domingo, 29 de abril de 2012

Cabeças #1


A cabeça dele tinha a forma de uma pêra: larga e bonacheirona em baixo, com três queixos em ordem crescente de largura, e em cima uma testa semelhante a um pequeno ecrã de televisão (brilhante como eles devido à luzidia camada de suor). O cabelo emoldurava a desproporcionalidade facial: alto e felpudo em cima, separado por um risco ao meio e descendo pastosa mas magistralmente como as asas dobradas de um pato sujo; e à medida que descia pela nuca afunilava-se num rabiosque de cavalo e escondia-se, como que envergonhado, atrás do pescoço abaulado. O queixo era uma pequeníssima protuberância, arredondado como uma ameixa, e os dois olhos pontiagudos, o nariz espalmado e a boca de menina estavam em cima uns dos outros no centro da cara. 

História em Segundos #5


Aros gostava de ler. Deixou-se influenciar por um certo livro que lhe falava do tempo. O tempo, dizia-lhe o livro, é relativo: as coisas acontecem devagar quando nos movemos mais depressa. Aros chocou-se e chorou. Meteu-se numa nave emprestada e andou a acelerar pelo espaço. Contou os dias e os cabelos brancos, e reparou que a proporção lhe agradava. Quando regressou à Terra vinha refeito, mas deu com um bisneto que não reconheceu a viver em sua casa. Foi até uma árvore e enforcou-se.  

quarta-feira, 25 de abril de 2012

"Pega" (curta)

"Pega" foi filmada por mim em Monsaraz e montada já no conforto do lar como um exercício sobre pontos de vista. O resultado pode ser visto clicando na imagem.





segunda-feira, 23 de abril de 2012

Quem é Renato Rocha?


Renato, muito obrigado por ter aceite esta entrevista.
Isto é para quê? Uma revista?
Para documentação. Estou a investigá-lo. A tentar perceber quem é o Renato Rocha. Pode tentar resumir-se a si próprio em meia dúzia de linhas?
Posso, pois. Ora bem: tenho vinte e um anos, olhos castanhos, cabelo extremamente difícil de cortar e um metabolismo acelerado que me permite perder ou ganhar peso com demasiada facilidade. Sou aquele tipo de pessoa que volta para trás quando trouxe sem querer alguma coisa que não pagou do supermercado. Sou extremamente curioso e desenvolvo facilmente um interesse tão grande por uma tão grande quantidade de assuntos que nunca tenho tempo para me dedicar verdadeiramente a nada.
Mas sei que é um escritor assíduo.
Isso sim. Procuro escrever todos os dias, se bem que nos últimos meses tem sido praticamente impossível.
Algo em especial? Deixe-me adivinhar, escreve um diário onde debita os seus pensamentos e reflexões profundas, incluindo todo o tipo de filosofia barata, melodramática e fatalista típica dos adolescentes.
Pelo contrário. Não que tenha nada contra ser melodramático, acho até que cada um deve encontrar a sua forma de expressão ideal. Só que prefiro as histórias ficcionais, a sátira, etc. Acontece-me com facilidade inventar personagens, temas, lugares, situações, e escrevo sobre eles. Às vezes não consigo adormecer porque a minha criatividade liga o piloto automático e só pára de madrugada. Espero que isto não pareça pretensioso.
Cá agora. E onde podemos ler essas suas histórias?
No meu blog. Quer que diga o endereço?
Não sei, o blog é seu.
trajectoria-aleatoria.blogspot.com. Basta ir ao Google e pesquisar “Trajectória Aleatória”, em princípio aparece logo.
Considera que o seu blog é uma boa representação do Renato Rocha?
Isso terá de perguntar a quem me conhece bem. Mas tenho mais estabilidade mental do que poderá parecer ao leitor comum, e sou uma pessoa mais carrancuda e séria do que esta entrevista pode deixar transparecer.
Sei que tem um interesse profundo por certos temas, como ciência e religião.
Sim, é verdade.
Quer ser mais específico? Fale-nos do seu interesse particular em biologia evolutiva, ou talvez sobre a forma como lhe fascina a religião como um processo natural e comum a todas as civilizações.
Para alguém que faz  as perguntas parece-me muito bem informado. Você já sabe tudo sobre mim, caramba. O que quer que lhe diga?
Fale-me agora sobre desporto. Gosta de desporto?
Não.
Nem de futebol? Toda a gente gosta de futebol.
Pois eu não gosto.
Mas sei que há um desporto de que gosta…
Vá, diga lá. Está mortinho por dizer!
Homem, tenha calma. Eu só estou a tentar estimular uma conversa.
Eu não preciso cá de estimulações. Faça-me uma pergunta imparcial, sem segundas intenções, que eu respondo. Agora se é para estar a responder por mim vou-me embora e você fica aqui sozinho a escrever uma entrevista a si próprio.
Há algum desporto de que goste, assim só por acaso?
Sim. Gosto e pratico danças de salão.
Isso é aquelas coisas que vemos na televisão com os senhores afeminados a mandar as senhoras ao ar?
Mais ou menos. Digamos que as danças de salão são mais exigentes e fisicamente desafiantes do que muita gente pensa. Actualmente encontro-me em pré-competição e a dar aulas a iniciados na modalidade.
Isso é fantástico. Voltemos à sua escrita. Como é a sua rotina de trabalho?
Não existe. Sempre que tenho tempo e vagar sento-me numa cadeira, ligo o computador, começo a mexer os dedos e mexo-os até ter escrito o que quero até ao fim.
Qual é o seu maior defeito como escritor?
Total ausência de poder de síntese. Veja bem, ainda agora podia ter dito “escrevo demais” mas não: disse especificamente que tenho uma “total ausência de poder de síntese”.
Aliás, nem se nota nada pelo tamanho desta entrevista. Tem algum momento da sua carreira como escritor amador que gostasse de partilhar com os nossos leitores?
Ah, mas isto agora tem leitores?
Pode ter, por isso é melhor fazer boa figura.
Uma vez participei num concurso literário na minha escola secundária e ganhei o primeiro lugar. Toda a gente fez uma grande festa. Depois vim a descobrir que tinha sido o único a participar.
Ena, grande bronca. E não contou a ninguém?
Contei, mas ninguém se importou. Para os meus amigos e família era como se tivesse ganho o Nobel.
E para além de escrever como ocupa os seus tempos livres?
Com imensas coisas. Adoro ler. Gosto de estar com a minha namorada e de dançar. Gosto de correr...
Não me diga que usa uns daqueles calções fininhos que se agarram às nádegas...
Gosto de conversas interessantes, gosto de comer e gosto de ignorar provocações parvas. Gosto de ver bom cinema através de mecanismos em relação aos quais prefiro não me pronunciar.
Qual é a sua opinião quanto à pirataria?
Próxima pergunta.
Como vê o futuro?
Com cartas de Tarot. Ou búzios. Conhece outra maneira?
E o que vê assusta-o?
Meu caro, eu estava a ser sarcástico.
Ah.
Sabe tanto sobre mim e não sabe que estou a ser sarcástico?
Você diz isso cá com uma cara...
Suponho que o que queria perguntar era se o futuro, como se adivinha neste momento, me assusta. Era isso?
Era pois.
Sinceramente não lhe sei dizer.
Que resposta... Qual é para si o emprego perfeito?
Um em que me paguem para fazer algo que goste.
Um momento especial?
Ler à beira mar.
Uma recordação feliz?
Os Verões da minha infância.
Elvis ou Beatles?
Beatles.
Praia ou montanha?
Dentro de casa.
Cães ou gatos?
A minha tartaruga.
Você deve estar a brincar comigo. Sabe o que é uma dicotomia?
Sei.
Então responda lá decentemente. Cães ou gatos?
Gatos, pronto.
O que dizem os seus olhos?
Han?
Deixo-lhe a última palavra.
Não tenho grande coisa a acrescentar, sinceramente.
Sendo assim ficaremos por aqui. Renato Rocha, muito obrigado por este bocadinho.
De nada, eu é que agradeço a oportunidade. 

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Crime e Castigo


Então: estava eu calmamente a enterrar uma pessoa que tinha acabado de matar à paulada quando dei com a pá em qualquer coisa dura. Pensei logo: outra pedra, caramba. Experimentem estar com pressa para enterrar um tipo que ainda por cima não é nada magro e encontrar pedras de cinco em cinco minutos. Lá a tentei escavar a custo. Tirei-a da terra, limpei-a com a manga e engoli em seco: estava a segurar num pedaço de ouro puro.

Era do tamanho do meu punho. Coisa enorme e pesada. Pensei: quem é que me enterrou isto no jardim sem eu dar por isso? Cheguei logo à conclusão que tinham sido provavelmente uns piratas ou contrabandistas marroquinos a fugir à polícia que por ali tinham passado e, num instantinho, enterrado o seu saque a um metro e tal de profundidade (os mortos enterram-se bem fundo para que os cães não os encontrem enquanto esgravatam à toa).

As minhas reflexões comeram-me cinco ou dez minutos, não sei bem; foi o suficiente para a estúpida da minha porteira vir coscuvilhar por entre as sebes do meu jardim, ver o gordo morto e eu de pá em punho, e ir chamar a polícia. Quando dei por mim estava com a polícia à perna. Literalmente. Um polícia agarrara-se à minha perna para não me deixar fugir; e o parvo empurrou-me com tal força que o pedaço de ouro saiu disparado das minhas mãos e foi acertar na testa da porteira, que coscuvilhava ainda por entre as sebes.

- Renato Almeida Rocha – disse um detective enorme, de bigodes e gabardine, comendo donuts e bebendo café como nos filmes – O senhor está preso pelo assassinato deste gordo que aqui está deitado e da sua porteira, Dona Clotilde.

- Eu não matei a porteira.

- Então olhe lá para ela.

Olhei: estava de facto estendida no chão, com sangue na testa e o pedaço de ouro ao lado, as suas mãos flácidas e pálidas segurando ainda a última edição da TV Guia. Ainda tentei ler os últimos desenvolvimentos na vida pessoal do Goucha mas fui interrompido pelo polícia que voltou a atirar-se  para cima das minhas pernas e a mandar-me ao chão.

- Pare lá quieto, que estou a conversar com o criminoso – disse o detective, e o polícia atirou-se às pernas dele a chorar e a pedir desculpa.

- É uma coisa que me dá, sô detective, atiro-me e pronto.

Consolei-o:

- Deixe-se disso, não me aleijou nem nada.

- Mas se não fosse eu – disse o polícia chorão, apontando para a porteira – A Dona Amélia ainda estaria viva.

- Estaria agora, com um assassino a viver no seu rés-do-chão – rosnou o detective, olhando para mim e emborcando um donut recheado com chocolate branco.

- Um assassino? – gritou alguém. Olhei para o meu lado esquerdo (ou direito, não sei precisar já qual; foi um deles): trepando pela porteira morta acima e procurando atravessar a abertura entre as sebes estava Paulo Marques, o Famoso Advogado.

- Olha quem é ele – disse eu, reconhecendo-o.

- Quem é este? – perguntou o detective dos donuts.

- Paulo Marques, advogado criminal – disse o homem de fato impecável. Era daquele tipo de pessoas que parece ter acabado de tomar banho e vestir-se na secção mais cara do El Corte Inglés – muito prazer.

- O prazer é meu. Quer um donut? – perguntou o detective.

- Que vem a ser isto? Aqui o Renato Rocha, o meu cliente, foi apelidado por si de “assassino” e “criminoso”. Então e o advérbio?

- Qual advérbio?

- Alegadamente.

- Sim, mas alegadamente que advérbio?

- Alegadamente é um advérbio.

- É esse o advérbio a que se referia?

- Definitivamente.

- Gosta de advérbios, você.

- Decididamente – respondeu Paulo Marques com um sorriso de anúncio de pasta dentífrica.

- Eu sou um mero estudante de cinema, tenho lá forma de lhe pagar... – avisei-o logo. O advogado conduziu-me o olhar para o seu bolso: lá dentro estava o pedaço enorme de ouro. Piscou-me o olho, ajeitou a gravata e foi até ao detective dos donuts:

- Que provas tem para acusar alegadamente o meu cliente?

- O seu alegado cliente? Todas.

- Não, o cliente não é alegado. O que é alegada é a acusação.

- Mau. Você disse “alegadamente o meu cliente”. Ou ouvi mal?

- Típico erro de português – interveio o polícia que agora se abraçara às pernas de Paulo Marques – Se o advogado quisesse dizer isso a formulação correcta seria “Que provas tem para acusar o meu alegado cliente”.

- Assim se fala em bom português – acrescentei eu, de indicador direito espetado.

- Que provas tem para acusar alegadamente, vírgula, o meu cliente que não é alegado, é mesmo a sério?

O detective gordo limitou-se a retirar um donut com pepitas de chocolate negro de dentro do bolso da gabardine e apontar para o tipo gordo que eu alegadamente matara alegadamente ontem à noite, com alegadamente uma arma que alegadamente esperava que a polícia não viesse a alegadamente encontrar.

- Vejo um pobre coitado pálido. E depois? – perguntou Paulo Marques.

- Está morto.

- E como sabe que foi o meu cliente quem o alegadamente matou?

O detective levantou o dedo mindinho e agitou-o à frente do nariz de Paulo Marques.

- Se é só isso que tem para me dizer...

- Ouça lá – resmungou o detective, parando de mastigar: a conversa tornava-se séria – Este tipo morto escreveu uma carta endereçada à família que diz o seguinte – retirou uma carta com nódoas de donuts do bolso e leu-a em voz alta – “Querida família, foi o Renato Almeida Rocha que me matou. Com amor, Vicente.”

- Portanto, tem uma carta do falecido Sr. Vicente...

- Alegadamente falecido – interrompeu o polícia à perna de Paulo Marques – o médico legista ainda não chegou para confirmar o óbito.

- O alegadamente falecido Sr. Vicente diz nessa carta que foi o meu cliente quem o alegadamente matou?

- Diz pois, está aqui.

- E como sabia ele o nome completo do meu cliente?

- Viu-lhe o BI.

- Alegadamente...

- Alegadamente viu-lhe o BI.

- E onde está a arma do crime?

- Dentro da churrasqueira – disse o detective.

“Sacana da porteira”, pensei.

Um polícia aproximou-se com uma espada samurai igualzinha à que eu tinha no quarto ainda há uns dias atrás, mas mesmo assim diferente da minha em quase tudo, mesmo quase tudo.

- Esta espada samurai é sua? – perguntou-me Paulo Marques.

- Ora essa, eu sou lá pessoa de ter isso em casa.

- Diz aqui – resmungou o detective do donut com frutos silvestres – “espada dedicada ao Renato Almeida Rocha. Ass. Mestre Xiung – Iang”.

Paulo Marques levantou um dedinho:

- Alegadamente dedicada...

- Não foi isso que o Mestre Xiung-Iang escreveu aqui. Mas só para confirmar...

O detective assobiou alto. Apareceu um polícia escoltando um velho mestre de armas chinês, ou coreano, ou japonês, ou vietnamita, os olhos deles são todos iguais, aliás, nem sei quem é, nunca o vi mais magro ou mais gordo ou a fazer espada nenhuma.

- Mestre Sing Pung?

O tipo chinês vez uma daquelas vénias com as mãos metidas dentro das mangas.

- Confirme lá a veracidade desta espada fachavôr – o detective estendeu-a ao coreano, que a analisou durante alguns segundos, e disse:

- ーズンの勝率が同率首位 !

- Que bronca, eu podia jurar que o que ele disse foi em chinês… - comentou Paulo Marques.

- E depois? - resmungou o detective.

- Toda a gente sabe que os samurais eram japoneses.

- Toda a gente sabe que os chineses fazem de tudo e mais alguma coisa, até galos de Barcelos.

- Alegadamente fazem tudo e mais alguma coisa. Oh Sr. Detective, não acha que a sua testemunha está descreditada?

- Fui eu buscá-lo ao Japão para isto? – perguntou o polícia que escoltava o mestre vietnamita.

- Ao Japão! – berrou logo Paulo Marques.

- Ao Japão – rosnou o detective, olhando de soslaio para o polícia que escoltava o mestre coreano – porque o mestre chinês estava lá a passar férias com a sua família de chinesinhos. Não é assim, oh Mestre Feng Shiu?

-日本国!

- Agora já fala japonês? – perguntou Paulo Marques – Isto é um escândalo de proporções nipónicas.

O polícia que Paulo Marques tinha à perna soltou uma gargalhada, mas foi o único.

- Chega! – berrou o detective. Apontou para mim - você, vem comigo para a esquadra.

- E eu vou também – disse logo Paulo Marques. Depois murmurou-me ao ouvido – Não se preocupe, eles não têm nada contra si.

Eu disse que sim com a cabeça e lá aceitei ser algemado, sabendo que tinha o melhor advogado criminal a trabalhar para mim. Ao menos já não tinha de acabar de cavar o buraco e enterrar o gordo. 

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Livro de estilo

Primeiro que tudo deixem-me esclarecer-vos o seguinte: qualquer mente dedicada a qualquer trabalho criativo funciona melhor quando incentivada por um sistema semelhante àquele que regula os funcionários públicos. Um horário, uma lista de objectivos, obrigações contratuais e uma ou outra pausa para café e um pastel de nata são elementos imprescindíveis para afastar a preguiça e a procrastinação, dois dos maiores inimigos de quem quer produzir o que quer que seja.

Como jovem aprendiz de argumentista, escritor, bailarino e ser humano, não me excluo do que acabei de descrever; de facto, essa ideia romântica de que o artista perfeito é aquele com liberdade total para fazer piqueniques, relaxar num retiro Tibetano e, nos intervalos dos seus profundos momentos de introspecção, dedicar-se à execução d’A Obra é um absoluto mito urbano; e se funcionou para uns quantos génios é porque foram génios e não tipos como eu, não génios, que se atrevem a enveredar por estes caminhos. Desconfio de qualquer pessoa que, na sua ânsia de se aproximar dos ideias intelectuais, culturais ou artísticos que admira, se afasta com afinco (e eficiência) da realidade do dia-a-dia; e isso inclui fazer o pequeno almoço, pisar cocó de cão e chegar a casa às tantas depois de um dia inteiro de trabalho. “Criar” (o que quer que isso signifique) é um acto que precisa de combustível, e esse combustível é a vidinha de todos os dias e não os trabalhos de outros artistas que tentamos agradar e imitar.

Daí que não tenha sido uma surpresa por aí além a descoberta de que o final do meu blog, na sua forma passada, era na verdade o final de uma obrigação necessária. Perante quem? Ninguém; a entidade a que chamamos “Internet” tem mais coisas para fazer do que ler-me, e poucos e silenciosos eram os que me acompanhavam. Não se pode dizer que estivesse, naqueles tempos, a escrever para alguém; redigia com igual afinco textos que despertavam simpáticos comentários por parte de alguns leitores como histórias que ainda hoje, sem reacções ou comentários, ganham pó nos meandros do blog.

O final desta obrigação necessária, deste incentivo a escrever, levou inexoravelmente a uma estagnação total na minha produção “literária”, nome fino utilizado para me referir aos ocasionais textos que sempre redigi. Fora ocasionais trabalhos de escola e um ou outro texto, geralmente sem interesse e raramente terminado, poucas foram as vezes em que abri o Word e me sentei para bater violentamente com a testa no teclado; processo que me despertava, e sempre despertou, o mais masoquista e genuíno prazer.

Tal seria irrelevante não fossem os meus objectivos profissionais passarem exactamente pela escrita (por vezes esqueço-me daquilo que estou a tentar tornar-me a longo prazo, tais são as preocupações e obrigações do dia-a-dia para atingir esse mesmo objectivo): seria como estar a estudar para ser nutricionista e só ter tempo de comer merendas mistas e coca-cola ao almoço. É um mistério como vou chegar a pagar o gás e a casa com aquilo que escrevo se, no decorrer do meu processo de educação, faço de tudo e mais alguma coisa excepto escrever.

Esta situação tem de ser alterada. Voltemos, portanto, à analogia inicial com o funcionário público: como tornar o seu serviço mais produtivo? Atribuindo-lhe objectivos específicos, explicando-lhe qual o seu lugar na bela e oleada fábrica que é a administração do ministério, dando-lhe palmadinhas nas costas de cada vez que acerta com o carimbo no despacho certo. Em suma: há que apertar-lhe o pescoço e obriga-lo a mexer-se, retribuindo-lhe com um biscoito finalizada a tarefa proposta. O meu biscoito, e a minha tarefa, são este blog.

Renasce, portanto, das cinzas; com novo aspecto e novos objectivos. Não se pode dizer que eu tenha perdido familiares, viajado ao Tibete ou alterado a minha visão filosófica do Universo; mas que estou diferente, estou; e diz o lugar-comum tão piegas como verdadeiro que continuarei a mudar indefinidamente. Isso vai reflectir-se, com certeza, no rumo que der a este meu espaço. Por agora, vejamos o que este blog não vai ser:

Não vai ser um espaço de lamúrias pessoais ou desabafos sobre temas que me apaixonam demasiado. Isso tornaria tudo parcial, partidário e, genericamente, aborrecido para as outras pessoas. Por vezes esquecemo-nos que somos muito menos interessantes do que pensamos.
Não vai ser lugar de numerosas e (des)interessantes discussões sobre os temas que encheram, anteriormente, este blog: religião, ciência, cepticismo.

Não vai ser um conjunto de opiniões pessoais e arrogantes, por mais justificadas que estas pudessem ser.

Não vai ser um local de partilha de informações pessoais. Para isso existem milhentas redes sociais onde podemos violar a nossa própria privacidade com mais à-vontade.

Então, o que sobra? Um espaço onde pretendo realçar as minhas histórias, seja na forma de contos seja na forma de lombrigas, longas e divididas em episódios, capítulos, volumes, tomos; onde, lá de vez em quanto, posso cometer o abuso de partilhar qualquer texto de opinião que considere relevante e um ou outro vídeo (porque agora descobri que “escrever com a câmara” é tão divertido como escrever ao teclado); e onde, acima de tudo, não procurarei evitar a minha própria personalidade para, sem ela, corresponder a qualquer ideal “artístico”.

As rubricas poderão voltar tal como estavam, quem sabe nascerão algumas novas. A periodicidade de publicações será ora frenética, ora espaçada, ora uma vergonha. Tudo dependerá de muito, e pouco ficará nas minhas mãos senão vir cá quando puder.

Terminemos o que já vai longo. Considerem aplicado o desfibrilador.

Cumprimentos,
O Autor