quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Uma História em Sons (ou: Quando a crise criativa aperta)

Portanto. Na disciplina de Imagem e Som estamos, surpreendentemente, a estudar o som; mais precisamente, a importância do som na narrativa de uma história, especialmente num produto audiovisual. Não deixa de ser interessante reparar na importância que a música e o ruído têm no contar de uma história, particularmente nos filmes. Experimentem reparar, no próximo filme que virem, em como certos ruídos ou músicas completam o ambiente, aumentam a emoção, maximizam o dramatismo, criam ritmo ou nos ajudam a perceber imediatamente o que se está a passar.

Passando à frente. Neste contexto, tivemos de resolver um exercício criativo bastante divertido: contar uma história pequena, de uma página, apenas recorrendo à descrição de sons. Não podia haver diálogos, nem descrições, nem qualquer tipo de referência visual; tudo o que o leitor conseguisse entender do enredo teria de vir dos sons descritos. Tivemos de ler as nossas histórias na aula, e como os meus colegas pareceram gostar cá está ela, para vossa diversão e escrutínio. Não é propriamente um espectacular exemplo de fluidez narrativa, e tem muita batotice pelo meio (umas quantas referências visuais).



O carro avança pelos sons da cidade, com a música clássica a sair-lhe do rádio. Carro perde velocidade até parar, o condutor faz marcha atrás e roda o volante, o motor é desligado. O Homem sai do carro, e os seus passos atravessam a rua e chegam a uma porta, produzindo eco pelo caminho. Um objecto metálico é retirado a tilintar do bolço. O molho de chaves é remexido, uma delas é seleccionada e levada à fechadura. Ouvem-se uma série de onomatopeias mecânicas, o clique da fechadura, a porta a abrir-se e os passos a entrarem. O homem caminha até uma divisão, abre um armário e retira um copo de vidro. A torneira é aberta, ouve-se o fluxo da água, a torneira fecha-se. O homem leva-o à boca e ouvimos o engolir sucessivo de vários golos. O copo é colocado em cima da bancada, e ouve-se um grito apagado e longínquo.

Os pés do homem chiam no chão, à medida que se volta rapidamente. O Homem fica sem se mexer: silêncio absoluto. Outro grito. Os passos aceleram, chiando até saírem da divisão, e tornam-se mais fortes e pesados. Ouve-se o chiar das escadas debaixo dos passos do homem. Os gritos são agora mais perceptíveis: uma mulher continua a gritar, com o som dos seus gritos apagado por uma porta. Os passos aceleram até pararem, ouve-se um encontrão numa superfície de madeira, uma maçaneta a ser rodada. A porta abre-se subitamente. O grito da mulher ouve-se outra vez, mais agudo e presente do que nunca, mais estridente e assustado. Ouve-se o remexer dos lençóis, o som das molas do colchão à medida que a mulher puxa os cobertores para si. O grito feminino é substituído por um berro masculino, súbito e surpreendido, e mais som de cobertores a serem remexidos.

O homem que abriu a porta está imóvel, em silêncio absoluto. Ouve-se a respiração ofegante do homem e da mulher na cama. O quarto cai num quase silêncio. A mulher começa a gemer tristemente, o homem ao seu lado não produz nenhum som. O homem que abriu a porta respira com calma. Retoma a marcha com toda a tranquilidade, os seus passos abafados pela alcatifa. A mulher chora abundantemente e funga. Os passos do homem são interrompidos, uma gaveta é aberta. A mulher volta a gritar com toda a intensidade, em desespero. A gaveta é fechada, ouve-se um click, e o grito da mulher é substituído pelo grito do homem ao seu lado, que por sua vez é substituído pelo som do disparo. A mulher grita, o seu grito abafado pelo cobertor que colocou à sua volta. Ouve-se o som da bala a entrar em algo vivo e feito de carne, e o gotejar súbito do sangue pastoso na parede. O corpo tomba pesadamente, e o som da sua queda é engolido pelos gritos da mulher que entretanto pára de gritar e começa a chorar baixinho, como que implorando por qualquer coisa.

O homem com a pistola na mão dá dois passos. As molas da cama chiam com o seu peso quando se senta. As suas mãos batem na sua cabeça, os dedos passam-lhe pelos cabelos. Ao longe um cão ladra, e um par de sirenes aumenta de volume à medida que se aproxima.

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