sábado, 24 de setembro de 2011

O Zombie Literário


Hoje é o último dia deste blog; ou, pelo menos, da sua existência actual. Cheguei à conclusão, sem mais nem menos (não me peçam justificações: sou jovem, estou na idade da impulsividade), que esta é uma excelente altura para terminar o blog. Curioso, não é?

Além de estar ocupado, percebi que não há grande razão para continuar a publicar coisas pela Internet. Escrevo para mim; sempre o fiz, e se alguma vez aqui defendi o contrário fiquem desde já sabendo que vos estava a enganar na altura. Daí que estar a mostrá-las ao mundo traz poucas ou nenhumas vantagens. Não me interpretem como um piegas, estou a ser sincero.

No entanto, o blog não será varrido desse conceito parvo a que chamam “blogosfera”: ele aqui fica, qual zombie literário, entre a vida e a morte, e disposto a comer os cérebros daqueles que, por acidente ou de propósito, cá vierem parar. Tudo o que foi publicado durante estes últimos anos cá vai continuar no limbo, aberto a qualquer visitante e curioso.

Será isto definitivo? Olhe, não lhe sei dizer. É definitivo até eu mudar de ideias; que tal?

Um grande abraço de agradecimento do Autor aos Leitores, vocês aí, desse lado do ecrã.

Cumprimentos à família,
Renato Rocha

domingo, 11 de setembro de 2011

Flashback da Semana (5 a 11 Agosto)


Semana fraca, com os habituais episódios de “Samora” (49 e 50) e uma nova edição da rubrica “Cartas para Andrómeda”, em que o autor das cartas descreve à sua querida tia os estranhos rituais humanos quando recebem visitas. 

O Autor


sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Samora 50


- A vida tem destas coisas, como diz o lugar comum – Samora levantou-se da cadeira a meu pedido, para discursar, e os convidados do copo de água silenciaram-se – Quem está aqui não me conhece. Apresento-me: Samora. Sou o padrinho e o responsável pela educação do noivo. Seu companheiro de longa data, se bem que isso vai mudar com a chegada de Sonja. Apesar de não gostar muito dela, confesso ver no meu bom amigo os benefícios que uma mulher traz à vida de um homem: está bem alimentado, bem dormido, caminha feliz, escreve, traduz, discursa com maior gosto. Isso é suficiente para avaliar Sonja como uma boa esposa. As outras mulheres na sala sentir-se-ão ofendidas se disser que o provérbio “Um grande homem tem sempre uma grande mulher atrás de si”, uma ladainha feminista ainda por demonstrar, está errado. Um grande homem é-o independentemente da mulher que está ou não atrás dele, que o espera ou não quando chega a casa. Um grande homem é-o e basta – Samora sentou-se pesadamente e bebeu da coca-cola.

Fui eu quem iniciou os aplausos curtos e secos, sorrindo para mim mesmo. Claro; na sua insensibilidade, ofendera a minha mulher e escondera a sua verdadeira mensagem num discurso sectário e  despertador de ódios. Mas Samora expressava-se melhor ofendendo os outros, colocando-os numa posição de inferioridade em relação a si, normalmente com eloquência, tipicamente sem obter resposta à altura; depois disso, tudo o que lhes atirasse não eram palavras mas sim balas de canhão. E no entanto... No entanto foi no dia do meu casamento que Samora me tratou quase como um igual, elogiando-me como nunca fizera até aí ou voltaria a fazer desde então; a mim ou a qualquer outra criatura. Aquela foi, compreendi, a apoteose das emoções de Samora, dirigida a mim, dedicada a mim; isso comoveu-me, e recordo-o com carinho. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Cartas para Andrómeda #5


Querida Tia,


Já sinto saudades do seu Hyu assado no reactor nuclear e ainda agora regressei à Terra! Não sei como vou aguentar outro ano sem ir a casa...

Por falar em casa: foi curioso ver os primos a sacrificar aquele Etu em minha honea assim que cheguei. Sabia que os humanos também possuem os seus próprios rituais de boas vindas?

Li sobre isto numa aula de Hábitos Humanos. Em vez de matarem seres vivos em honra uns dos outros, eles gostam muito de partilhar comida. É uma espécie de jogo social, em que buscam a aprovação dos outros oferecendo-lhes garrafas de vinho, queijos e aperitivos salgados.

Então é assim: os humanos convidam outros humanos para partilhar uma refeição. Quando os Visitantes chegam a casa já devem trazer uma oferenda. Normalmente é uma garrafa de vinho (um líquido asqueroso mas que os humanos bebem em demasia e graças ao qual têm acidentes rodoviários), porque enquanto o Visitante fornece o alimento para mastigar, o visitante deve trazer o líquido para beber. Convenções! O professor diz que não se sabe bem de onde vêm.

Os Visitantes são recebidos pelos Anfitriões, que são os donos do território visitado. Ao contrário do que lhe possa parecer, os Visitantes não urinam nas paredes para marcar território; aqui na Terra isso é considerado um acto de má educação! Em vez disso, os Visitantes devem limpar os sapatos antes de entrar no território alheio, cumprimentar todos os Anfitriões e ofertar a garrafa de vinho como símbolo de paz e união.

Depois os Anfitriões mostram o território aos Visitantes, quando estes não o conhecem. Um território com muitas divisões e adornos dispendiosos é sinal de superioridade. O Visitante deve, nessa altura, mostrar-se surpreendido, e elogiar o território e a forma como está adornado. Os humanos recorrem a sentenças socialmente aceites como: “Adoro o que fizeram com esta divisão”, “Esse quadro é maravilhoso!” e “O quarto dos miúdos está muito giro”, sem as quais os Anfitriões ficariam ofendidos. Os Anfitriões gostam de arrumar e lavar o seu território antes de receber os Visitantes, para se apresentarem com virtudes que na verdade não possuem.

A seguir, os Anfitriões e os Visitantes sentam-se no centro do território, chamado “sala”, e consomem aperitivos ou conversam sobre banalidades. A troca de informação entre os humanos nunca é sincera nem interessante. Os temas a evitar incluem política, religião, economia, sexo e necessidades fisiológicas, uma vez que se tratam de tabus sociais e nem os Anfitriões querem deixar os Visitantes desconfortáveis, nem os Visitantes desejam mostrar-se inferiores perante os Anfitriões.

Por esta altura entra a divisão de tarefas entre o macho e a fêmea: enquanto ele entretém os Visitantes na “sala”, a fêmea está noutro local do território, chamado “cozinha”, a preparar o alimento a ser compartilhado. Uma fêmea que saiba “cozinhar” (ou seja, manusear com agilidade os utensílios da “cozinha” e com eles preparar doses de alimentos saborosos) é altamente bem vista na sociedade humana.

Quando a comida está pronta, ela é servida em recipientes preferencialmente quentes. Os humanos odeiam comida fria! Dar comida fria a um Visitante é ainda pior do que urinar no território de outro humano... e até para comer os humanos têm rituais estranhos! Usam três objectos principais: garfo (com que levar o alimento à boca), faca (com que cortar o alimento) e prato (onde depositar o alimento enquanto não é consumido). Para dificultar a vida aos Visitantes e testar se pertencem à mesma casta social que eles, os Anfitriões procuram decorar com vários adornos as suas mesas, incluindo três tipos diferentes de garfos e facas, vários pratos, vários copos (local de onde se bebem líquidos) e alimentos de difícil consumo: com cascas, com peles, com superfícies rijas, com superfícies arredondadas e difíceis de espetar com o garfo, etc.

Os Visitantes devem fazer um esforço por se adaptar aos rituais próprios dos Anfitriões: alguns comem “sopa” (um líquido semelhante em textura e sabor ao pus que o Tio deita das guelras quando está doente), outros consomem alimentos comprados previamente em lojas, onde outras fêmeas cozinham para que as fêmeas Anfitriãs possam receber os louros sem terem trabalho algum. Os Visitantes devem também elogiar o alimento, independentemente da sua qualidade, utilizando mais sentenças socialmente aceites como “Está muito bom”, “Que delícia!” ou “Está muito bem temperado”.

É de bom tom que os Visitantes peçam a receita (modo de preparação de determinado alimento) à fêmea Anfitriã, com o intuito de a elogiar e de demonstrar a sua inferioridade alimentícia. A fêmea Anfitriã não deverá revelar que retirou essa receita de nenhum órgão de comunicação social. Respostas como “A minha avó já cozinhava isto assim” ou “Assim de repente nem te sei dizer como se faz, já me sai naturalmente!” são demonstrações de superioridade esperadas por parte da fêmea Anfitriã.

No entanto, os Visitantes não devem nem pedir mais que uma receita (normalmente pedem a da sobremesa, porque os humanos são viciados em açúcares) nem repetir demasiadas vezes uma dose de alimentos. Isso seria visto pelos Anfitriões como uma ofensa! Os Visitantes devem comer pouco e de preferência ficar com fome mesmo depois da refeição acabar.

Depois da partilha de comida, os humanos podem conversar mais um pouco, evitando, claro os temas tabu. O grau de proximidade da conversa é proporcional à proximidade social entre os Anfitriões e os Visitantes. Os temas proibidos, particularmente o sexo e a vida privada de outras pessoas, são os favoritos entre Anfitriões e Visitantes que se conhecem há mais unidades de tempo. É socialmente recomendável que os Visitantes critiquem e ridicularizem as mesmas pessoas que os Anfitriões, demonstrando assim que concordam com eles e fortalecendo as ligações entre os dois grupos com um mútuo sentimento de superioridade em relação aos outros.

Depois disso, os humanos despedem-se. É de bom tom que a fêmea Anfitriã, por esta altura, ofereça aos Visitantes um recipiente com comida, para que os Visitantes possam assim lembrar-se da sua inferioridade alimentícia quando regressarem aos seus territórios. Os Visitantes devem aceitar de bom grado, mesmo que depois ofereçam aqueles alimentos ao seu cachorro (animal de estimação que come restos).

No final da visita, o Anfitrião deve ainda disponibilizar o seu território para nova visita. “Voltem quando quiserem” é uma frase socialmente recomendável, apesar de nem os Anfitriões estarem a ser sinceros (não desejam visitas inesperadas ao seu território, porque senão não o poderiam ornamentar a tempo de enganar os Visitantes) nem os Visitantes estarem dispostos a “voltar quando quisessem”, o que seria rude.

Enfim... Vou-me habituando a estas loucuras! O Professor diz que um dia destes poderemos ir disfarçados a uma festa humana, e ver como se comportam eles em situações de pressão social. Oh, isso seria fascinante! Como eles sua, como eles se sentem nervosos a mastigar em público, como a presença de fêmeas ou machos atraentes lhes põe as glândulas aos pulos!

Cumprimentos aos primos (ainda não regressaram a Sirius, pois não? Desejo-lhes uma boa viagem!) e ao Tio. Ainda tenho alguns Frtyuiu aqui ao meu lado, e de vez em quando mato um e sangro-o para o lanche. Que maravilha, os sabores da terra natal...

Com carinho,

O Seu Sobrinho

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Samora 49


- Conhece a minha opinião sobre as mulheres. Nunca a descrevi claramente, mas você conhece-a bem – Samora observava uma fotografia de Sonja- Esta rapariga, além de nova, parece-me positivamente desinteressante. Uma companhia que aquecerá os seus lençóis e cujo ventre transportará a sua descendência; sem dúvida. Mas que olhos mortiços, que sorriso apagado, que aparente necessidade de parecer um animal atropelado! Saberá sequer discutir epistemologia, poesia nórdica medieval, ou cozinhar um assado capaz? Por outras palavras, estará à sua altura?

- Pretendo casar-me com ela – respondi.

Samora olhou-me com seriedade. Levantou-se, abriu os braços:

- Traga cá esses ossos, meu caro. Anna! – chamou, num vozeirão – Desça à cave e traga champagne!

Samora era, no fundo, um democrata. Aquilo que odiava era, para ele, catalisador de honestidade: dizia quando amava e quando odiava com igual paixão e sinceridade, mas não há dúvida que retirava um enorme prazer do prazer dos outros; prazer esse que tratava como uma característica mesquinha da vida, uma expressão da natureza mais animalesca do homem e não do seu intelecto. Para Samora, a felicidade dos outros podia muito bem ser da responsabilidade de algo insuportável e desinteressante como para ele era Sonja: mas a felicidade era algo imaterial que, concordava, o comum dos mortais necessitava no seu dia-a-dia; e admiti-lo, não só admiti-lo como congratular-nos por essa felicidade, era para Samora apenas mais um dos seus numerosos sinais de superioridade em relação aos outros.

domingo, 4 de setembro de 2011

Flashback da Semana (29 de Setembro a 4 Agosto)


No primeiro “Flashback da Semana”, relembro que as regras para a nova temporada do blog já foram definidas, e podem ser consultadas aqui (clicando em “aqui”; não este “aqui”, mas sim o primeiro).

Pouca foi a produção nesta última semana. Resumiu-se às edições 47 e 48 de “Samora” (é clicar nos respectivos números) e à recriação do conto popular da lebre e da tartaruga, aqui re-titulado (olhá alegoria) “As Lebres e as Tartarugas”.

Para a semana há mais.

O Autor

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Samora 48


Sonja era jovem e isso fazia toda a diferença. A dada altura, Sara transformara-se naquilo em que Samora a quisera metamorfosear durante todos aquele anos: uma esposa que não o é, com todos os benefícios da mulher-objecto sem as necessidades emocionais dos comuns dos mortais. Ao contrário, Sonja apresentava-se com uma irresistível urgência pela vida. O seu emprego era uma plataforma para uma mais alta posição na hierarquia; o seu quarto alugado a primeira de muitas casas progressivamente maiores; a sua conta no banco um investimento a gastar no futuro. Em Sonja, apesar dos papos debaixo dos olhos e da forma magra e aplanada do seu corpo, existia uma espécie de promessa de futuro. Sara, envelhecendo, era o que tinha sido e não se reciclava; Sonja, florescendo, era uma pequeníssima parte do que se podia tornar. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A rentrée do "Trajectória Aleatória"

No decorrer do próximo ano vou estar demasiado ocupado a tentar construir uma vidinha, e a minha participação neste blog virá a ser severamente afectada.

Com este claro e sério atentado à qualidade da blogosfera (palavra que abomino mas que utilizo como laracha) surge a questão: Como vai o Autor organizar a sua vida? Duas estratégias lhe ocorrem, assim de repente:

Estratégia Número Um: Vir aqui de semana a semana deixar qualquer baboseira escrita sem o mínimo gosto e atenção, fruto de uma mão destreinada e de um cérebro que perdeu a prática;

Estratégia Número Dois: Definir um calendário bem estruturado e que me obrigue, dentro das minhas possibilidades físicas e psicológicas, a cumprir com um número mínimo de posts a dias certos.

A Estratégia Número Um parece-me de todo a mais coerente com os meus objectivos para este ano, leia-se, boas horas de sono e concentração total nas minhas obrigações. Porém, e porque escrever me dá gozo e porque o blog não pode parar (que faria eu sem os rendimentos que daqui advêm?), a Estratégia Número Dois é a escolhida.

Cria-se desde já, portanto, uma entidade autónoma e quase-omnipotente, que na hierarquia do blog está acima de qualquer deus e de qualquer Autor: O Calendário (com maiúscula).

Este Calendário, determinado agora mas sempre sujeito a alterações com o decorrer dos meses, estabelecerá em que dias se publicará determinado texto, com que regularidade, e a que dias de folga tenho direito.

A Primeira Edição do Calendário (permanecem as maiúsculas) estabelece-se como se segue:


Segundas-feiras: Episódio de “Samora”

Terças: Folga

Quartas: Folga

Quintas: Texto Variado

Sextas: Episódio de “Samora”

Sábados: Texto variado

Domingos: Flashback da Semana /Liberdade para publicar o que me apetecer


Entre os “Textos Variados” contam-se (além de, sem surpresa alguma, alguns textos variados) as rubricas que ajudaram a trazer a este blog as largas unidades de leitores: “Cartas para Andrómeda”, “Frase Apropriada”, “The Fernandes Challenge”, “Dicionário Rocha” e “Creative Promps”.

Novidade é o “Flashback da Semana”, no qual coloco links para todos os textos da respectiva semana. Com este mecanismo, o leitor mais preguiçoso (ou ocupado; escolham a categoria que mais vos afaga o ego) poderá visitar o blog apenas aos Domingos e escolher, entre o que foi publicado, aquilo que lhe apetecer ler.

À primeira vista parece-me um plano demasiadamente optimista; a ver vamos. Os planos são bons: primeiro porque me roubam pouquíssimo preciosas horas de descanso e trabalho; e segundo porque me obrigam a não estar parado, e a corresponder a expectativas auto-impostas.

Armado com a melancolia característica do início de Setembro,

O Autor



P.S.: É com felicidade que constato que Agosto de 2011 foi o mais produtivo de sempre na história deste blog, atingindo os 42 posts. Isto dá a divertida média de 1,3548387096774193548387096774194 posts por dia.

sábado, 27 de agosto de 2011

As lebres e as tartarugas


Oh, as dores nas patas, o peso da carapaça, o calor sobre o alto da cabeça! Mas era preciso continuar, pensou a tartaruga. Há umas horas atrás tinha virado uma esquina e dado de caras com a lebre a dormir sossegadamente debaixo do chaparro. Nem parou para rir, continuou em frente; mas agora, longe do chaparro e perto da meta, reflectia longamente sobre a sua própria perseverança, e sobre como teria finalmente a oportunidade de ensinar algo de útil aos outros animais do charco. Coragem. Determinação. Trabalho árduo. Aproveitamento total e meritório das capacidades, ainda que limitadas. Eram estes os seus ideais. Uma pata de cada vez, arrastando pela estrada de terra batida o seu corpo pesadão.

- Oi – disse uma voz atrás de si. Virou o pescoço para trás. Era a lebre.

- Ah. Olá – disse a tartaruga sem grande entusiasmo.

- Reparei que me tinhas ultrapassado ainda há pouco. Ufa, está um calor…

A tartaruga disse que sim com a cabeça, mantendo o ritmo. A lebre caminhou descontraidamente ao seu lado durante uns segundos e depois disse:

- Temos aqui um sério problema.

- Ai sim? – respondeu a tartaruga. Ao longe, sobre uma colina verde, surgia a fita vermelha da meta e um grupo de animais à espera.

- É verdade. Trata-se de decidir o vencedor da nossa prova.

- Pensei que era quem chegasse primeiro – disse a tartaruga, ingénua. A lebre soltou uma gargalhada, apanhou um punhado de relva do chão e engoliu-a.

- Eu também, e parece-me justo à primeira vista. Porém, é algo que te ultrapassa completamente. Eu tenho todas as condições para te ultrapassar, dar uma corrida, e ganhar a corrida. Assim, sem mais nem menos.

- Isso – disse a tartaruga, resignada – é bem verdade.

- Trata-se portanto de um dilema moral ao qual tenho dedicado algum tempo – continuou a lebre – Senão vejamos. Chegando eu primeiro, terei todo o mérito em receber o título de vencedora. Afinal, cheguei primeiro! Porém, tu tens sido uma concorrente meritória. Ainda não paraste. E eu, preguiçosa como sempre fui – a lebre riu-se de si própria como quem fala de alguém muito engraçado que conheceu no café – aproveitei a tua desvantagem física para me estender à sombra do chaparro. Isso faria de ti uma justa vencedora da corrida!

- Ambas as hipóteses têm o seu mérito – disse a tartaruga, de olhos na meta.

- Como assim? Não acharias muito mais justo seres tu a ganhar?

- Depende.

- Do quê?

A tartaruga olhou a lebre nos olhos.

- Depende do prémio.

- Do prémio? Ora, o prémio é só um. É ganhar a corrida.

- Talvez – a tartaruga voltou a olhar em frente, agora com um ligeiro sorriso na cara – Se estamos a fazer uma corrida para ver quem chega primeiro à meta, então quem chega primeiro à meta é a vencedora. Mas vence porque corre mais rápido que a concorrente, só por isso. Ou porque tem as pernas maiores, como tu. Ambas podemos percorrer o mesmo caminho, só que tu tens a vantagem biológica de ser uma corredora natural e eu não.

- O que só torna a situação ainda mais humilhante para ti – concluiu a lebre – Aliás, devo dizer-te que nunca percebi muito bem por que é que aceitaste este meu desafio.

- Porque não haveria de aceitar?

- Ora, porque está-se mesmo a ver que…

A lebre calou-se.

- Sim? – perguntou a tartaruga – Ias dizer que está-se mesmo a ver que serás tu a vencedora?

- Isso não é verdade – resmungou a lebre, começando a mastigar a relva.

- O que faria de ti uma batoteira, porque já sabias o resultado da corrida antes de ela ter começado. Aliás, admite-me lá uma coisa… - a tartaruga olhou para os olhos da lebre e o seu sorriso estava mais aberto que nunca – tu só me convidaste para esta corrida para me poderes ganhar, não foi?

A lebre parecia ligeiramente irritada.

- Ou – disse a tartaruga – talvez... possivelmente… Me tenhas convidado para uma corrida para que me deixasses ganhar, e assim dar uma forte lição aos teus filhos e aos outros animais da floresta: uma lição de modéstia, de mérito, de igualdade para todos os animais. Perder uma corrida com uma tartaruga! Tu, a mais veloz da floresta! Se fosse o caso, cara lebre, penso que é de inegável justiça seres tu a vencedora; nem que seja porque te tornarias num mártir e melhor ainda, num exemplo!

A lebre estava sem palavras. A meta parecia agora mais próxima.

- Estás a chantagear-me – acusou a lebre, mastigando a relva com mais força.

- Não – disse a tartaruga, mostrando-se quase ofendida – Estava simplesmente a reflectir sobre o dilema que me colocaste. Afinal, quem deve ganhar?

A lebre mordeu o lábio, irritada, e deu um rápido pontapé à tartaruga, que se virou com um salto e ficou de barriga para cima, esperneando no meio da estrada. A lebre largou a correr, veloz como sempre, com os olhos na meta.

Anoiteceu. As tartarugas pequeninas vieram ajudar o pai a virar-se, e acompanharam-no a casa. Ficaram com ele no charco, ajudaram-no a tirar os grãos de areia dos olhos e da carapaça, e depois deixaram-no dormir. A mãe explicou-os que o pai tinha ganho uma corrida muito importante nesse dia, e precisava de descansar. E lá fora, por entre as árvores da floresta, todos os animais festejavam mais uma vitória da lebre mais veloz do mundo. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Samora 47


- A nossa capacidade de identificar algo como original é a medida da nossa ignorância – sentenciou Samora, enquanto visitávamos uma livraria de autores contemporâneos – Observe-me todos estes jovens talentos. Não passam de imitadores de outros que vieram antes deles e que, por viverem num mundo onde as coisas andavam a rastejar e não a correr, nunca chegaram a prémios e menções honrosas e exposições internacionais. Você olha para um livro destes e pensa, Que frescura narrativa, que ideia brilhante, que estrutura invejável, que  tem este? que toma ele de manhã para escrever assim? Pois quanto mais vezes repetir isso, meu caro, maior  a garantia de que é ignorante. Porque não sabe, nem deseja saber, que outros antes desse tiveram e aplicaram as mesmas ideias. Hoje já não há invenções.  

domingo, 21 de agosto de 2011

Samora 46


Samora era um pouco mais alto que eu e o seu corpo possuía a forma de uma pera gigante: pelo ventre, barriga e coxas um tanto inchadas, pelo afunilar da medidas à medida que se sobe até ao pescoço, e finalmente pelos dois queixos e pela cabeça oval. Cabelo claro, levemente suave, que Sara afagava com afrodisíacos movimentos do indicador. Olhos arredondados, nariz grego, bocarra em concordância com os enormes pedaços de carne que por vezes consumia. Tez pálida pela falta de exposição solar, e uma crónica e impenetrável camada de suor desde o couro cabeludo, atravessando a testa, e chegando à orla das sobrancelhas espeças: camada essa que limpava com assiduidade utilizando o lenço branco que transportava sempre consigo. Sempre houve em Samora uma presença notável, um andar pesado mas consciente, uns movimentos estudados, educados mas rudemente orgânicos, como se a sua constituição física moldasse continuamente o tecido do espaço-tempo e assim obedecesse ao mais alto desígnio da alma que transportava: o de desafiar todos os Homens e todas Coisas a compreenderem que lhe eram inferiores.  

O Patinho Horroroso


Era uma vez um espetacular Charco de 5 estrelas onde vivia a elite dos animais mais afortunados e as grandes personalidades do mundo animal.

O Charco era onde grandes empresários, como o Sapo Castro-Mayor, se dedicavam a oferecer vários carros, casas, brinquedos, póneis e idas as estrangeiro aos seus filhos, com o intuito de lhes demonstrar o quanto o dinheiro custa a ganhar; era onde figuras incontornáveis da vida pública, como a Cobra Pipita, se bronzeavam, escolhiam os seus vestidos, maquilhavam, preparavam-se para festas e, no geral, se fartavam de trabalhar; e onde famosos como a Libelinha Martinha garantiam que continuavam a ser modelos para as novas gerações, publicitando marcas de roupa, champôs e festas nas Tocas mais in da floresta.

Mas a nossa história centra-se numa família muito particular do Charco de 5 Estrelas: a Família Patto.

O pai Patto, um empresário de sucesso na área dos cogumelos exóticos, era um pato gordíssimo, com fatos dispendiosos de marca, que transportava sempre um maço de notas no bolso caso fosse preciso pôr gasolina ou exibi-lo a algum vizinho.

A mãe Patto, por seu lado, não ligava absolutamente nada ao dinheiro; prova disso é que não trabalhava, e preferia muito mais andar com o cartão de crédito do que com notas e moedas no bolso. Senhora respeitada em todo o Charco, participava em festas, cocktails e outros eventos de enorme importância cívica e social. Além disso, partilhava a lida da enorme casa onde a família Patto habitava com cinco emigrantes totalmente legalizadas e o cisne-jardineiro, musculado e atraente: enquanto as empregadas lavavam, esfregavam, cozinhavam e passavam a ferro, a mãe Patto supervisionava as operações, garantindo a coerência cromática das almofadas, a suavidade dos toalhões turcos, o tempero dos canapés; tudo isto sem deixar que o verniz das suas penas estalasse ao sol!

E, para afastar as más línguas que a acusavam se ser superficial, a mãe Patto costumava dizer que as aparências, para ela, eram pouco importantes quando comparadas com uma série de coisas das quais, assim de repente, não se conseguia lembrar.

Os pais Pattos tinham cinco filhos, todos eles com dois nomes próprios e uma personalidade individual e desenvolvida. Acompanhavam a mãe a todos os acontecimentos sociais, gostavam se sair com os amigos (mas só, claro, se fossem animais de bom gosto!) e, principalmente, de ler e desenvolver as suas capacidades cognitivas. Por isso, adquiriam, liam e decoravam todas as revistas cor-de-rosa e ficavam só ligeiramente felizes quando apareciam fotografados em alguma delas. “Nós defendemos muito a nossa privacidade”, declarou até a mãe Patto numa das muitas entrevistas que deu em sua casa.

A família Patto tinha uma existência calma e pacata; até ao dia em que uma notícia esmagou o bem estar generalizado e a possibilidade de a mãe Patto usar aquele vestido vermelho maravilhoso para a festa do Sapo Castro-Mayor: ela estava à espera de patinho!

Um dia, estava o pai Patto a preparar-se para sair mais cedo do escritório, o telefone tocou:

- Estou? O quê, já nasceu? Sim, vou já para aí!

O pai Patto desligou o telefone, pediu à secretária que cancelasse a noite no hotel, onde iriam discutir alguns pormenores estratégicos e técnicos sobre a empresa, e dirigiu-se ao hospital.

Mas a notícia de um novo rebento, inicialmente recebida com alegria, transformou-se em pesadelo. O pai Patto entrou no quarto da sua esposa e esta, a chorar, recebeu-o de braços abertos:

- É terrível!

- O que aconteceu ao patinho? Falta-lhe uma asa?

- Não!

- Faltam-lhe duas asas?

- Pior!

- Faltam-lhe duas asas e o bico?

- Quem me dera! – a mãe Patto, destroçada, limpou as lágrimas e gemeu: - Ele é horrível!

O pai Patto dobrou-se sobre o berço e soltou um grito. Lá dentro estava um grande naco de carne com meia dúzia de penas, uma cabecinha torta e distorcida, dois olhos estrábicos, e duas asinhas deslocadas e mortiças.

- É... é...

- Um desastre de viação! – gritou a mãe Patto – O que vou mostrar à revista Bicos quando me pedirem uma sessão fotográfica?

De facto, o Patinho era mesmo muito feio; aliás, era horrendo! Mas depois de muito apoio das suas trezentas amigas íntimas e de algumas palavras bonitas do marido, a mãe Patto concordou em levá-lo para casa sem o dar para adopção; e o Patinho, apesar de horroroso, cresceu junto dos seus irmãos como se fosse um pato normal.

Mas não pensem que o Patinho teve uma vida fácil! Chamava a atenção de todos os outros animais por causa do seu coxear, por ter os olhinhos tortos e por não ser campeão em nenhum desporto. Até os irmãos brincavam com ele, utilizando-o para treinar tiro ao alvo, como desculpa para terem más notas na escola, ou como forma de despertar a compaixão nos seus amigos mais populares!

O Patinho Horroroso teve, por isso, uma infância difícil. Cresceu na arrecadação (onde os fotógrafos nunca chegavam) e, sem amigos, foi-se entretendo sozinho. Parecia fazer de propósito para aborrecer os irmãos patinhos e os colegas de escola! Gostava de ler, de ver as notícias, de estudar e, pior do que tudo... ter opiniões!

Mas a situação conseguia ser ainda pior para o solitário Patinho Horroroso: a única pata de quem ele gostava no Charco, conhecida como Pata Patuxka, era tão, mas tão bonita e popular que nunca quereria sequer ser vista a falar com ele!

- No outro dia – disse um insecto chique, amigo dos irmãos do patinho horroroso, no recreio da Escola Privada do Charco – apanhei o teu irmão sentado num banco. Fui lá e nem lhe fiz mal nenhum, só lhe dei um empurrão e perguntei “O que estás a fazer, seu esquisito”? E ele respondeu-me: “Nada, estou a pensar!”

Os animais no recreio riram com gosto e uma lontra perguntou até o que era isso de “estar a pensar”. Os irmãos do Patinho Horroroso juntaram-se à festa e contaram aos amigos, por exemplo, que o patinho lia livros sem ilustrações, que não tinha o mínimo jeito para pentear as penas e que (imaginem!) preferia ficar em casa a estudar a ir à inauguração de uma discoteca nova!

O Patinho Horroroso, escondido a um canto, ouviu tudo e ficou muito magoado! Enquanto limpava as lágrimas do bico abaulado tomou uma decisão. Foi a casa, encheu a mochila da escola com livros, a escova de dentes e uma bússola e, sem dizer nada a ninguém, fugiu do Charco de 5 Estrelas!

- Estou cansado de ser maltratado! – dizia o Patinho Horroroso, caminhando pela estrada – Porque é que não me podem aceitar por aquilo que sou?

Caminhou durante muitos dias até chegar a outro charco, mais pequeno e pobrezinho, onde esvoaçava uma família de patos bravos.

- Olha, mamã! – disse uma patinha brava – Está ali um visitante!

Os patos bravos aproximaram-se todos do Patinho Horroroso e deram-lhe as boas vindas.

- De onde vens? – perguntou um dos patos bravos.

- Do Charco de 5 estrelas – respondeu o Patinho Horroroso.

- Uau! – disseram os patos bravos, surpreendidos; e começaram a fazer imensas perguntas ao Patinho Horroroso: quem era a sua família, se era rico, se conhecia a Libelinha Martinha, se tinha uma toca com vista para o mar... Até o convidaram para jantar!

E o Patinho Horroroso, educadamente, teve de recusar:

- Desculpem, mas tenho outros compromissos...

Como sabem, o Patinho Horroroso não tinha compromissos nenhuns, até porque nunca fora convidado para nada na sua vida. Ele só estava era triste por ninguém perguntar nada sobre ele, mas sim sobre os seus vizinhos! Foi aí que o Patinho Horroroso percebeu uma coisa muito importante...

- Já que não posso ser amado por aquilo que realmente sou, posso ser amado por aquilo que os outros vêm em mim! – disse o Patinho Horroroso, cheio de esperança – Tenho de regressar ao Charco de 5 Estrelas!

Mas primeiro o Patinho Horroroso dirigiu-se a um edifício enorme que tinha à entrada uma tabuleta que dizia:

DERMOLASER: Sinta-se bem consigo mesmo!

- Senhor doutor! – disse o Patinho Horroroso, cheio de vontade de chorar - Preciso urgentemente de auto-estima e só o conseguirei quando for bonito e atraente para as outras pessoas! Isto com personalidade não vai lá!

O médico olhou para o Patinho Horroroso e deu um passo atrás:

- Pela tanga de Mogli... Você é um caso extremo! Mas fiquei comovido pelo seu mau aspecto e, claro, pela sua força interior. Vou operá-lo!

- Não tenho é dinheiro para pagar a operação... – murmurou o Patinho Horroroso.

- Não se preocupe, Sr. Patto – disse o médico com um sorriso – A sua mãe tem conta aberta aqui na clínica!

Durante duas longas e penosas semanas o Patinho Horroroso foi submetido a uma profunda transformação pessoal. Fez um tratamento de hidratação para as penas, ginástica localizada, solário e, finalmente, uma bicoplastia.

- Parabéns, senhor Patto! – disse o médico, no final do processo – Está um pato diferente! Quer ver o resultado final?

O Patinho Horroroso, nervoso, disse que sim; e quando se viu reflectido pelo espelho nem queria acreditar nos seus olhos (que, a propósito, estavam direitos e azuis)! Tinham-no transformado num belíssimo cisne com asas simétricas, um bico dourado, penas branquíssimas e um pescoço comprido e elegante.

- Agora sim tenho orgulho no pato que sou – disse para consigo o ex-Patinho Horroroso, comovido.

O seu regresso ao Charco de 5 Estrelas foi glorioso: a mãe Patto aproveitou os restos da festa que dera em honra da fuga do seu filho horroroso e celebrou, felicíssima, a chegada daquele cisne lindo. Os irmãos, também contentes, quiseram ser fotografados ao lado do irmão, e no dia seguinte sairiam na capa da Bicos como uma família verdadeiramente unida. Todos os animais do Charco quiseram meter conversa com ele e todos lhe elogiaram a inteligência, os estudos, a postura e a atitude confiante!

E a Pata Patuxka, o amor de infância do Patinho Horroroso? Veio convidá-lo para ir com ela a uma festa de Verão!

- Eu sou o mesmo pato que tu negaste há uns tempos atrás! – disse o ex-Patinho Horroroso, envergonhado.

- Sim, mas agora posso ver o quanto és realmente especial! – respondeu a Pata Patuxka, abraçando-o a tempo de ser apanhada pelo flash de um fotógrafo. 

Foi assim que o Patinho Horroroso aprendeu que a aparência não é tudo num pato, mas o pato deve fazer tudo pela aparência! O Cisne em que se transformou foi finalmente aceite no Charco de 5 Estrelas... e viveram todos muito belos (e felizes) para sempre.