Consciência – não vais fazer isto.
Como assim, isto?
- “O Pepino Assassino”?
É o título da história.
- Um pouco previsível, não achas? Não vais fazê-lo. Seria brincar com coisas sérias.
Com coisas sérias? O que há de menos sério que um legume assassino?
- Legumes, aliás.
Ainda mais sério fica… Um gang de legumes!
- Trata-se da morte de gente inocente. Não brincarás com tal coisa.
Eu não ia brincar com a morte de pessoas, apenas com a ideia de haver legumes assassinos. Parece-me obviamente diver…
- Ora aí está um advérbio certeiro e necessário, para variar. Seria demasiado óbvio!
Então não se trata de uma questão moral ou ética, mas simplesmente um potencial vazio de conteúdo…
- Lê-me como quiseres. Estou aqui para evitar que faças disparates. Talvez dando uma volta à coisa…?
Uma volta?
- Sim, uma volta. Tu é que és o Autor, inventa qualquer coisa.
Mas a piada era essa, ser simplesmente um legume assassino.
- Isso não é simples, é complexo. Como mataria as suas vítimas?
Apepinando-as.
- Inventaste esse verbo hoje?
Ah ah. Sim. Porquê?
- Tem potencial. E o que significa exactamente apepinar uma pessoa?
Significa isso mesmo, atingir-lhes com um pepino com uma frequência e intensidade que a conduzam a lesões externas ou internas que conduzam por sua vez ao falecimento da vítima.
- E como se locomove esse pepino assassino?
Com as suas muitas seivas e assim.
- Tu gostas de ciência e de ser rigoroso. Não poderias inventar algo melhor?
Talvez possa ser um pepino radioactivo, vítima de uma descarga de urâneo-125 de uma fábrica militar norte-americana.
- Ah, isso explica tudo.
E explica mesmo. Com tamanha radiação, houve uma reorganização do material genético no núcleo das células do pepino, conduzindo a drásticas mudanças no seu fenótipo. Resumindo, ele consegue agora saltitar até à casa das vítimas e matá-las com algumas pepinadas bem aplicadas na cabeça.
- Agora o pepino tem conhecimentos de anatomia e medicina?
Claro que sim. A radiação transformou-o não só num pepino super-forte como num pepino super-inteligente.
- Isso faria dele um vilão internacional
E porque não? A conquista do mundo pelas mãos de um pepino.
- Pelas mãos de um pepino… Como quererás tu ser levado a sério?
As minhas desculpas, então.
- Mudaste de ideias?
Mudei.
- E que fazer agora com o título?
Deixá-lo. Poderá atrair leitores de mau gosto, que acabarão por ler o resto do texto sem saber que em nenhuma ocasião lerão a história do pepino assassino.
- Isso faz de ti uma fraude criativa.
Talvez, talvez.
- Sendo assim o meu trabalho aqui está feito.
Boa noite, então.
- Boa noite e até à próxima.
Foi um prazer
- Igualmente. Vá, adeus.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A noite estava fria e escura quando a mulher acordou para ir beber água. Nesse preciso momento…
Ah, agora já não funciona.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Alô – post pessoal

Hoje dei por terminada a semi-final versão da minha curta metragem de final de curso. Pimba. Faltam uns retoques no som, mas com tranquilidade. Terminaram também os testes, restam apenas os exames e a candidatura à faculdade mas quer um quer outro não me vão roubar tempo para escrever aqui no blog.
Entretanto tenho andado atarefado com um projecto em parecia com uma senhora doutura chamada Mariana Fernandes, que vai ser (se ela deixar) disponibilizado aqui para todos verem e lerem e apreciarem e mostrarem aos amigos e às tias.
Ainda nas notícias: estou a desenvolver um Projecto Misterioso e a preparar uma nova série semelhante ao “Smith e as Sereias” para publicar por aqui. Portanto, ando ocupado. Além disso, pretendo começar a ver filmes que nem louco e a dormir que nem um bebé gordo e nutrido.
Até lá, cumprimentos aos setecentos mil leitores diários.
O Autor