domingo, 17 de janeiro de 2010

Queratina

Quando o tipo percebeu que a sua vida, daquela maneira, não ia resultar mesmo, resolveu destituir-se de preconceitos e instituir na sua vida a máxima que sua mulher sempre lhe tentara impingir, e à qual fugira sistematicamente: a vida é curta, e há que aproveitá-la.

Não que ele fosse completamente infeliz, nada disso. A sua mulher era uma esposa amorosa, romântica e óptima dona de casa. Viviam num bom apartamento numa boa zona da cidade. Ele tinha um emprego estável como consultor financeiro, onde ganhava dinheiro a fazer com que os outros ganhassem ainda mais dinheiro do que ele. A sua vida é que, para todos os efeitos, caíra na monotonia completa.

Levantava-se de manhã, tomava um banho quente, escolhia a gravata, mastigava umas torradas, bebericava o café enquanto via as informações de trânsito na televisão, pegava na mala e ia até ao quarto. Com um joelho empoleirado no colchão, beijava a testa da esposa e despedia-se com um

- Até logo, querida.

Que não devia nada à criatividade, mas era carregado de amor e afectividade. Metia-se no elevador, metia-se no carro, metia-se no trânsito, metia-se no elevador outra vez (agora outro, o da empresa) e metia-se no seu cubículo claustrofóbico e insignificante, com um retrato emoldurado da mulher e uma bola anti-stress como únicos objectos pessoais. Afundava-se em facturas, papéis da bolsa, informações detalhadas sobre contas e levantamentos bancários. Almoçava sempre no mesmo restaurante, onde conhecia o empregado pelo nome e comia sempre o mesmo prato, bife de peru com salada sem cebola e uma fatia de torta de maçã. Voltava para a papelada até às seis e meia da tarde. Voltava para casa, onde a esposa o esperava com um tacho fumegante e um beijo de boas vindas por cima do avental com florinhas. Viam televisão até se irem deitar, e raramente levavam a cabo aquelas coisas habituais dos casais mais modernos. Adormecia sem dar muitas voltas na cama, e pronto. Basicamente, era isto.

Pelo que a sua esposa, que o via nesta rotina sufocante todos os dias, lhe dizia e com razão:

- Tens de arranjar um hobby, uma ocupação qualquer, para te distraíres e arejares a cabeça. Não me digas que és feliz com aquela merda de trabalho, porque se o disseres saberei que estás a mentir. És um tretas, tu, sabias? Sempre foste. Sempre tiveste imensos sonhos e ambições, dizias que ias ser isto e aquilo, e no fim o quer tu és é isso mesmo, um merdas. Sabes que mais? És um merdas.

E o tipo dizia que sim com a cabeça, conformado. Sabia muito bem que aquilo não era forma de se tratar o próprio marido, mas no fundo a voz da sua mulher era uma cópia fiel da voz da sua consciência, que lhe dizia o mesmo só que em vez de ser detrás do avental com flores era atrás da sua orelha. Sabia perfeitamente tratar-se de um merdas sem personalidade, pelo que o mergulho na rotina diária parecia-lhe uma desculpa poderosa o suficiente para poder dizer que aqueles seus sonhos de infância, com os quais colorira a sua adolescência e que rapidamente se desvaneceram nos primeiros anos de adulto, eram nada mais nada menos do que isso mesmo: sonhos.

Mas esta sua falta de convicção, esta sua mania de justificar a falta de atitude com a sua própria falta de atitude, atiraram-no para um ciclo vicioso do qual, bem analisada a questão, só havia duas saídas: uma por cima, para a glória corajosa, e outra por baixo, pelo colapso nervoso. Na primeira opção restava-lhe despedir-se do emprego que lhe secava o espírito e a personalidade e procurar um caminho pelo qual pudesse seguir com verdadeira e arrebatadora paixão, como aqueles empresários que largam tudo para se refugiarem num templo tibetano em busca do sentido da sua existência. Na segunda opção, restava-lhe mais do mesmo, a repetição interminável dos dias e dias e dias passados a fazer exactamente o mesmo que fizera no dia anterior e que voltaria a fazer no dia seguinte. Ora, isto assustava-o. Felizmente, assustava-o. A voz da sua consciência, bem como a voz da sua amada esposa, regressavam-lhe forçosamente à memória, dizendo:

- Porque tu no fundo, querido, és um merdas. E eu digo isto porque te amo, porque te amo mesmo. Vês como te estou a pôr a mão na cara, a fazer-te festinhas no cabelo, e a falar-te desta forma calma? É porque te amo e porque quero o melhor para ti, e o melhor para ti não é esta vida que levas. E exactamente porque te amo, digo-te: és um merdas. Antes que te afundes num esgotamento qualquer e te vejas velho, enrugado e de fraldas, sem teres atingido o que quer que fosse que alguém deva atingir para justificar a sua existência, por favor, vê lá se mudas de vida e se deixas de ser assim. Esse merdas.

De maneira que o tipo decidiu mesmo mudar de vida e ganhar alguma auto-estima. Fazer algo da sua vida, provar a todos mas principalmente a si mesmo que era único, que era especial. Queria ser recordado, queria ficar para a história, queria fazer o que quer que fosse que o fizesse sentir-se completo. No dia seguinte meteu-se no carro e foi até ao emprego, onde entrou com determinação no escritório do patrão avisando que se vinha despedir e desejar felicidades. Saiu da empresa com um revigorado amor próprio, pois até há cinco minutos atrás se achara incapaz de algo tão catastrófico.

Sorrindo pela primeira vez em vários anos, correu até casa a dar a boa nova à mulher, que quase chorou de emoção e o abraçou com violência. O tipo foi então sentar-se na sala, e falou de todos os seus planos à mulher. Confessou os seus sonhos e pesadelos, abriu o seu coração e emocionou-se ao relembrar a sua infância. Limpas as lágrimas, a mulher perguntou-lhe o que iria ele então fazer da sua vida. O tipo parou para pensar nisso pela primeira vez, já que tanto entusiasmo lhe enevoara a capacidade de prever o seu próprio destino. Mais terra a terra, enumerou os seus critérios: teria de fazer algo invulgar, drástico, dramaticamente diferente do que fizera até hoje, e que lhe trouxesse fama e lugar na História. Não podia ser nada caro ou que exigisse dispêndios económicos, pois as suas poupanças estavam a zeros. O desespero por encontrar uma solução que parecia impossível estava a tomar conta das suas emoções. Já falava até em voltar atrás e ir implorar ao ex-patrão que o readmitisse na empresa quando a mulher, roendo as unhas (o que sempre a ajudara a pensar), parou por momentos, de olhos perdidos no vazio, e fez uma sugestão imprevisível:

- E se tu deixasses crescer as unhas? Sim, as unhas! Quebravas o recorde mundial, ganhavas fama e dinheiro, e nem precisavas de sair de casa! Daqui a uns meses ou uns anos, sei lá, tinhas um metro de unhas. Eu nem sei de quanto é o recorde, mas deve andar por aí. E entretanto tinhas tempo mais do que livre para ler, para ver televisão, para ir ao cinema, para passearmos juntos… O que achas?

Ao tipo a ideia pareceu-lhe uma maravilha; mas perguntou à mulher, e com razão, como se governariam lá em casa sem ele a trabalhar. A mulher explicou-lhe que o emprego dela era mais do que suficiente, com um sacrifício aqui e ali. Abraçaram-se. Beijaram-se. Fizeram amor e dormiram descansados até à hora do jantar, onde brindaram às unhas dele e decidiram os pormenores.

Só deixaria crescer as unhas de uma das mãos (as dos pés estavam fora de questão, por todas as dificuldades de locomoção envolventes), nomeadamente as da mão esquerda, e por razões óbvias. Assim, poderia usar a mão direita com a qual escrevia e cortava o pão, e conservaria mais autonomia do que se deixasse crescer as dez unhas todas ao mesmo tempo. Imaginando-se com metros de unhas penduradas pela mão, achou improvável não ser convidado para inúmeros programas de variedades, restaurantes gourmet ou festas importantes. Os seus colegas da empresa espreitariam detrás das facturas com inveja, ao vê-lo ser entrevistado no jornal da noite. Alugaria as suas unhas às empresas de publicidade. Faria anúncios para refrigerantes. Faria dinheiro, bom dinheiro, e com uma única acção: sentar-se em casa e esperar que as unhas lhe crescessem.

Quanto mais discutiam o assunto melhor a ideia soava na cabeça do tipo, que adormeceu pela primeira vez em muito tempo com um sorriso no rosto e uma luzinha ao fundo do túnel da esperança. Por agora era esperar. No dia seguinte, começou imediatamente a tratar das suas unhas: aparou-as com cuidado e aplicou-lhes verniz. Mediu-as, e registou o resultado numa pequena ardósia à entrada da cozinha, que servia para deixar recados rápidos. O ritual seguiu-se por vários dias e semanas, e lentamente a ardósia registava valores exponencialmente mais altos. Quando o comprimento médio das unhas era de 2 centímetros (distância medida desde o início da unha até à ponta exterior), a sua mulher comprou um bom vinho e comemoraram com um jantar romântico de sushi. Nunca tinham sido tão felizes.

Numa dessas noites calmas e românticas, em que os dois se sentavam na sala a ver televisão e a conversar um com o outro, a sua mulher parou de ler o jornal, pousou-o no colo e olhou para um canto da sala com os olhos semicerrados, em completa introspecção.

- Temos de criar um site. – disse ela finalmente, e o marido, procurando abrir uma lata de Coca-Cola com a mão direita, olhou para ela com uma sobrancelha levantada.
- Sim, é isso – disse a mulher – temos de criar um site.

Assim foi. Um amigo do tipo, aliás seu antigo colega na empresa, foi convidado para ir lá a casa jantar. Impressionado com a escolha de vida do antigo colega, e entusiasmado com a ideia do site, dispôs-se logo a utilizar os seus conhecimentos de informática para o efeito. Os três fizeram um brainstorming. Dois dias depois, o “unhas.com” estava disponível a quem o quisesse ver. Incluía fotografias das unhas de vários ângulos diferentes, uma descrição de toda a sua história e um pequeno contador que permitia seguir, em tempo real, o número de horas passadas desde que as unhas tinham começado a crescer, bem como o seu respectivo comprimento.

Dois dias depois da criação do site, havia 76 comentários no fórum do site. Ao fim de uma semana, 345. Depois de duas semanas, chegava aos 2.000. Um jornalista procurou-os, e a história do tipo apareceu na secção de “Tempos Livres” de um diário regional. Os comentários no seu site dispararam, e o seu telefone começou a tocar. Duas semanas depois, assinou contrato com uma empresa de roupa desportiva para criar uma linha de t-shirts dedicada a si próprio. As vendas das t-shirts através do site não só cobriram as suas despesas indispensáveis como chamaram a atenção de uma empresa de agentes, que se ofereceu para o representar. A sua mulher agradeceu enormemente o convite, desejou boa tarde e desligou. O tipo, suando pela cara abaixo, perguntou-lhe porquê.
- Estes tipos querem explorar-te, querido. Querem que sejas um fantoche autêntico. Escolhem-te as campanhas e chupam-te 30 por cento. Isso não vai acontecer, não te vou deixar ser explorado desta forma. Estamos bem assim, não estamos? Estamos. Então pronto.

O tipo, lá no fundo, achou que aquela era uma oportunidade desperdiçada. Pegou numa calculadora, digitou o número de euros ganhos na venda das t-shirts, calculou 30% desse valor e chegou à conclusão de que, se naquele momento tivesse um agente, esse mês não pagaria as contas da luz e do telefone. Sentindo-se melhor, agradeceu à sua mulher tudo o que estava a fazer por ele. Ela retribui-lhe o gesto carinhoso, beijaram-se intensamente e um minuto depois estavam no quarto de porta fechada.

Fazer tudo aquilo que costumavam fazer começava agora a ser algo complicado. Segundo a pequena ardósia à entrada da cozinha, as unhas do tipo tinham chegado aos 28 centímetros, pelo que a sua mulher saía muitas vezes arranhada daqueles pequenos momentos de romantismo. O tipo tentava sempre afastar a mão esquerda da acção e concentrar-se na mão direita, mas isso só abria caminho para posições desconfortáveis e muito pouco práticas que ambos estranhavam. Apesar de tudo, aqueles momentos de intimidade continuavam a ser uma maravilha.

Quando já toda a gente da cidade parecia saber do “unhas.com”, e quando o tipo começou a ser reconhecido no supermercado não só pela cara mas também pelas enormes unhas, um telefonema interrompeu-lhes o jantar. Ele foi atender, e era da televisão. Queriam um exclusivo.

Foi assim que o tipo apareceu num dos maiores programas dos serões nacionais, apresentado como “O Homem das Unhas” e envergando uma t-shirt que dizia “Coça aqui”. Contou toda a sua história, emocionou-se, e publicitou o seu site e as suas t-shirts com entusiasmo, tal como a sua mulher lhe dissera para fazer. O apresentador preparou-lhe uma pequena brincadeira, em que o tipo era desafiado a abrir latas de refrigerantes com as unhas. O público delirou ao ver as compridas unhas amareladas abrirem com toda a eficiência duas latas de sumo de laranja, e o programa terminou com aplausos e audiências acrescidas.

A brincadeira com os refrigerantes chegou ao Youtube, e o Homem das Unhas tornou-se sensação. Membros de todo o mundo juntavam-se à sua comunidade virtual, e o seu site recebia 5.000 visitantes por dia. Na rua, era reconhecido pelas pessoas. As senhoras de idade queriam dar-lhe beijinhos, e os pais de crianças pequenas pediam-lhe para tirar uma fotografia com os seus rebentos. Os miúdos mais novos, fascinados, puxavam-lhe as unhas cepticamente, não acreditando que fossem verdadeiras. Cada vez que ia comprar limões ao supermercado demorava mais de 45 minutos a cumprimentar os fãns. Ir à rua começou a tornar-se aborrecido, e depois irritante. Passados alguns dias desde a emissão do programa tornou-se realmente complicado sair de casa, pelo que o tipo e a mulher tomaram a decisão conjunta de ser ela, sozinha, a ir à rua tratar das coisas da casa.

- Oferecer assim a tua imagem de forma gratuita - dizia a mulher - é um disparate pegado.

A mesma cadeia de televisão do outro programa propôs-lhe agora um acontecimento televisivo nacional, a ser transmitido no minuto antes do telejornal. Tratava-se de um pequeno vídeo mostrando o tamanho actual das unhas (que por essa altura se aproximava dos 40 centímetros), com uma narração a explicar toda a história e a agradecer a todos os espectadores que visitassem o unhas.com e adquirissem t-shirts para dar à família e aos amigos.

Assim foi. Todos os dias o tipo começou a sair de casa para ir à televisão gravar o seu pequeno tempo de antena, mas logo no primeiro dia de saída foi surpreendido por sete ou oito fotógrafos à porta de casa, gritando “Mostre as unhas, mostre as unhas!”, 2Aqui, deste lado!”. A sua mulher, que acabava de chegar das compras carregada com sacos, tentava transpor a barreira de jornalistas, mergulhada em luzes de flashes e perguntas indecentes sobre a privacidade do casal. “Descobriram-me a morada”, pensou o tipo.
No hall de entrada, rodeado por dois seguranças da televisão e afastado da confusão de jornalistas, abraçou carinhosamente a mulher, que não pareceu muito contente: deu-lhe um beijo rápido e apagado, disse que ia arrumar as compras e subiu pelo elevador.
O tipo lá esteve no estúdio durante uns minutos, gravando o seu tempo de antena; e quando chegou a casa tinha o almoço pronto, e a sua mulher parecia mais animada. Trocaram beijos apaixonados, e o tipo sentiu que depois da galinha de fricassé e da sobremesa poderia haver algum momento de privacidade entre os dois. Entusiasmado, acelerou a mastigação; mas vinte minutos depois já tinham acabado de almoçar e a mulher não parecia para aí virada.

Às sete e cinquenta e nova da noite ligaram a televisão, e a primeira imagem saída da escuridão do televisor a acender-se foi a das unhas do tipo. Aplaudiram, satisfeitos, e trocaram mais uns beijos apaixonados. “Agora sim a coisa vai acontecer”, pensou o tipo. O telejornal começou, e foram para o quarto.

As unhas estavam progressivamente mais longas e incómodas. Começavam a ficar curvadas, pelo que a locomoção do tipo parecia sabotada; aliás, a mulher estava repleta de marcas vermelhas nas costas e nos braços, resultantes de pequenos erros de cálculo quando se abraçavam. Tentaram colocar-se em diferentes posições, mas rapidamente o incómodo da situação quebrou o clima e o tipo sentiu um balde de água fria pelo corpo entusiasmado abaixo quando a mulher resmungou:

- Epa, hoje não.

E saiu porta fora. No corredor escuro apareceu a luz azulada da casa de banho, e ouviu-se a torneira. Depois a porta fechou-se, e o som da torneira foi substituído pelo do chuveiro. O tipo permaneceu nu, deitado de costas, com as unhas curvilíneas encostadas à almofada, perguntando a si próprio o que fizera de errado.

Os dias foram passando, e enquanto o pequeno tempo de antena do homem registava audiências crescentes, a sua mulher parecia a cada dia mais carrancuda. Fazia por essa altura um mês desde que se despedira do emprego para se dedicar inteiramente à carreira do marido, e agora as suas funções incluíam ir às compras, aturar os jornalistas e ser cumprimentada na rua a torto e a direito. Andava cansada, ganhava olheiras. As unhas do marido não o deixavam ajudá-la em grande parte das tarefas domésticas: não conseguia lavar a loiça sem deixar escorregar pratos e copos, não conseguia aspirar a casa com o aspirador seguro pela mão direita, não conseguia partir ovos, mexer bolos ou cortar cebolas; e no quarto as coisas também não iam pelo melhor caminho.

Exactamente na altura em que as vendas das t-shirts e de outros produtos do site começavam a ser a única fonte de rendimento do casal, alguém se lembrou de utilizar o tempo de antena na televisão da melhor maneira possível. Assim, alguns dias depois do tempo de antena ter sido iniciado, as unhas do tipo apareceram mais uma vez na televisão nacional como todos os dias apareciam, só que desta feita com um pequeno autocolante, na unha do dedo médio, publicitando uma conhecida marca de desodorizantes.

A partir daí foi a loucura. De dia para dia surgiam telefonemas de empresas e marcas que queriam o seu pequeno centímetro de unha na televisão nacional. Todos os dias o homem ia gravar o seu tempo de antena com novos autocolantes nas unhas: marcas de sumos, de bolos, de fármacos, de roupa feminina, de brinquedos infantis. E como os contratos eram de vários dias ou semanas, o tipo ia para casa de autocolantes colados nas unhas, colorido como um vendedor de bugigangas à procura de comprador. Numa dessas noites já com os autocolantes colados nas unhas, dormiram juntos na cama mas sem qualquer tipo de contacto físico em especial. Quando acordaram de manhã repararam que um dos autocolantes vertera tinta, que misturada com o suor tinha manchado as almofadas e o lençol. A mulher desfez a cama e não disse mais nada, nem mesmo enquanto tomavam o pequeno almoço.

Assim ficaram mais uns tempos. Os autocolantes aumentavam. O site registava visitas diárias na ordem dos milhares. O amigo informático do casal dizia que tinham leitores na Arábia Saudita e no Chile. Os cheques que chegavam pelo correio cobriam as contas, a comida, o conforto, e se fosse preciso cobriam as contas de uma casa com o dobro do tamanho daquela. Na rua e nos transportes públicos viam-se t-shirts com mensagens como “Já cortaste as unhas hoje?”, usadas por pessoas discutindo o novo desodorizante anunciado nas unhas antes do telejornal. Em casa, o tipo falava num estado de quase pânico, como se a mínima faísca pudesse acender a sua mulher como um boião de gasolina. Na cama, o espaço que os separava parecia cada vez maior. E as unhas cresciam.

Assim foi até ao dia em que o tipo estava a chegar a casa depois de mais uma sessão de gravações e encontrou a porta fechada no trinco. Estranhou. Deu a volta à chave e entrou. A casa pareceu estranhamente silenciosa. Procurou a mulher pela casa e o único sinal dela foi encontrá-lo em cima da sua almofada. Era um pequeno envelope branco, sem nada escrito por fora. O tipo pegou no envelope, sentiu-lhe o peso, abriu-o com alguma dificuldade só com a mão direita. De lá de dentro caiu um corta unhas platinado e brilhante, e um papel. Pegou-lhe e leu: “Escolhe tu”, e por baixo a assinatura da mulher.

O tipo sentou-se na cama sem querer acreditar no que estava a ver. De súbito, ocorreu-lhe espreitar dentro dos armários, e confirmou o temido. As suas camisas ainda lá estavam, mas a outra metade do guarda fatos estava vazia. Faltava uma mala de viagem debaixo da cama, e uns frascos de perfumes de cima da mesinha de cabeceira. Sentou-se na borda da cama, e desatou a chorar, lágrimas gordas e sinceras. Tentou limpar as bochechas com a mão esquerda, e por pouco não se arranhou; este engano fê-lo sentir uma raiva imensa, pelo que agarrou no candeeiro da mesinha de cabeceira com a mão esquerda e tentou atirá-lo pelo quarto. O candeeiro ficou preso nas unhas, e em vez de voar pelo quarto e partir-se, como era suposto, de encontro a uma parede, caiu desamparado aos pés do tipo, que ficou subitamente de sapatos cheios de cacos de vidro. Isto enfureceu-o ainda mais. Levantou-se da cama agitando os punhos no ar. Os sessenta centímetros de unhas não o deixavam fechar a mão. Por entre as lágrimas e o esgar de desespero, viu autocolantes a voar e a cair ao chão como pequenas folhas outonais. Correu à cozinha, e encheu um copo da bebida mais alcoólica que conseguiu encontrar. Bebeu, engasgou-se, tossiu, voltou a beber, voltou a tossir e continuou a chorar baba e ranho.

As horas correram. Devia já ser madrugada quando o tipo se levantou da cozinha, passou pelas 3 garrafas de bebida vazias e cambaleou até à entrada de casa, onde agarrou nas chaves do carro e saiu porta fora. Desceu até à rua, e mesmo àquela hora meia dúzia de jornalistas o vieram abordar enquanto caminhava até ao carro. “As unhas, as unhas! Mostra as unhas!”. O tipo respondeu com maus modos, tentou empurrá-los, gritou-lhes e quase atirou dois ou três ao chão com a potência do seu hálito. Flashes encadeavam-no, enquanto tropeçava até ao carro. Eles seguiam-no. Tudo parecia girar à sua volta.

Durante a viagem passou sete sinais vermelhos, para além de desobedecer a uma dúzia de regras do código da estrada. Por sorte não encontrou nenhum polícia pelo caminho, e pela altura em que chegou ao estúdio de televisão estava a suar e com os olhos vermelhos de choro.

O segurança do estúdio não sabia o nome dele, mas reconheceu-o pelas unhas compridas. Mesmo assim teve de lhe pedir a identificação e perguntar se estava embriagado. O tipo disse que não, retirou o documento das mãos do segurança e progrediu pelo corredor fora. Com um encontrão entrou na sala do director de programação, e gritou:

- Acabou!

O director de programação, um homem quadrado, de cabelo lambido para o lado e aftershave caríssimo, levantou-se surpreendido. Vendo o óbvio estado de devastação em que o tipo se encontrava, conduziu-o até uma cadeira e pediu à secretária um copo de água através do intercomunicador. O tipo parou de gritar, resmungando por entre as lágrimas:

- Acabou, para mim acabou, para mim já chega… Eu peço desculpa, eu peço imensa desculpa, mas para mim acabou…

Levou as mãos à cabeça, e sentiu a testa a ser arranhada pelas próprias unhas. A secretária entrou, seguida por um homem pequeníssimo com uma enorme câmara de filmar às costas, de luz acesa iluminando o escritório como um holofote, e dois assistentes arrastando cabos e um microfone. O director de programação ajudou o tipo a bebericar a água, enquanto dava pequenas indicações ao operador de câmara sobre o melhor enquadramento. O tipo continuava a chorar, vermelho, com a cara enorme e com as unhas da mão esquerda a enfurecê-lo de uma forma absolutamente nova, como se com aquela câmara e o seu potente holofote tivesse também descido sobre ele o calor e o brilho de uma inspiração celestial. Quase arrancou de dentro do bolso da camisa o corta unhas platinado que caíra do envelope. Silêncio completo no escritório. O director de programação olhou em pânico para o operador de câmara, que lhe levantou o polegar.
O tipo estendeu a mão esquerda à sua frente e, segurando no corta unhas como um gladiador segura na sua arma, começou a cortar as unhas.

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