domingo, 31 de janeiro de 2010

A Fada dos Dentes existe, e eu posso prová-lo

Eu sei que pode parecer estranho, mas vou tentar provar-vos que a Fada dos Dentes existe. Não só tenho provas suficientes para o demonstrar, como espero sinceramente que no fim deste post sejam capazes de admitir que a vossa ridícula negação de algo tão óbvio é infundada e ilógica.

Todos nós já experenciámos a Fada dos Dentes, de uma forma pessoal e directa. Em pequenos, quando perdemos os dentes de leite, somos encorajados pelos nossos pais a colocá-los debaixo da nossa almofada porque, dizem os nossos pais, a Fada dos Dentes virá colectar os nossos dentes e trocá-los por prendas ou dinheiro. Aqui está o primeiro argumento para a existência da Fada dos Dentes: porque é que os nossos pais nos iriam mentir? Teriam razões para o fazer? Os nossos pais gostam de nós, preocupam-se connosco e querem proteger-nos. Porquê, então, alimentar em nós uma crença fútil e infundada? Estão a dizer que todos os pais de todas as crianças do mundo são mentirosos cruéis?

Quando finalmente colocamos um dente debaixo da almofada pela primeira vez e adormecemos calmamente, temos algum medo do que possa acontecer. Como será que a Fada dos Dentes fará a troca? Poderemos senti-la? A verdade é que (e aqui entra a segunda prova da sua existência) a Fada dos Dentes troca o nosso dente (do qual ela fará um fantástico uso, e por isso nos recompensa) por dinheiro ou por uma prenda de forma tão subtil e mágica que não o sentimos durante a noite, muito menos podemos explicar como o fez. Não há nada no nosso quarto ou na nossa casa que possa alguma vez facilitar a entrada de um ser mágico sem ser visto ou ouvido; isto porque, obviamente, a Fada dos Dentes está fora das normais formalidades físicas em que vivemos. Para a Fada dos Dentes não há portas fechadas nem trancas nem escadas a ranger: há simplesmente o carinho por nós.

Porém, reparem, ela podia simplesmente levar-nos o dente e ignorar-nos completamente; no entanto, ela ama-nos de uma forma tão fantástica que está disposta a recompensar-nos o gesto de lhe dar o nosso dente. Isto demonstra claramente que a Fada dos Dentes nos ama; porquê, não-crentes, ignorar um amor assim? Estarão zangados com a Fada dos Dentes? Terá havido uma ocasião nas vossas vidas em que não receberam, em troca do vosso dentinho, o presente desejado? Porquê negar assim a óbvia existência de um ser que vos adora? Como acham que a Fada dos Dentes se sentirá ao saber disto?

Portanto, vocês acordam de manhã e o dente já lá não está; melhor, em vez dele, está uma nota, uma prenda, ou algo que vos traz alegria. Esta é a melhor demonstração física do poder e influência da Fada dos Dentes, e que não pode ser negada. Os não-crentes não podem provar que a Fada dos Dentes não fez esta maravilhosa troca, da mesma forma que não podem provar que ela não existe. Porquê inventar outra explicação quando a verdade é tão bela? A Fada dos Dentes vem, leva-nos o dente e deixa-nos uma prenda. Que mal há nisso?

Os não-crentes acreditam não na Fada dos Dentes, mas sim que são os nossos pais quem faz a troca do dente pelo presente; apesar, claro, de todas as evidências já apresentadas. Tentam ainda revelar a minha suposta "falácia" com a seguinte sugestão: Se estás tão certo que a Fada dos Dentes existe, então porque não testá-la? Sugerem eles colocar uma criança a dormir num quarto controlado, em que ninguém pode entrar ou sair, e repleto de câmaras de vigilância nocturna e outros sistemas de controlo de movimento. Pretendem eles, com esta ridícula parafernália supostamente científica, mostrar que se nenhum pai entrar no quarto da criança para fazer a troca, a criança acordará dali a umas horas com o dente debaixo da almofada. Isto, dizem eles, prova que a Fada dos Dentes não existe, e que são os pais os responsáveis pela troca!

Que ridícula suposição! Mesmo que esta experiência seja levada a cabo (e já foi, por uma equipa de mal intencionados cientistas que dedicam as suas carreiras a destruir os sonhos e esperanças a todas as crianças do mundo) e mesmo que os resultados apontem para que 1) sempre que ninguém entrar no quarto para realizar a troca essa mesma troca não acontece, e 2) não há nenhuma actividade registada no quarto em todos os casos em que a troca não é efectuada com sucesso e em que nenhum adulto entra no quarto, isto NÃO prova a não existência da Fada dos Dentes!

Senão vejamos: Nos casos em que nenhum adulto entrou no quarto para trocar o dente pela prenda, os não-crentes estão à espera de ver as suas câmaras e outros aparatos electrónicos captar a mágica presença da Fada dos Dentes. Enganam-se! Porque iria a Fada dos Dentes mostrar-se de forma tão flagrante e gratuita, só para que uma elite de intelectuais fique satisfeita? A Fada dos Dentes tem muitos outros dentinhos para coleccionar, vindos de pessoas honestas e que não só acreditam nela, como não duvidam da sua existência. A Fada dos Dentes prefere estar na companhia de quem a ame e queira ajudar, não num laboratório a provar a sua existência para a satisfação de alguns que não acreditam porque não querem!

Os não-crentes argumentam ainda que é necessário um adulto entrar no quarto e efectuar a troca para que a criança, de manhã, acorde sem o dentinho debaixo da almofada e com a prenda ao seu lado; e que isto, de alguma forma, prova que são os pais os responsáveis únicos pela troca e não a Fada dos Dentes! O problema que os não-crentes, na sua mentalidade fechada e reduzida, não conseguem resolver, é o seguinte: os pais das crianças são o mecanismo que a Fada dos Dentes utiliza para efectuar as trocas! Não interessa se podemos provar que há alguma coisa física, material ou natural a provocar um fenómeno: esse processo físico é a forma que a Fada dos Dentes utiliza para comunicar com o mundo material em que nós, limitados humanos, vivemos!

Não só cobri todas as provas empíricas e científicas que comprovam a existência da Fada dos Dentes, como provei conclusivamente que os argumentos dos não-crentes, se bem que aparentemente fundamentados, não passam de acusações e especulações. Teorias! Porque não poderão os não-crentes simplesmente aceitar a Fada dos Dentes, em toda a sua beleza e majestade, e parar de tentar provar a sua não existência? Porquê estragar a infância a tantas crianças só porque VOCÊS não conseguem lidar com a verdade?

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Mais um estudo científico a culpar a televisão e desculpar os pais

Um novo estudo científico sobre o consumo de produtos multimédia nas camadas mais jovens declara que o jovem médio, dos 8 aos 18 anos, consome em média 7h e meia deste tipo de produtos por dia. O estudo faz várias projecções ridículas e catastróficas, mas a sua metodologia soa estranha e duvidosa:

Os dos 8 aos 18 anos passam mais de sete horas e meia por dia de volta desses dispositivos (...) e como muitos deles são virtuosos da multitarefa (por exemplo, navegar na internet e ouvir música), concentram nessas sete horas e meia quase 11 horas de conteúdo multimédia.

Que raio de critérios são estes? Segundo esta metodologia, se eu estiver no meu quarto a navegar na Internet, ouvir música, de televisão ligada e a falar ao telemóvel durante uma hora, estou a consumir 4 horas de produtos multimédia! Ou seja, se eu passar 5 horas a ouvir música, navegar na Internet, falar ao telefone, de televisão ligada e a jogar Gameboy, consumo 25 horas por dia de produtos multimédia!

Espera, 25 horas por dia?

Talvez seja daqui que surge o exagerado título da notícia:

(tan tan taaan)

ONDE ESTÁ O SEU FILHO? DEVE ESTAR ONLINE HÁ MAIS DE 11 HORAS

Qualquer pessoa de bom senso percebe que é impossível estar 11 horas online por dia; a não ser que se trate de um adolescente que não vá à escola, ou que durma 3 horas por dia. Há casos desses, mas são raros. A generalização não é simpática.

O estudo diz ainda:

O estudo (...) revelou que o consumo de media pelos jovens cresceu muito mais nos últimos cinco anos do que entre 1999 e 20004, à medida que a tecnologia móvel sofisticada, como os iPods e os smart phones levaram o acesso aos media até aos bolsos e às camas dos adolescentes

O que, de certa forma, cola com isto:

"Os pais nunca sabem tanto como pensam sobre o que os filhos andam a fazer, diz Roberts (um dos autores do estudo), mas agora criámos um mundo em que eles estão muito mais afastados de nós e os pais não fazem ideia do que os filhos estão a ouvir e a ver nem sobre o que falam".

Segue-se uma comovente história de uma mãe que teve de impor limites ao filho quanto a horas ao computador, e oportunidades de jogar em consolas. Diz a autora do estudo:

Não acho que os pais devam sentir-se incapacitados (...) Podem continuar a estabelecer regras e isso ainda marca a diferença"

O que o estudo não parece compreender é que a culpa deste "mundo" em que vivemos é dos pais. Um miúdo do sétimo ano só tem uma Playstation e um smartphone se os pais lho derem. São os pais os principais fornecedores de todos os mecanismos modernos de consumo de produtos multimédia. A culpa não está "neste mundo" cheio de tentações para os miúdos, que afastam os filhos dos pais; está na ignorância e inactividade parental ao lidar com a realidade. Um pai ou uma mãe que deixem o filho, desde pequeno, habituar-se a horas e horas de consolas e televisão por dia, e não invista o suficiente na sua relação pessoal com os seus filhos, está a atirar as responsabilidades para outro lado. Se os vossos filhos chegam aos 15 anos a preferir uma consola à companhia dos pais e dos amigos, é porque foram habituados a isso. É porque com certeza receberam todos os jogos e gadgets modernos que pediram no Natal, e porque vocês, pais, lhes artilharam o quarto com televisões e Internets.

Vitimizar os pais, e colocá-los na posição de "educadores perdidos que não sabem muito bem o que fazer com o filho rebelde e anti-social", é tratá-los como crianças e culpar os canais de televisões e as empresas de jogos pelo seu insucesso como educadores.

E além disso, o estudo não faz a distinção entre os conteúdos que as crianças vêem. Eu passo horas na Internet, ou a ver filmes. Caramba, por esta metodologia esquisita também devo ter umas 34 horas por dia de consumo multimédia! Isso não faz de mim um idiota anti-social e com más notas, porque sempre fui educado de maneira a desenvolver um sentido de responsabilidade. Quando tenho de estudar, estudo, não vou jogar consola. As horas que passo a ver televisão ou na Internet (e que, a propósito, são passadas maioritariamente a fazer pesquisas sobre temas vários ou a ler sobre diferentes assuntos) não são factores no meu sucesso ou insucesso escolar, muito menos nas minhas capacidades sociais. Lembro-me de passar doze horas seguidas a jogar Playstation quando era mais novo, durante as férias de Verão. Mal saía do quarto. Isso não me transformou num obeso desempregado. Tenho amigos, dou passeios, vou ao cinema, pratico danças de salão; mas se me apetecer, passo uma tarde a ver vídeos no Youtube, ou a mandar mensagens escritas.

O problema destes estudos é que tratam os jovens como uma massa indistinta e homogénia, vítima de um fantástico mundo novo de tecnologias exageradas; e no meio, estão os pais, os cavaleiros da justiça e moralidade, lutando contra a maré do modernismo para salvar os seus filhos da desgraça. Isto não é verdade. Culpo os pais, sem receio de eu próprio cair numa generalização, porque são eles os responsáveis quer pela educação dos seus filhos, quer pela quantidade de gadgets que eles têem no quarto. O próprio estudo não diz nada tão directo como isto, mas sublinha o que estou a defender:

O estudo constatou que os jovens usam menos media em lares onde há regras como televisão desligada durante as refeições e nada de televisores nos quartos, ou com limites de tempo

Cá está. Surpreendentemente, um lar com pais responsáveis obtem crianças menos alienadas.

Para terminar, sublinho a estranheza deste estudo com dois parágrafos retirados do artigo:

Embora a maioria dos jovens objecto do estudo tivessem boas notas, 47 por cento dos mais intensos utilizadores de media (...) tinham, na maioria, notas sofríveis ou más, comparados com 23 por cento dos que consomem três ou menos horas. Os maiores utilizadores de media tinham mais probabilidades do que os seus congéneres moderados de se declararem aborrecidos ou tristes, de se meterem em sarinhos, de não se darem bem com os pais e de não serem felizes na escola.

E, depois de implicar uma co-relação entre "horas de consumo de media" e "sarinhos, más notas e aborrecimento e tristeza", o artigo acrescenta:

O estudo não permitiu determinar se a utilização de media cria problemas ou se, pelo contrário, os jovens com problemas se voltam mais para a sua utilização

O estudo, de certa forma, diz que o estudo chegou a conclusões que o próprio estudo não consegue determinar. Estranho? Talvez. Até porque em nenhum momento se falam dos conhecidos malefícios da televisão e computadores para a saúde física das crianças. Sou o único a achar este estudo um bocado estranho?

De qualquer forma, estou a alongar-me. Se tiverem alguma opinião ou comentário a fazer, sou todo ouvidos. Consumam mais umas horas de multimédia ao deixar um comentário.

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A conspiração 1984

Há dois anos atrás escrevi um trabalho para a disciplina de Filosofia sobre um tema que me interessava e interessa. Hoje, ao percorrer a Sic online à caça da actualidade, deparei-me com mais uma reportagem sobre a videovigilância.

A principal vantagem da videovigilância é relativamente óbvia: é um mecanismo de segurança como outro qualquer, estando lá para prevenir assaltos ou para atenuar as suas consequências, servindo para facultar elementos importantes sobre os assaltantes. Se não há testemunhas ou se os seus testemunhos são contraditórios, a videovigilância pode ser a única saída no que toca a reunir informações objectivas. Quantos assaltantes eram? Qual o carro que conduziam? Eram homens? Altos, magros? Estavam armados? Como entraram ou conseguiram fugir?

No entanto, os críticos dos sistemas de vigilância argumentam que o equilíbrio entre a videovigilância eficaz e a privacidade dos cidadãos é impossível. Por alguma razão, as câmaras de filmar em locais públicos parecem apresentar um absoluto ataque à nossa privacidade. Não acho que este argumento seja legítimo. A partir do momento em que andamos às compras ou a passear com os amigos, estamos em público. Toda a gente nos vê, qualquer criminoso nos pode seguir ou abordar. O facto de haver captação de imagem que demonstre a minha presença à porta do Pingo Doce não é um insulto à minha privacidade. Além disso, não existe um sistema organizado de espiões governamentais a seguir-nos utilizando as câmaras de videovigilância. As teorias da conspiração e as óbvias comparações com o romance "1984" parecem-me bastante exageradas; mas não quero perder muito tempo com isto.

Quero só comentar que é engraçado, na sociedade em que vivemos, haver um cuidado tão grande com a nossa privacidade. Vivemos na época, desde o início da História, em que manter a nossa total privacidade começa a ser impossível. Os bancos sabem quanto ganhamos, os correios sabem onde vivemos, o Youtube sabe que vídeos andei a ver, e apresenta-me sugestões de vídeos dentro dos temas que me parecem interessar; tudo na nossa sociedade foi automatizado de forma a que enormes quantidades de dados, que incluem as nossas contas bancárias e dados peessoais, circulem pelos computadores de empresas e órgãos governamentais. Ninguém se queixa disto. Ninguém defende que seria muito melhor guardar os nossos rendimenos debaixo do colchão. A automatização da sociedade e a troca constante de dados tornou-se uma necessidade, e recusá-la seria viver à margem da sociedade. Também a segurança, que é um dos direitos e prioridades básicas de qualquer cidadão, é uma necessidade; e há que habituarmo-nos aos tempos que correm e encontrar mecanismos eficientes de combater a criminalidade.

Não deixa de ser curioso, no entanto, que a mesma sociedade que se deixa automatizar desta forma encontre tamanho ataque à nossa liberdade pessoal na videovigilância. A minha ida ao Pingo Doce, ou o facto de ir passear à Baixa no domingo à tarde, é invasão da minha privacidade? Seria, se a videovigilância se estendesse a um local privado. Seria, se por comparação outras acções consideradas normais e inofensivas fossem levadas tão a sério como as câmaras de vigilância. A maioria da populãção é contra a "invasão de provacidade da videovigilância", mas não apresenta problemas em colocar no Facebook ou no seu blog fotografias dos seus filhos, ou informações sobre onde e quando vão passar férias.

Sejamos honestos e coerentes. Se vamos levar a conspiração 1984 a sério, resta-nos desligar os nossos computadores e telemóveis, fechar as contas nos bancos, e de alguma forma apagar os nossos registos pessoais na Segurança Social ou Ministério das Finanças. Boa sorte com isso.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O que estou aqui a fazer às duas da manhã

Insónias, para variar. Tenho de acordar daqui a seis horas, pelo que o verdadeiro arrependimento e mágoa só virão amanhã de manhã, ao ouvir o despertador. Por agora vim escrever, para melhor expressar o que me vai na alma.

Tenho dois tipos de insónias, a insónia eufórica e a insónia de fraqueza. A insónia eufórica é a que estou a ter hoje, sem razão aparente. Não consigo dormir, e pela minha cabeça passam milhões de imagens distintas e aleatórias. Caras de pessoas, acontecimentos, cenas de filmes, capas de livros, árvores, animais, partes de vídeos, peças de roupa, cores, texturas, pessoas. É uma espécie de catálogo a alta velocidade. Tem banda sonora e tudo: ouço sons em concordância com as imagens que imagino, ou (na pior das hipóteses) um refrão ou letra de uma música a passar em loop constante e doentio. Ouço a mesma música vezes e vezes e vezes sem conta, e seria de esperar que isso me adormecesse, mas acaba por acordar-me ainda mais. Suponho que as torturas de sono utilizadas nos prisioneiros em Guantanamo sejam muito semelhantes ao espectáculo de pirotecnia criativa com que o meu cérebro me delicia de vez em quando.

O outro tipo de insónias que também costumo ter é mais angustiante. Imaginem o seguinte cenário: acabaram por passar por um dos dias mais longos das vossas vidas. Tiveram um exame importante, aulas difíceis, discussões, viagens compridas, coisas para entregar á última hora, experiências de quase morte, qualquer coisa. Estão estafados. Parece que foram espancados por um pugilista profissional. Todo o vosso corpo é uma massa disforme de dor e cansaço, e tudo o que a vossa mente consegue vislumbrar por entre a penúmbra da fraqueza é uma almofada. Agora imaginem que, durante horas e horas e horas, se reviram na cama sem conseguir dormir. Tudo no vosso relógio biológico vos diz que está na hora de dormir, e tudo o que pedem do vosso corpo são duas ou três horas de sono, ou um momento apenas de paz adormecida, mas nada. Ficam acordados. Durante horas. A desfalecer, mas acordados. Durante horas. Literalmente. Horas.

Deve haver qualquer tipo de explicação natural para isto; tem de haver. Se depois de ser observado por um batalhão de neurologistas mesmo assim não conseguir encontrar uma explicação, talvez me vire para aquelas coisas New Age de virar a cama para um ponto cardeal qualquer, ou dormir com cristais na mesa de cabeceira. Talvez o placebo funcione mais do que a simples vontade voluntária de dormir. Prometi a mim mesmo que vou a um médico ver o que se passa (há anos, porque nada disto é novidade para mim), e vou mesmo.

Por agora vou tentar dormir. Vou voltar para a cama com optimismo e coragem. Vou provavelmente demorar a adormecer. Muito. Amanhã será um dia dedicado a manter-me acordado.

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A culpa não é minha

Desde que o meu PC fez algumas actualizações automáticas (daquelas típicas de Windows, em que durante uma hora o computador actualiza tudo e mais alguma coisa e depois tem de ser reininciado) o Blogger não está a funcionar bem. Nomeadamente, a caixinha de texto referente à publicação de mensagens no blog aparece deslocada e com algumas opções fora do sítio.

Entre os inconvenientes está o facto de parecer ser-me impossível fazer um simples copy/paste de um documento Word (ou qualquer outro lugar, por acaso) para aqui. O que significa, na práctica, que ou escrevo o que tiver a escrever directamente aqui ou nada feito.

(a propósito, se alguém partilhar comigo esta agonia e tiver um blog em que lhe aconteça a mesma coisa, avise. Pode ser que o problema seja mesmo meu)

Tenho à minha disposição duas opções:

1) Escrever directamente aqui tudo o que quiser publicar, o que implica demoradas horas perdidas a rever o texto escrito à caça de erros e gralhas

2) Processar a Microsoft pela incompetência do seu sistema operativo

Como a primeira opção me parece a mais barata, vou ficar-me por ela. Alguém deveria processar a Microsoft, no entanto. A malta dos Mac's, por exemplo. Ou então ofereçam-me um.

A todos uma boa noite,
O Autor

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sábado, 23 de janeiro de 2010

Declaração

Estava a arrumar as minhas prateleiras (de vez em quando passo os livros que ainda não li/ que mais me interessam para a frente e os mais antigos para trás) quando me deparei com isto:






Portanto,

Eu, Renato Almeida Rocha, 19 anos, portador do Bilhete de Identidade (qualquer coisa, não o tenho aqui), declaro solenemente e por minha honra que não comprarei mais nenhum livro a partir do dia de hoje, 23 de Janeiro de 2009, e até ter lido uma quantidade considerável de todos os livros que tenho por ler. Declaro ainda que me encontro possuidor de todas as minhas faculdades físicas e mentais, com as quais tomo esta decisão que aqui deixo registada.

Lisboa, 23 de Janeiro de 2009
Renato Almeida Rocha

A má qualidade da imagem é culpa da Mariana Fernandes

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Uma ida à pastelaria e uma divagação improvisada sobre o pensamento moderno

Hoje acordei cedo, e porque não tinha com que me alimentar corri à pastelaria perto de minha casa, convenientemente instalada do outro lado da rua (literalmente) em relação à porta do meu prédio. A pastelaria é, na verdade, um cubículo pequeno e apertado, com uma mesa para duas pessoas, um armário para bolos (que está sempre vazio) e um balcão transparente com as bebidas e os bolos organizados em vários andares. A menina da pastelaria, uma brasileira redonda e cuja cor do cabelo tende a mudar com frequência (hoje estava vermelho), ignorou a minha entrada: estava ao telemóvel. Disse bom dia, e aproximei-me do balcão contando trocos. A menina estava de um lado para o outro do balcão, a falar no seu profundo sotaque do interior do Brasil, aquele que ouvimos nas novelas da Globo e que não acreditamos ser tão exagerado. Olhou para mim, esperando ordens, e eu pedi-lhe um pão de Mafra e um bolo de arroz. Ela continuou a falar ao telemóvel. “Sim, combina lá para depois à noite podemos conversar”; só que, no seu sotaque, conversar é pronunciado “conveirsâer”, com os R’s pronunciados como se um inglês lesse a palavra “Rita”. Isto, claro, sem me dirigir uma palavra. Meteu com dificuldade o pão de Mafra no saco de plástico, uma vez que estava com o telemóvel encaixado entre o ombro de chouriço e a orelha. Empacotou-me o bolo de arroz, altura em que fez o obséquio de interromper a conversa (que agora parecia ser sobre uma relação amorosa que corria mal) para me perguntar se o bolo era “pra levá”. Eu disse que sim, era pra levá, e ela continuou a conversa ao telemóvel enquanto me colocava o bolo e o pão sobre o balcão. Observei, enquanto esperava, a prateleira das bebidas, e reparei na comparência de uma marca de pacotes de leite que adoro. Acrescentei um dos pacotes ao meu pedido, dizendo, “Depois podia dar-me um pacote de leite daqueles? (apontar)”. Ela disse que sim com a cabeça, continuando, “Porque ele me disse se você continua perto dele o cara tá férrado”. Dobrou-se sobre o balcão, estendendo o braço para chegar ao pacote de 6 pacotes de leites, e retirou-o. Olhou para mim, levantou o pacote de leites de chocolate à altura dos olhos e agitou-o. “Um destes?”. E eu, feito parvo, disse que sim com a cabeça, educadamente, para não lhe interromper a conversa. Paguei e vim-me embora.

Agora que olho em retrospectiva, não sei se teria sido simpático fazer uma queixa sobre a óbvia falta de atitude e brio profissional. Não fui propriamente ao Ritz comprar o bolo de arroz; no entanto, se eu trabalhasse num sítio destes, nem que seja a pastelaria da esquina, teria um pouco mais de respeito pelos clientes e não estaria a falar dos meus problemas amorosos ao telemóvel enquanto os atendia.

Mas no fundo, esta é uma atitude que vemos todos os dias. Não foi a primeira vez que me aconteceu, nem será a última; só me chamou a atenção a suavidade com que encarei a situação. Tornou-se parte do nosso dia-a-dia, o acto de falar ao telemóvel e ignorar quem nos rodeia ao mesmo tempo. Quem conduz a falar ao telemóvel, ou interrompe o atendimento a um cliente quando o telefone lhes toca. Neste caso, não me surpreende que não haja consequências da acção da rapariga; a própria dona da pastelaria já me vendeu um croissant a falar ao telemóvel, e sem sequer me cumprimentar. Este tipo de carinho e educação, que era uma constante no comércio dito tradicional, está a desgastar-se! Desculpamos com toda a facilidade quem fala ao telemóvel porque o telemóvel faz agora parte do nosso mundo de maneira estrutural. Não é só uma questão prática, é uma questão de necessidade. “Desculpa, dá-me dois minutos, tenho mesmo de atender esta chamada”.

Isto aplica-se a outras realidades. O telemóvel está, do ponto de vista social, ultrapassado. Hoje ter um telemóvel é banal, regular e pouco impressionante. Hoje em dia, um dos mais importantes critérios sociais é estar inscrito no Facebook, Twitter, Youtube, Hi5 ou qualquer outra “rede social”. Não deixa de ser engraçado estudar a história europeia (o que estou a fazer, como parte integrante da disciplina de História e Cultura das Artes), e perceber que há 500 anos atrás, em pleno Renascimento, o critério social mais importante era (imagine-se) a individualidade! O indivíduo era visto como único e com características especiais, que o distinguiam de todos os outros (individualismo), e essas características deviam ser preservadas; isso aplicava-se no pensamento e opiniões, mas também na moda e na forma de ostentar o luxo (ao contrário dos nosso tempos, era na expressão da originalidade que os grandes senhores que tinham dinheiro para estas coisas encontravam a sua forma de se destacarem dos outros). Outro critério tomado em conta na altura era a cultura. Quanto mais culto e lido era um homem, mas facilmente entraria nos meandros da alta sociedade, e mais depressa ascenderia a cargos importantes. Não se trata de uma relação quase matemática de proporcionalidade, mais cultura mais poder, mas podemos falar numa mentalidade generalizada que se distingue de outros períodos da História (como o nosso).

O que temos nos tempos modernos é o contrário absoluto. Ser culto, ler livros ou conhecer a história do seu próprio país passou a ser sinal de falta de personalidade, e sinónimo de poucos namorados e amigos. É incompreensível para a geração a que (infelizmente) pertenço haver alguém que goste de perder tempo a aprender ou a cultivar-se, fora do espaço escolar em que isso é obrigatório. É incompreensível também que tal pessoa o faça por gosto genuíno. Os parâmetros sociais de hoje em dia estão tão afastados dos do Renascimento que podemos finalmente falar da estupidificação das massas; os grandes ídolos da sociedade são em geral jogadores de futebol, actores e modelos, e raramente filósofos, artistas ou cientistas. Parece que a cultura e o conhecimento são secundários ou até desprezados hoje em dia. A beleza, o aspecto exterior, as relações familiares e sociais, os gostos pelas mesmas coisas que toda a gente e a fama meteórica passaram a ser tratados como virtudes. Serão mesmo?

Isto traz-nos ao individualismo, que como vimos era uma característica da sociedade Renascentista há séculos atrás. Não preciso dizer o quanto este ideal foi violado entretanto, toda a gente consegue pensar em pelo menos dez exemplos de como, nos dias que correm, ser diferente é ser esquisito. As modas, as tribos urbanas, a estandardização (odeio esta palavra, soa a tradução pirosa) dos produtos e ideias: tudo isto contribuiu para se criarem correntes de pensamento e ideais esquisitos e diversificados. Todos vendem uma filosofia de vida ou um determinado gosto por uma determinada coisa, mas todos têm uma coisa em comum: nenhum dá importância à pessoa, mas sim à massa. As pessoas deixaram de ser pessoas, e passaram a ser as marcas que vestem, a música que ouvem, os seus penteados ou a filosofia com a qual se identificam. Não há nada de errado em identificarmo-nos com outros, que tenham os mesmos gostos e prazeres que nós; mas hoje em dia o “Eu” é sinónimo de egoísmo, e o diferente é sinónimo de rebeldia. É difícil, para alguém, ir contra a corrente do pensamento generalizado, pois é rapidamente rotulado de ser “do contra”; como se ser do contra, só por si, fosse uma enorme fonte de prazer. Alguém que, surpreendentemente, não goste das mesmas coisas que o resto da massa demográfica goste, é alguém que precisa de ir ao psicólogo. Não gostar dos Abba é ser carrancudo, não gostar do Crepúsculo é ser insensível, não torcer pela Selecção Nacional é não gostar do país, não gostar de comida chinesa é ser intolerante a outras culturas, não vestir roupas consideradas decentes é ser deslavado, e não gostar de ir a festas é ser anti-social. Nos dias que correm, convém quase pedir desculpa pela opinião ou gostos que temos, especialmente quando rodeados por pessoas que não partilham dos nossos ideais.

Isto pode parecer exagerado, mas acaba por ser verdade. Veja-se nas redes sociais (das quais já falei aqui), em que se cultiva a idiota crença de que todos somos únicos e especiais. Toda a gente usa os mesmos smiles, preenche perfis supostamente honestos e realistas (como se quem nos lesse o perfil nos ficasse a conhecer), e contacta com milhões de pessoas à distância de um clique. Há gente com centenas e centenas de “Amigos”, dois terços dos quais, muito provavelmente, não conhecem ou viram uma vez na vida, numa festa, às escuras, e com o qual trocaram dois beijinhos. Contactam com os “amigos” através da escrita, com pequenas mensagens automáticas a revelar o estado de espírito ou comentários vagos e vazios de conteúdos às fotografias alheias. É possível, nestas redes, encontrar grupos de pessoas com os mesmos gostos que nós; e o que pode parecer uma ode ao tráfico de informação acaba por ser o absoluto contrário daquilo com que se define: rede social.

Não há nada mais anti-social que as redes sociais. Não há nada que promova mais o estar em casa à frente de um ecrã. A televisão, que antigamente servia este propósito, está ultrapassada como o telemóvel; há coisas mais modernas e divertidas com que perder tempo. Actualizar o nosso perfil, os nossos álbuns de fotografias ou comentar uma mensagem de outra pessoa são imperativos categóricos. No entanto, quem utiliza estas redes acaba por nunca estar, realmente, com os seus amigos. Se as comunicações estão assim tão facilitadas e gratuitas, por que não aproveitar para combinar mais idas ao cinema, mais jantares, mais encontros? Um amigo com o qual contactamos por Facebook não é um amigo, é um Tamagotshi que nos responde.

De qualquer forma, este texto está longo demais (ou, tal como o meu avô chama aos textos longos, é uma lombriga). Fico por aqui.

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Uma História em Sons (ou: Quando a crise criativa aperta)

Portanto. Na disciplina de Imagem e Som estamos, surpreendentemente, a estudar o som; mais precisamente, a importância do som na narrativa de uma história, especialmente num produto audiovisual. Não deixa de ser interessante reparar na importância que a música e o ruído têm no contar de uma história, particularmente nos filmes. Experimentem reparar, no próximo filme que virem, em como certos ruídos ou músicas completam o ambiente, aumentam a emoção, maximizam o dramatismo, criam ritmo ou nos ajudam a perceber imediatamente o que se está a passar.

Passando à frente. Neste contexto, tivemos de resolver um exercício criativo bastante divertido: contar uma história pequena, de uma página, apenas recorrendo à descrição de sons. Não podia haver diálogos, nem descrições, nem qualquer tipo de referência visual; tudo o que o leitor conseguisse entender do enredo teria de vir dos sons descritos. Tivemos de ler as nossas histórias na aula, e como os meus colegas pareceram gostar cá está ela, para vossa diversão e escrutínio. Não é propriamente um espectacular exemplo de fluidez narrativa, e tem muita batotice pelo meio (umas quantas referências visuais).



O carro avança pelos sons da cidade, com a música clássica a sair-lhe do rádio. Carro perde velocidade até parar, o condutor faz marcha atrás e roda o volante, o motor é desligado. O Homem sai do carro, e os seus passos atravessam a rua e chegam a uma porta, produzindo eco pelo caminho. Um objecto metálico é retirado a tilintar do bolço. O molho de chaves é remexido, uma delas é seleccionada e levada à fechadura. Ouvem-se uma série de onomatopeias mecânicas, o clique da fechadura, a porta a abrir-se e os passos a entrarem. O homem caminha até uma divisão, abre um armário e retira um copo de vidro. A torneira é aberta, ouve-se o fluxo da água, a torneira fecha-se. O homem leva-o à boca e ouvimos o engolir sucessivo de vários golos. O copo é colocado em cima da bancada, e ouve-se um grito apagado e longínquo.

Os pés do homem chiam no chão, à medida que se volta rapidamente. O Homem fica sem se mexer: silêncio absoluto. Outro grito. Os passos aceleram, chiando até saírem da divisão, e tornam-se mais fortes e pesados. Ouve-se o chiar das escadas debaixo dos passos do homem. Os gritos são agora mais perceptíveis: uma mulher continua a gritar, com o som dos seus gritos apagado por uma porta. Os passos aceleram até pararem, ouve-se um encontrão numa superfície de madeira, uma maçaneta a ser rodada. A porta abre-se subitamente. O grito da mulher ouve-se outra vez, mais agudo e presente do que nunca, mais estridente e assustado. Ouve-se o remexer dos lençóis, o som das molas do colchão à medida que a mulher puxa os cobertores para si. O grito feminino é substituído por um berro masculino, súbito e surpreendido, e mais som de cobertores a serem remexidos.

O homem que abriu a porta está imóvel, em silêncio absoluto. Ouve-se a respiração ofegante do homem e da mulher na cama. O quarto cai num quase silêncio. A mulher começa a gemer tristemente, o homem ao seu lado não produz nenhum som. O homem que abriu a porta respira com calma. Retoma a marcha com toda a tranquilidade, os seus passos abafados pela alcatifa. A mulher chora abundantemente e funga. Os passos do homem são interrompidos, uma gaveta é aberta. A mulher volta a gritar com toda a intensidade, em desespero. A gaveta é fechada, ouve-se um click, e o grito da mulher é substituído pelo grito do homem ao seu lado, que por sua vez é substituído pelo som do disparo. A mulher grita, o seu grito abafado pelo cobertor que colocou à sua volta. Ouve-se o som da bala a entrar em algo vivo e feito de carne, e o gotejar súbito do sangue pastoso na parede. O corpo tomba pesadamente, e o som da sua queda é engolido pelos gritos da mulher que entretanto pára de gritar e começa a chorar baixinho, como que implorando por qualquer coisa.

O homem com a pistola na mão dá dois passos. As molas da cama chiam com o seu peso quando se senta. As suas mãos batem na sua cabeça, os dedos passam-lhe pelos cabelos. Ao longe um cão ladra, e um par de sirenes aumenta de volume à medida que se aproxima.

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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Viva as prioridades! (ou: Mais um pequeno desabafo sobre Deus)

Enquanto a maioria das pessoas realmente preocupadas com o que se passou no Haiti começam a fazer os possíveis para enviar medicação, água, alimentos e voluntários, um grupo religioso americano decidiu enviar como contributo indispensável 600 bíblias electrónicas. Chamam a este dispositivo o “Proclamador”, e trata-se na verdade de uma Bíblia em formato digital, alimentada a energia solar, que permite transmitir a palavra de Deus a mais de 300 pessoas “pobres e iletradas” de cada vez.

Numa altura em que os voos estão a ser filtrados de forma a que apenas o essencial chegue à população do Haiti, não deixa de ser curioso que alguém se tenha lembrado de entupir espaço aéreo (ou marítimo, ou terrestre) com este disparate. Esperemos que as autoridades saibam decidir quais as suas prioridades, e acelerar o transporte de medicação e das equipas de resgate ao invés de perder tempo com os delírios religiosos de um grupo de fanáticos. Talvez se vendessem as Bíblias em “qualidade digital” pudessem angariar dinheiro suficiente para realmente ajudar alguém; ou, quem sabe, levar antibióticos e não Bíblias no porão do avião. Qualquer solução alternativa seria mais coerente.

Fecho com uma pequena crítica religiosa. Na notícia dizem-nos:

With tens of thousands of Port-au-Prince residents living outdoors because their homes have collapsed or they fear aftershocks from last week's quake, the audio Bible can bring them "hope and comfort that comes from knowing God has not forgotten them through this tragedy", the group said.

Pessoalmente, e isto é apenas a minha opinião, a última coisa que eu queria era receber a palavra de um Deus hipócrita. Com que então criou o mundo da forma como ele é, com as suas places tectónicas e respectivos movimentos e libertações de energias em grande escala, e este grupo religioso tem a lata de nos garantir que Deus “não se esqueceu deles”; claro que não se esqueceu. Se ele existe, é ele o responsável por esta tragédia. Mas como se trata de um Deus benevolente, tenho a certeza que ele lá terá as suas razões para destruir a capital de um dos países mais empobrecidos do mundo. Quem somos nós para o desdizer? Há que deixar morrer todas as crianças haitianas com perigosas infecções ou esmagadas pelos escombros, e pensar sempre, no conforto do nosso egoismo e falta de humanidade, Deus está a olhar por nós.

Nós ateus somos normalmente acusados de estarmos “zangados com Deus”; o que é engraçado, uma vez que não acreditamos que tal figura exista. No entanto, se existisse, se Deus me aparecesse à frente neste preciso momento para me provar a sua omnipotência, eu ia continuar a achar que ele é a criatura mais vil deste Universo. Ser o supremo criador da humanidade não lhe dá o direito de ter um “plano especial” para todos, mesmo que isso inclua devastar cidades com catastrophes naturais. Se assim fôr, não pode nunca ser definido como um Deus benevolente. Ele bem pode definer-se a si próprio dessa maneira, mas então além de vil é incoerente. Resta-nos a nós, simples formigas debaixo da lupa, esperar que o plano divino nos caia em cima.

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Desespero, lágrimas, bocejos

Estou sem assunto para escrever. Há semanas que ando com insónias, pelo que durmo pouco e não tenho paciência para escrever histórias ou indignar-me com as notícias.

Por isso, proponho aos meus queridos (dois ou três, se tanto) leitores que deixem comentários sobre o que gostariam de ler por aqui. A história da minha vida, um texto de opinião sobre a porcelana chinesa, qualquer coisa.

Força, toca a sugerir. Se ninguém der ideias não se venham depois queixar que este blog anda vazio.

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domingo, 17 de janeiro de 2010

Queratina

Quando o tipo percebeu que a sua vida, daquela maneira, não ia resultar mesmo, resolveu destituir-se de preconceitos e instituir na sua vida a máxima que sua mulher sempre lhe tentara impingir, e à qual fugira sistematicamente: a vida é curta, e há que aproveitá-la.

Não que ele fosse completamente infeliz, nada disso. A sua mulher era uma esposa amorosa, romântica e óptima dona de casa. Viviam num bom apartamento numa boa zona da cidade. Ele tinha um emprego estável como consultor financeiro, onde ganhava dinheiro a fazer com que os outros ganhassem ainda mais dinheiro do que ele. A sua vida é que, para todos os efeitos, caíra na monotonia completa.

Levantava-se de manhã, tomava um banho quente, escolhia a gravata, mastigava umas torradas, bebericava o café enquanto via as informações de trânsito na televisão, pegava na mala e ia até ao quarto. Com um joelho empoleirado no colchão, beijava a testa da esposa e despedia-se com um

- Até logo, querida.

Que não devia nada à criatividade, mas era carregado de amor e afectividade. Metia-se no elevador, metia-se no carro, metia-se no trânsito, metia-se no elevador outra vez (agora outro, o da empresa) e metia-se no seu cubículo claustrofóbico e insignificante, com um retrato emoldurado da mulher e uma bola anti-stress como únicos objectos pessoais. Afundava-se em facturas, papéis da bolsa, informações detalhadas sobre contas e levantamentos bancários. Almoçava sempre no mesmo restaurante, onde conhecia o empregado pelo nome e comia sempre o mesmo prato, bife de peru com salada sem cebola e uma fatia de torta de maçã. Voltava para a papelada até às seis e meia da tarde. Voltava para casa, onde a esposa o esperava com um tacho fumegante e um beijo de boas vindas por cima do avental com florinhas. Viam televisão até se irem deitar, e raramente levavam a cabo aquelas coisas habituais dos casais mais modernos. Adormecia sem dar muitas voltas na cama, e pronto. Basicamente, era isto.

Pelo que a sua esposa, que o via nesta rotina sufocante todos os dias, lhe dizia e com razão:

- Tens de arranjar um hobby, uma ocupação qualquer, para te distraíres e arejares a cabeça. Não me digas que és feliz com aquela merda de trabalho, porque se o disseres saberei que estás a mentir. És um tretas, tu, sabias? Sempre foste. Sempre tiveste imensos sonhos e ambições, dizias que ias ser isto e aquilo, e no fim o quer tu és é isso mesmo, um merdas. Sabes que mais? És um merdas.

E o tipo dizia que sim com a cabeça, conformado. Sabia muito bem que aquilo não era forma de se tratar o próprio marido, mas no fundo a voz da sua mulher era uma cópia fiel da voz da sua consciência, que lhe dizia o mesmo só que em vez de ser detrás do avental com flores era atrás da sua orelha. Sabia perfeitamente tratar-se de um merdas sem personalidade, pelo que o mergulho na rotina diária parecia-lhe uma desculpa poderosa o suficiente para poder dizer que aqueles seus sonhos de infância, com os quais colorira a sua adolescência e que rapidamente se desvaneceram nos primeiros anos de adulto, eram nada mais nada menos do que isso mesmo: sonhos.

Mas esta sua falta de convicção, esta sua mania de justificar a falta de atitude com a sua própria falta de atitude, atiraram-no para um ciclo vicioso do qual, bem analisada a questão, só havia duas saídas: uma por cima, para a glória corajosa, e outra por baixo, pelo colapso nervoso. Na primeira opção restava-lhe despedir-se do emprego que lhe secava o espírito e a personalidade e procurar um caminho pelo qual pudesse seguir com verdadeira e arrebatadora paixão, como aqueles empresários que largam tudo para se refugiarem num templo tibetano em busca do sentido da sua existência. Na segunda opção, restava-lhe mais do mesmo, a repetição interminável dos dias e dias e dias passados a fazer exactamente o mesmo que fizera no dia anterior e que voltaria a fazer no dia seguinte. Ora, isto assustava-o. Felizmente, assustava-o. A voz da sua consciência, bem como a voz da sua amada esposa, regressavam-lhe forçosamente à memória, dizendo:

- Porque tu no fundo, querido, és um merdas. E eu digo isto porque te amo, porque te amo mesmo. Vês como te estou a pôr a mão na cara, a fazer-te festinhas no cabelo, e a falar-te desta forma calma? É porque te amo e porque quero o melhor para ti, e o melhor para ti não é esta vida que levas. E exactamente porque te amo, digo-te: és um merdas. Antes que te afundes num esgotamento qualquer e te vejas velho, enrugado e de fraldas, sem teres atingido o que quer que fosse que alguém deva atingir para justificar a sua existência, por favor, vê lá se mudas de vida e se deixas de ser assim. Esse merdas.

De maneira que o tipo decidiu mesmo mudar de vida e ganhar alguma auto-estima. Fazer algo da sua vida, provar a todos mas principalmente a si mesmo que era único, que era especial. Queria ser recordado, queria ficar para a história, queria fazer o que quer que fosse que o fizesse sentir-se completo. No dia seguinte meteu-se no carro e foi até ao emprego, onde entrou com determinação no escritório do patrão avisando que se vinha despedir e desejar felicidades. Saiu da empresa com um revigorado amor próprio, pois até há cinco minutos atrás se achara incapaz de algo tão catastrófico.

Sorrindo pela primeira vez em vários anos, correu até casa a dar a boa nova à mulher, que quase chorou de emoção e o abraçou com violência. O tipo foi então sentar-se na sala, e falou de todos os seus planos à mulher. Confessou os seus sonhos e pesadelos, abriu o seu coração e emocionou-se ao relembrar a sua infância. Limpas as lágrimas, a mulher perguntou-lhe o que iria ele então fazer da sua vida. O tipo parou para pensar nisso pela primeira vez, já que tanto entusiasmo lhe enevoara a capacidade de prever o seu próprio destino. Mais terra a terra, enumerou os seus critérios: teria de fazer algo invulgar, drástico, dramaticamente diferente do que fizera até hoje, e que lhe trouxesse fama e lugar na História. Não podia ser nada caro ou que exigisse dispêndios económicos, pois as suas poupanças estavam a zeros. O desespero por encontrar uma solução que parecia impossível estava a tomar conta das suas emoções. Já falava até em voltar atrás e ir implorar ao ex-patrão que o readmitisse na empresa quando a mulher, roendo as unhas (o que sempre a ajudara a pensar), parou por momentos, de olhos perdidos no vazio, e fez uma sugestão imprevisível:

- E se tu deixasses crescer as unhas? Sim, as unhas! Quebravas o recorde mundial, ganhavas fama e dinheiro, e nem precisavas de sair de casa! Daqui a uns meses ou uns anos, sei lá, tinhas um metro de unhas. Eu nem sei de quanto é o recorde, mas deve andar por aí. E entretanto tinhas tempo mais do que livre para ler, para ver televisão, para ir ao cinema, para passearmos juntos… O que achas?

Ao tipo a ideia pareceu-lhe uma maravilha; mas perguntou à mulher, e com razão, como se governariam lá em casa sem ele a trabalhar. A mulher explicou-lhe que o emprego dela era mais do que suficiente, com um sacrifício aqui e ali. Abraçaram-se. Beijaram-se. Fizeram amor e dormiram descansados até à hora do jantar, onde brindaram às unhas dele e decidiram os pormenores.

Só deixaria crescer as unhas de uma das mãos (as dos pés estavam fora de questão, por todas as dificuldades de locomoção envolventes), nomeadamente as da mão esquerda, e por razões óbvias. Assim, poderia usar a mão direita com a qual escrevia e cortava o pão, e conservaria mais autonomia do que se deixasse crescer as dez unhas todas ao mesmo tempo. Imaginando-se com metros de unhas penduradas pela mão, achou improvável não ser convidado para inúmeros programas de variedades, restaurantes gourmet ou festas importantes. Os seus colegas da empresa espreitariam detrás das facturas com inveja, ao vê-lo ser entrevistado no jornal da noite. Alugaria as suas unhas às empresas de publicidade. Faria anúncios para refrigerantes. Faria dinheiro, bom dinheiro, e com uma única acção: sentar-se em casa e esperar que as unhas lhe crescessem.

Quanto mais discutiam o assunto melhor a ideia soava na cabeça do tipo, que adormeceu pela primeira vez em muito tempo com um sorriso no rosto e uma luzinha ao fundo do túnel da esperança. Por agora era esperar. No dia seguinte, começou imediatamente a tratar das suas unhas: aparou-as com cuidado e aplicou-lhes verniz. Mediu-as, e registou o resultado numa pequena ardósia à entrada da cozinha, que servia para deixar recados rápidos. O ritual seguiu-se por vários dias e semanas, e lentamente a ardósia registava valores exponencialmente mais altos. Quando o comprimento médio das unhas era de 2 centímetros (distância medida desde o início da unha até à ponta exterior), a sua mulher comprou um bom vinho e comemoraram com um jantar romântico de sushi. Nunca tinham sido tão felizes.

Numa dessas noites calmas e românticas, em que os dois se sentavam na sala a ver televisão e a conversar um com o outro, a sua mulher parou de ler o jornal, pousou-o no colo e olhou para um canto da sala com os olhos semicerrados, em completa introspecção.

- Temos de criar um site. – disse ela finalmente, e o marido, procurando abrir uma lata de Coca-Cola com a mão direita, olhou para ela com uma sobrancelha levantada.
- Sim, é isso – disse a mulher – temos de criar um site.

Assim foi. Um amigo do tipo, aliás seu antigo colega na empresa, foi convidado para ir lá a casa jantar. Impressionado com a escolha de vida do antigo colega, e entusiasmado com a ideia do site, dispôs-se logo a utilizar os seus conhecimentos de informática para o efeito. Os três fizeram um brainstorming. Dois dias depois, o “unhas.com” estava disponível a quem o quisesse ver. Incluía fotografias das unhas de vários ângulos diferentes, uma descrição de toda a sua história e um pequeno contador que permitia seguir, em tempo real, o número de horas passadas desde que as unhas tinham começado a crescer, bem como o seu respectivo comprimento.

Dois dias depois da criação do site, havia 76 comentários no fórum do site. Ao fim de uma semana, 345. Depois de duas semanas, chegava aos 2.000. Um jornalista procurou-os, e a história do tipo apareceu na secção de “Tempos Livres” de um diário regional. Os comentários no seu site dispararam, e o seu telefone começou a tocar. Duas semanas depois, assinou contrato com uma empresa de roupa desportiva para criar uma linha de t-shirts dedicada a si próprio. As vendas das t-shirts através do site não só cobriram as suas despesas indispensáveis como chamaram a atenção de uma empresa de agentes, que se ofereceu para o representar. A sua mulher agradeceu enormemente o convite, desejou boa tarde e desligou. O tipo, suando pela cara abaixo, perguntou-lhe porquê.
- Estes tipos querem explorar-te, querido. Querem que sejas um fantoche autêntico. Escolhem-te as campanhas e chupam-te 30 por cento. Isso não vai acontecer, não te vou deixar ser explorado desta forma. Estamos bem assim, não estamos? Estamos. Então pronto.

O tipo, lá no fundo, achou que aquela era uma oportunidade desperdiçada. Pegou numa calculadora, digitou o número de euros ganhos na venda das t-shirts, calculou 30% desse valor e chegou à conclusão de que, se naquele momento tivesse um agente, esse mês não pagaria as contas da luz e do telefone. Sentindo-se melhor, agradeceu à sua mulher tudo o que estava a fazer por ele. Ela retribui-lhe o gesto carinhoso, beijaram-se intensamente e um minuto depois estavam no quarto de porta fechada.

Fazer tudo aquilo que costumavam fazer começava agora a ser algo complicado. Segundo a pequena ardósia à entrada da cozinha, as unhas do tipo tinham chegado aos 28 centímetros, pelo que a sua mulher saía muitas vezes arranhada daqueles pequenos momentos de romantismo. O tipo tentava sempre afastar a mão esquerda da acção e concentrar-se na mão direita, mas isso só abria caminho para posições desconfortáveis e muito pouco práticas que ambos estranhavam. Apesar de tudo, aqueles momentos de intimidade continuavam a ser uma maravilha.

Quando já toda a gente da cidade parecia saber do “unhas.com”, e quando o tipo começou a ser reconhecido no supermercado não só pela cara mas também pelas enormes unhas, um telefonema interrompeu-lhes o jantar. Ele foi atender, e era da televisão. Queriam um exclusivo.

Foi assim que o tipo apareceu num dos maiores programas dos serões nacionais, apresentado como “O Homem das Unhas” e envergando uma t-shirt que dizia “Coça aqui”. Contou toda a sua história, emocionou-se, e publicitou o seu site e as suas t-shirts com entusiasmo, tal como a sua mulher lhe dissera para fazer. O apresentador preparou-lhe uma pequena brincadeira, em que o tipo era desafiado a abrir latas de refrigerantes com as unhas. O público delirou ao ver as compridas unhas amareladas abrirem com toda a eficiência duas latas de sumo de laranja, e o programa terminou com aplausos e audiências acrescidas.

A brincadeira com os refrigerantes chegou ao Youtube, e o Homem das Unhas tornou-se sensação. Membros de todo o mundo juntavam-se à sua comunidade virtual, e o seu site recebia 5.000 visitantes por dia. Na rua, era reconhecido pelas pessoas. As senhoras de idade queriam dar-lhe beijinhos, e os pais de crianças pequenas pediam-lhe para tirar uma fotografia com os seus rebentos. Os miúdos mais novos, fascinados, puxavam-lhe as unhas cepticamente, não acreditando que fossem verdadeiras. Cada vez que ia comprar limões ao supermercado demorava mais de 45 minutos a cumprimentar os fãns. Ir à rua começou a tornar-se aborrecido, e depois irritante. Passados alguns dias desde a emissão do programa tornou-se realmente complicado sair de casa, pelo que o tipo e a mulher tomaram a decisão conjunta de ser ela, sozinha, a ir à rua tratar das coisas da casa.

- Oferecer assim a tua imagem de forma gratuita - dizia a mulher - é um disparate pegado.

A mesma cadeia de televisão do outro programa propôs-lhe agora um acontecimento televisivo nacional, a ser transmitido no minuto antes do telejornal. Tratava-se de um pequeno vídeo mostrando o tamanho actual das unhas (que por essa altura se aproximava dos 40 centímetros), com uma narração a explicar toda a história e a agradecer a todos os espectadores que visitassem o unhas.com e adquirissem t-shirts para dar à família e aos amigos.

Assim foi. Todos os dias o tipo começou a sair de casa para ir à televisão gravar o seu pequeno tempo de antena, mas logo no primeiro dia de saída foi surpreendido por sete ou oito fotógrafos à porta de casa, gritando “Mostre as unhas, mostre as unhas!”, 2Aqui, deste lado!”. A sua mulher, que acabava de chegar das compras carregada com sacos, tentava transpor a barreira de jornalistas, mergulhada em luzes de flashes e perguntas indecentes sobre a privacidade do casal. “Descobriram-me a morada”, pensou o tipo.
No hall de entrada, rodeado por dois seguranças da televisão e afastado da confusão de jornalistas, abraçou carinhosamente a mulher, que não pareceu muito contente: deu-lhe um beijo rápido e apagado, disse que ia arrumar as compras e subiu pelo elevador.
O tipo lá esteve no estúdio durante uns minutos, gravando o seu tempo de antena; e quando chegou a casa tinha o almoço pronto, e a sua mulher parecia mais animada. Trocaram beijos apaixonados, e o tipo sentiu que depois da galinha de fricassé e da sobremesa poderia haver algum momento de privacidade entre os dois. Entusiasmado, acelerou a mastigação; mas vinte minutos depois já tinham acabado de almoçar e a mulher não parecia para aí virada.

Às sete e cinquenta e nova da noite ligaram a televisão, e a primeira imagem saída da escuridão do televisor a acender-se foi a das unhas do tipo. Aplaudiram, satisfeitos, e trocaram mais uns beijos apaixonados. “Agora sim a coisa vai acontecer”, pensou o tipo. O telejornal começou, e foram para o quarto.

As unhas estavam progressivamente mais longas e incómodas. Começavam a ficar curvadas, pelo que a locomoção do tipo parecia sabotada; aliás, a mulher estava repleta de marcas vermelhas nas costas e nos braços, resultantes de pequenos erros de cálculo quando se abraçavam. Tentaram colocar-se em diferentes posições, mas rapidamente o incómodo da situação quebrou o clima e o tipo sentiu um balde de água fria pelo corpo entusiasmado abaixo quando a mulher resmungou:

- Epa, hoje não.

E saiu porta fora. No corredor escuro apareceu a luz azulada da casa de banho, e ouviu-se a torneira. Depois a porta fechou-se, e o som da torneira foi substituído pelo do chuveiro. O tipo permaneceu nu, deitado de costas, com as unhas curvilíneas encostadas à almofada, perguntando a si próprio o que fizera de errado.

Os dias foram passando, e enquanto o pequeno tempo de antena do homem registava audiências crescentes, a sua mulher parecia a cada dia mais carrancuda. Fazia por essa altura um mês desde que se despedira do emprego para se dedicar inteiramente à carreira do marido, e agora as suas funções incluíam ir às compras, aturar os jornalistas e ser cumprimentada na rua a torto e a direito. Andava cansada, ganhava olheiras. As unhas do marido não o deixavam ajudá-la em grande parte das tarefas domésticas: não conseguia lavar a loiça sem deixar escorregar pratos e copos, não conseguia aspirar a casa com o aspirador seguro pela mão direita, não conseguia partir ovos, mexer bolos ou cortar cebolas; e no quarto as coisas também não iam pelo melhor caminho.

Exactamente na altura em que as vendas das t-shirts e de outros produtos do site começavam a ser a única fonte de rendimento do casal, alguém se lembrou de utilizar o tempo de antena na televisão da melhor maneira possível. Assim, alguns dias depois do tempo de antena ter sido iniciado, as unhas do tipo apareceram mais uma vez na televisão nacional como todos os dias apareciam, só que desta feita com um pequeno autocolante, na unha do dedo médio, publicitando uma conhecida marca de desodorizantes.

A partir daí foi a loucura. De dia para dia surgiam telefonemas de empresas e marcas que queriam o seu pequeno centímetro de unha na televisão nacional. Todos os dias o homem ia gravar o seu tempo de antena com novos autocolantes nas unhas: marcas de sumos, de bolos, de fármacos, de roupa feminina, de brinquedos infantis. E como os contratos eram de vários dias ou semanas, o tipo ia para casa de autocolantes colados nas unhas, colorido como um vendedor de bugigangas à procura de comprador. Numa dessas noites já com os autocolantes colados nas unhas, dormiram juntos na cama mas sem qualquer tipo de contacto físico em especial. Quando acordaram de manhã repararam que um dos autocolantes vertera tinta, que misturada com o suor tinha manchado as almofadas e o lençol. A mulher desfez a cama e não disse mais nada, nem mesmo enquanto tomavam o pequeno almoço.

Assim ficaram mais uns tempos. Os autocolantes aumentavam. O site registava visitas diárias na ordem dos milhares. O amigo informático do casal dizia que tinham leitores na Arábia Saudita e no Chile. Os cheques que chegavam pelo correio cobriam as contas, a comida, o conforto, e se fosse preciso cobriam as contas de uma casa com o dobro do tamanho daquela. Na rua e nos transportes públicos viam-se t-shirts com mensagens como “Já cortaste as unhas hoje?”, usadas por pessoas discutindo o novo desodorizante anunciado nas unhas antes do telejornal. Em casa, o tipo falava num estado de quase pânico, como se a mínima faísca pudesse acender a sua mulher como um boião de gasolina. Na cama, o espaço que os separava parecia cada vez maior. E as unhas cresciam.

Assim foi até ao dia em que o tipo estava a chegar a casa depois de mais uma sessão de gravações e encontrou a porta fechada no trinco. Estranhou. Deu a volta à chave e entrou. A casa pareceu estranhamente silenciosa. Procurou a mulher pela casa e o único sinal dela foi encontrá-lo em cima da sua almofada. Era um pequeno envelope branco, sem nada escrito por fora. O tipo pegou no envelope, sentiu-lhe o peso, abriu-o com alguma dificuldade só com a mão direita. De lá de dentro caiu um corta unhas platinado e brilhante, e um papel. Pegou-lhe e leu: “Escolhe tu”, e por baixo a assinatura da mulher.

O tipo sentou-se na cama sem querer acreditar no que estava a ver. De súbito, ocorreu-lhe espreitar dentro dos armários, e confirmou o temido. As suas camisas ainda lá estavam, mas a outra metade do guarda fatos estava vazia. Faltava uma mala de viagem debaixo da cama, e uns frascos de perfumes de cima da mesinha de cabeceira. Sentou-se na borda da cama, e desatou a chorar, lágrimas gordas e sinceras. Tentou limpar as bochechas com a mão esquerda, e por pouco não se arranhou; este engano fê-lo sentir uma raiva imensa, pelo que agarrou no candeeiro da mesinha de cabeceira com a mão esquerda e tentou atirá-lo pelo quarto. O candeeiro ficou preso nas unhas, e em vez de voar pelo quarto e partir-se, como era suposto, de encontro a uma parede, caiu desamparado aos pés do tipo, que ficou subitamente de sapatos cheios de cacos de vidro. Isto enfureceu-o ainda mais. Levantou-se da cama agitando os punhos no ar. Os sessenta centímetros de unhas não o deixavam fechar a mão. Por entre as lágrimas e o esgar de desespero, viu autocolantes a voar e a cair ao chão como pequenas folhas outonais. Correu à cozinha, e encheu um copo da bebida mais alcoólica que conseguiu encontrar. Bebeu, engasgou-se, tossiu, voltou a beber, voltou a tossir e continuou a chorar baba e ranho.

As horas correram. Devia já ser madrugada quando o tipo se levantou da cozinha, passou pelas 3 garrafas de bebida vazias e cambaleou até à entrada de casa, onde agarrou nas chaves do carro e saiu porta fora. Desceu até à rua, e mesmo àquela hora meia dúzia de jornalistas o vieram abordar enquanto caminhava até ao carro. “As unhas, as unhas! Mostra as unhas!”. O tipo respondeu com maus modos, tentou empurrá-los, gritou-lhes e quase atirou dois ou três ao chão com a potência do seu hálito. Flashes encadeavam-no, enquanto tropeçava até ao carro. Eles seguiam-no. Tudo parecia girar à sua volta.

Durante a viagem passou sete sinais vermelhos, para além de desobedecer a uma dúzia de regras do código da estrada. Por sorte não encontrou nenhum polícia pelo caminho, e pela altura em que chegou ao estúdio de televisão estava a suar e com os olhos vermelhos de choro.

O segurança do estúdio não sabia o nome dele, mas reconheceu-o pelas unhas compridas. Mesmo assim teve de lhe pedir a identificação e perguntar se estava embriagado. O tipo disse que não, retirou o documento das mãos do segurança e progrediu pelo corredor fora. Com um encontrão entrou na sala do director de programação, e gritou:

- Acabou!

O director de programação, um homem quadrado, de cabelo lambido para o lado e aftershave caríssimo, levantou-se surpreendido. Vendo o óbvio estado de devastação em que o tipo se encontrava, conduziu-o até uma cadeira e pediu à secretária um copo de água através do intercomunicador. O tipo parou de gritar, resmungando por entre as lágrimas:

- Acabou, para mim acabou, para mim já chega… Eu peço desculpa, eu peço imensa desculpa, mas para mim acabou…

Levou as mãos à cabeça, e sentiu a testa a ser arranhada pelas próprias unhas. A secretária entrou, seguida por um homem pequeníssimo com uma enorme câmara de filmar às costas, de luz acesa iluminando o escritório como um holofote, e dois assistentes arrastando cabos e um microfone. O director de programação ajudou o tipo a bebericar a água, enquanto dava pequenas indicações ao operador de câmara sobre o melhor enquadramento. O tipo continuava a chorar, vermelho, com a cara enorme e com as unhas da mão esquerda a enfurecê-lo de uma forma absolutamente nova, como se com aquela câmara e o seu potente holofote tivesse também descido sobre ele o calor e o brilho de uma inspiração celestial. Quase arrancou de dentro do bolso da camisa o corta unhas platinado que caíra do envelope. Silêncio completo no escritório. O director de programação olhou em pânico para o operador de câmara, que lhe levantou o polegar.
O tipo estendeu a mão esquerda à sua frente e, segurando no corta unhas como um gladiador segura na sua arma, começou a cortar as unhas.

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terça-feira, 12 de janeiro de 2010

A Foca e Winnie de Pooh - um diálogo

Aviso: o texto que se segue foi escrito de seguida, às tantas da madrugada, e tendo com único objectivo a diversão pessoal e descomprometida. Partiu do desafio criativo de escrever um diálogo completamente improvisado entre duas personagens aleatórias e ver o que saía dali. Se se ofenderem facilmente por um ou outro palavrão ou quiserem manter a ideia de que eu tenho qualquer tipo de bom gosto naquilo que aqui coloco no blog, é aconselhável que interrompam a leitura imediatamente.



- Tenho os ombros a pelar, foda-se! - disse a foca.


- Eu avisei te para pores protector - disse o Winnie de Pooh.


- Não percebo como podem haver ursos amarelos.


- Agora estás a ser descriminista - respondeu Pooh.


- Nem falar sabes, urso de merda. Sabes como se diz o teu nome na minha lingua? "Winnie, o Poia". Que tal?


A foca e o Winnie de Pooh estava sentados debaixo de um pessegueiro, e a foca estava de papo para o ar a tentar relaxar. O Winnie de Pooh, de mãos mergulhadas em creme, tentava corrigir o escaldão que a amiga apanhara em Carcavelos, na tarde anterior.


- Continuo a achar a Rua Sésamo muito melhor do que a tua série, sabes? – disse a foca, virando-se agora de barriga para baixo.

- Já te expliquei que só o fiz pelo dinheiro – disse o Winnie de Pooh, e era verdade.

- Mesmo assim. Até o Poupas Amarelo tem um nome mais decente do que tu, e também é amarelo. Ao menos tem penas, e asas, e um bico. Continuo sem perceber o que é um Poupa, mas ok. Ele não dormia num ninho ou lá o que era?

- Era.

- Então era um pássaro. Ao menos não se chama Poupas o Poia não achas?

- É o problema das traduções.

- Deixa-te de lamúrias e barra-me as costas como deve ser, se fazes favor.

O Winnie de Pooh continuou a trabalhar no escaldão da amiga.

- Mas conta lá, fizeste a série por dinheiro? – perguntou a foca.

- Pois. Estava necessitado na altura.

- Como pode estar necessitado? Só comes mel.

- Sabias que o mel está completamente inflacionado?

- Oh Poia, espalha isso bem.

- Como te estava a dizer, precisava do dinheiro. Fui a alguns castings, incluindo para a Rua Sésamo.

- Para que papel?

- O da senhora que lá vive. Não é a velhota, é a mais nova.

- No meu país, essa era a Alexandra Lencastre. Sabes quem é a Alexandra Lencastre?

- Não. Também fiz o casting para os Teletubies.

- Olha, esses é que me assustam, os Teletubies.

- Nunca te contei que o Teletubie amarelo é meu primo?

- Oi. A sério?

- A sério. Só que fez uma fucinhoplastia para parecer mais humano. E a antena também não é dele.

- É verdade que eles têm um televisor na barriga, como aqueles frigoríficos?

- Sim. Nós víamos os jogos de basebol na barriga dele, e quando era para mudar de canal tínhamos de lhe rodar o nariz.

- Não sei se já te contei esta piada, mas sabes porque é que os chineses são amarelos?

O Winnie de Pooh reflectiu por momentos. Não, não sabia.

- Porque mijam contra o vento. – respondeu a foca, com um sorriso maroto.

O Winnie de Pooh procurou não ficar ofendido.

- Sabes, acho que vou criar uma série de televisão comigo próprio. Vai chamar-se, “Foca, o Ranholas”. O que achas?

- Já te disse que Pooh era só um nome.

- E porque é que andavas só de t-shirt? Não tens genitais?

- Tenho.

A foca dobrou o pescoço e espreitou por debaixo da t-shirt do urso.

- Não me parece. Diz a verdade. Tens genitais?

- Podemos falar de outra coisa?

- O Poupas também andava nu. O Pato Donald também. Como é que faziam, era com Photoshop? Não era mais barato comprar umas cuecas?

- Não percebes que é a questão da inocência? Somos todos personagens de programas infantis, as crianças conseguem ver o valor da história para além de termos genitais ou não.

- Isso não é inocência, é falta de educação sexual nas escolas. E as tuas histórias têm valor? “O Poia vai ao mel, o Poia faz amigos, o Poia faz chichi contra o vento”…

- Acreditas mesmo que sou amarelo porque faço chichi contra o vento?

- Bem, se a anedota o diz é por alguma razão. Estas a dizer que és melhor que os chineses?

- Se posso fazer chichi contra o vento mas ao mesmo tempo dizes que não tenho genitais, isso não faz sentido algum.

- Olha que os chineses agora abrem lojas por todo o mundo, e são bem sucedidos. São muito inteligentes, e têm uma vantagem evolutiva muito grande, que é terem os olhos em bico. Assim não lhes entram tantos mosquitos para os olhos, e pode olhar para as gajas giras na rua sem ninguém dar conta. Já reparaste que os chineses são todos iguais?

- Isso não é verdade.

- Claro que é. Um amigo meu, que é cientista, explicou-me que é por serem todos incestuosos. Casam-se com as primas uns dos outros, com os irmãos, com os sobrinhos, e assim ficam todos iguais. Por isso é que têm aquela coisa de amarrar os pés das mulheres para não crescerem. Eles dizem que é pela beleza, mas na verdade é para elas não fugirem. Já viste o que é teres relações sexuais com o teu primo? Olha, aí está. Imagina lá teres relações com o Teletubie amarelo. Não disseste que era teu primo?

- E é.

- Pois bem. Há alguma coisa que te faria praticares coisas menos próprias com ele?

- Claro que não!

- Sim, mas para além de não teres genitais.

- Mesmo assim.

- Pronto. Então se alguém quisesse que tu praticasses qualquer coisa com ele, prendiam-te os pés com umas cordas, atavam-te os atacadores com força e tu depois, com essa barriga toda, em vez de conseguires correr, caías para frente e não te levantavas mais. Percebes?

- Isso tudo para explicar porque é que os chineses são parecidos?

- Não, iguais.

- Ok, se tu o dizes.

- Não sou eu, já te disse. É um amigo meu que é cientista.

- É cientista de quê?

- O quê?

- Estuda o quê? Sociologia? Biologia evolutiva?

- Não, ele é ginecologista.

- O que é que isso tem a ver com a reprodução dos chineses?

- És mesmo burro, aqui se prova o que te estava a dizer. Falta educação sexual nas escolas. Então não sabes o que é um ginecologista?

- Sei.

- O que é?

- É uma pessoa que estuda e examina…

- Não é preciso dizeres, eu já sei o que é e podes ficar traumatizado, sabes, por não teres nenhum.

- Já te disse que…

- A questão não ficou bem resolvida, porque não me respondeste. Afinal tens genitais ou não?

- Isso é privado.

- Tens partes privadas?

- Se tenho partes privadas ou não é privado.

- E o teu primo Teletubie? Esses é que também não me pareciam nada ter genitais. Se ele tivesse qualquer coisa debaixo daquele fato espacial via-se o relevo.

- Não percebes o conceito de inocência? Aquilo era uma série para crianças.

- As crianças precisam de saber a realidade da vida. Deixa-me adivinhar, para ti os bebés vêem das cegonhas, não?

- Claro que não.

- É a sementinha do pai que entra no ovinho da mãe, certo?

- Claro, para explicares uma coisa assim a uma criança tem de ser com calma.

- Quando me explicaram isso fiquei a achar que o meu pai era um girassol e a minha mãe uma galinha.

- És mesmo ignorante.

- Era é inocente, Poia. Inocente.

- Em que é que acreditavas quando eras pequeno? Alguma coisa engraçada?

- Olha, lembro-me de achar que os ursos têm pila.

Houve uma pausa bastante longa.

- Depois acreditava nas coisas habituais – disse a foca – No Pai Natal, na Fada dos Dentes…

- Tu? No Pai natal? A sério?

- Era um puto, as sardinhas apareciam embrulhadas em cima das rochas à meia noite… Nunca pensei que fossem os meus pais a pescar aquilo. Agora que penso nisso e imagino o Pai Natal às voltas numa traineira a pescar sardinhas…

- Como seria se o Pai Natal andasse com peixe no trenó? Que mau cheiro!

- O Pai Natal deve ter um daqueles pinheiros de cartão com cheirinho, pendurado nos cornos das renas.

- As renas não têm cornos.

- Ai é, urso? Então têm o que?

- Hastes

- Haste tens tu em vez de pila.

Outra longa pausa.

- As renas têm cornos – insistiu a foca – Nunca viste uma rena?

- Sim, na televisão.

- Mas eles na televisão mudam o aspecto dos animais. Tu achas que elas têm hastes, mas eu digo-te que na realidade têm é cornos.

- Como sabes isso? Tu vives no mar.

- Tenho um primo que trabalha na TVI. Em todos os programas de Natal as renas que lá estão estão cobertas de próteses. Sabias que elas só têm duas pernas, como as avestruzes?

- Isso não faz o mínimo sentido.

- Faz sim. Eles metem-nas com 4 patas para poderem convencer os miúdos que são elas que puxam o trenó. Alguma vez uma avestruz conseguia puxar um trenó…

- Acho que o teu primo da TVI estava a gozar contigo.

- Porque é que ele estaria a gozar comigo sobre uma coisa tão séria? Achas isto uma brincadeira, urso Poia?

- Pára de me chamar Poia.

- Sim, Poia. Espalha bem o creme, se fazes favor. Estou todo gorduroso aqui abaixo do ventre mas na barriga não tenho creme. Este escaldão está a matar-me.

- Quem te mandou vir dar à costa em Carcavelos?

- O meu GPS avariou-se. Comprei-o a uma enguia minha amiga que faz contrabando destas coisas.

- Boa. Um GPS óptimo, para se avariar dessa maneira.

- E era de facto um óptimo GPS. Vim desde o Brasil com ele a funcionar lindamente. Quando cheguei a Cabo Verde ele começou a fazer interferências e à beira dos Açores apagou-se completamente. Quando cheguei a Carcavelos pensei que tinha ido dar à costa em Angola.

- Esse comentário é bastante racista, não achas?

- Porquê?

- Porque toda a gente sabe que em Carcavelos há bastantes pessoas de cor.

- Pessoas de que cor?

- Castanha.

- Então são castanhos?

- Não, são pessoas de cor.

- Para mim são pretos.

- Não achas isso algo depreciativo?

- Chamar alguém te preto?

- Sim.

- Porque é que haveria de ser? É a cor deles.

- Não chamas amarelos aos chineses, pois não?

- Estás a tentar insinuar que os chineses são todos amarelos?

- Tu próprio o disseste aqui há uns minutos!

- Não interessa. Estás a tratá-los por amarelos. É depreciativo. É sectarismo.

- Estás a virar a conversa contra mim!

A foca sorriu abertamente, orgulhosa.

- Não vejo qual é a piada. Tratar pessoas pela cor da pele – continuou Winnie de Pooh.

- Se eu fosse azul não me ofendia se me chamassem de Azul. Sabes porquê? Porque teria orgulho na minha cor de pele.

- Mas é uma questão de igualdade. Somos todos iguais, de uma forma ou de outra. Não é correcto estares a etiquetar as pessoas.

- Tu és um urso?

- Sou.

- És um urso polar?

- Não.

- Porquê? Tens alguma coisa contra ursos polares?

- Nada.

- Então porque é que não queres que te chame de urso polar?

- Porque não sou um urso polar.

- Mas se fosses não te importavas que eu te chamasse de urso polar?

- Hum… não…

- Pronto. Eu sou uma foca. Qual é o problema de me chamarem de foca e não de catatua? É o que eu sou.

- Mesmo assim. Há formas e formas de chamar alguém. Dizeres preto é diferente de dizeres pessoa de cor.

- Então e se houver pessoas vermelhas também são pessoas de cor?

- Er… sim…

- Então todos os que não são brancos são pessoas de cor?

- Não foi isso que eu disse…

- Então há uma diferença entre brancos e pessoas de cor?

- Ouve, não foi isso que…

- Ganda racista. E ainda tens a lata de me chamar sectarista ou que é!

- Chega desta conversa. Afinal o que te aconteceu em Carcavelos?

- Nada. Dei à costa, e aproveitei para lá ficar na praia um bocado. Depois comprei um gelado numa barraquinha, e fui comer o Calipto para cima de uma rocha. Quando dei por mim estava todo assado. Espalha bem o creme, Poia!

Winnie de Pooh espalhou o creme, e a conversa pode ou não ter continuado.

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quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Já foram fecundadas hoje?

Eu sei que já falei por duas ocasiões, aqui e aqui, sobre o casamento homossexual; mas esta notícia é simplesmente uma delícia, e deixá-la passar sem comentários seria denotar sinais de, digamos, perturbação psicológica.

Para o médico Gentil Martins, que também é um dos mandatários da Plataforma Cidadania e Casamento, a homossexualidade é, de facto, uma doença. «A Associação Americana de Psiquiatria sempre o considerou e só com a pressão dos lobbies gay é que mudou de posição»

Ao que parece, a Conspiração Gay, que como todos sabemos trabalha incansavelmente para a destruição da Humanidade, anda em Portugal a fazer das suas. Gosto particularmente do apelo à autoridade. Ei, se os Americanos dizem que a homossexualidade é doença, quem somos nós para discordar?

Mas, espera lá… Uma pequena pesquisa revela que…

In 1952, when the American Psychiatric Association published its first Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, homosexuality was included as a disorder. Almost immediately, however, that classification began to be subjected to critical scrutiny in research funded by the National Institute of Mental Health. That study and subsequent research consistently failed to produce any empirical or scientific basis for regarding homosexuality as a disorder or abnormality, rather than a normal and healthy sexual orientation. As results from such research accumulated, professionals in medicine, mental health, and the behavioral and social sciences reached the conclusion that it was inaccurate to classify homosexuality as a mental disorder.

E ainda, do mesmo artigo…

The World Health Organization's ICD-9 (1977) listed homosexuality as a mental illness; it was removed from the ICD-10, endorsed by the Forty-third World Health Assembly on May 17, 1990.

O que significa que a homossexualidade deixou de ser considerada uma doença e depravação há vinte anos. Mas deixemos por momentos o espectacular sentido de actualidade do Dr. Gentil Martins, e concentremo-nos no resto das suas declarações.

«Desde que o mundo é mundo que existem homem e mulher. Se a homossexualidade evoluir acaba a humanidade», frisou, não escondendo a sua posição sobre este tipo de ligação conjugal.

O horror. A tragédia. O caos. Toda a gente entende o peso inequívoco deste argumento. Se todas as pessoas no planeta fossem homossexuais, então a humanidade tem os dias contados!

Isto, claro, se partirmos de dois princípios ridículos. Primeiro, que toda a gente no planeta vai mudar de orientação sexual assim que perceberem que, se forem homossexuais, podem casar. E segundo, está subentendido que homossexuais, por definição, geram mais homossexuais. Afinal a homossexualidade não é só uma depravação mental, é uma doença contagiosa!

Isto é, claramente, ridículo. Pensem em todos os homossexuais nascidos de famílias ditas “tradicionais”, criados por um pai e uma mãe. Obviamente que a grande maioria dos homossexuais nasceram de famílias com casamentos heterossexuais. O que é que isto significa? Que a homossexualidade tem causas naturais, e não é o resultado de um ambiente hostil ou de uma infância rodeada de depravações sexuais? Ou que se trata de uma perigosa doença que afecta inocentes crianças e adolescentes, trazendo consigo a eminente desgraça do mundo?

Por último,

«Não se pode misturar as coisas, pelo que a sociedade tem de escolher a sua cultura. Temos de decidir o que é normal em Portugal, mas, na minha opinião, a pedofilia e a homossexualidade são perturbações psicológicas»

Isto é, simplesmente, nojento. Colocar na mesma frase, e ao mesmo nível, a homossexualidade e a pedofilia, subentendendo uma comparação entre as duas, é o maior acto de ignorância que já ouvi em todo este debate sobre o casamento gay. Não sei se preciso de perder tempo a comparar a atracção sexual por pessoas do mesmo sexo e a violação e abuso de crianças inocentes para mostrar que não são comparáveis em nenhum sentido. Talvez o argumento mais óbvio seja, oh, não sei, a homossexualidade diz respeito apenas a quem é homossexual e em nada prejudica quem os rodeia... Enquanto que a pedofilia define-se pelo abuso sexual de uma criança menor, inocente e indefesa.

Diz ainda o Dr. Gentil Martins:

«Sob ponto de vista psicológico e científico existem órgãos definidos que definem a complementaridade entre homem e mulher e isso que é que faz evoluir a humanidade».

O que é fantástico, porque isto é um argumento contra a homossexualidade. E, também, contra quem é solteiro. E, ainda, contra os casais que estão casados, a aproveitar-se da Instituição do Casamento mas sem ter filhos. E, reparem, contra qualquer outra pessoa que não esteja neste momento a planear deixar descendência. São tudo, obviamente, depravações, uma vez que não têm como objectivo a proliferação do ser humano. Ora imaginem só se toda a gente fosse solteira! Ou se, horror dos horrores, todos casais não quisessem ter filhos!

A única forma de manter alguma coerência nos seus argumentos é esta gente defender a obrigatória fecundação de todas as mulheres em idade fértil em Portugal, uma vez que alguém que não tenha filhos é um risco para a evolução do Homem. Portanto, proponho um referendo que pergunte: “Todas as mulheres do país deveriam ser fecundadas?”; e, em resposta, todos os homens podem responder “Sim”; e se me disserem que os homens não podem decidir sobre o futuro das mulheres, uma vez que é uma decisão que só a elas diz respeito, responderei:

«Não se pode misturar as coisas, pelo que a sociedade tem de escolher a sua cultura. Temos de decidir o que é normal em Portugal (…) Sob ponto de vista psicológico e científico existem órgãos definidos que definem a complementaridade entre homem e mulher e isso que é que faz evoluir a humanidade».

Conseguem ficar de braços cruzados quando aquilo que garante a evolução da Humanidade está constantemente a ser negligenciado por essa gente que tem a mania que tem direitos ou decisões sobre o que faz com a sua liberdade? Pensem nisto, e não se deixem cair em depravações.

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domingo, 3 de janeiro de 2010

Mensagem (a primeira da nova década)

Não apareço por aqui há já uns dias, nem vou aparecer muito rapidamente. Há que aproveitar as últimas 24 horas de férias, e devorar afincadamente os livros que o Pai Natal me trouxe.

A todos um bom inicio de aulas ou de trabalho, consoante a vossa posição na sociedade.

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