quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Smith e as Sereias - episódio 36

Previamente, em Smith e as Sereias, Jack tem de vestir uma fatiota humilhante, Smith ouve a conversa ameaçadora dos tripulantes e um carrinho de fruta aparece do nada dentro do Nautilus.


Eu sempre soube que era bom para a porrada, mas aquela situação era demasiado desequilibrada até para mim. Eles eram uns vinte, enormes, musculados, maioritariamente suados e com cicatrizes que mostravam que estas eram autenticas máquinas de destruição de tabernas. Não resisti, portanto. Eles agarraram-se, ainda a pingar sumos de várias frutas esmagadas, e arrastaram-me para dentro da salinha onde tinham estado reunidos.

Sentaram-me numa cadeira e inclinaram o candeeiro na minha direcção. Para me intimidar.

- Isso é para eu ver melhor? – perguntei. Aprendi nos filmes que os bons espiões e heróis de acção são sarcásticos quando se encontram perante o perigo. Queria imitar o paradigma.

- O que é que tu ouviste da nossa conversa? – perguntou o tripulante da cicatriz, que não só parecia ser o líder do grupo como o mais mal disposto de todos.

- Hei, o que te aconteceu na cara? – perguntei – Tentaste dar banho a um gato?

Outra coisa que aprendi nos filmes de espiões é que o herói sarcástico leva sempre nos dentes. Isso é importante, porque nenhum vilão responde às piadolas do herói com festinhas ou um batido de morango. Por isso, e obedecendo à regra geral, o tipo com cicatriz atirou o seu punho de um lado ao outro da sala, encontrando a minha cara a meio caminho e provocando-lhe o mesmo efeito que um camião a alta velocidade a chocar contra a minha cabeça. O meu nariz rebentou, e senti um líquido quente a descer-me pelo pescoço. Era sangue.

- Ah ah ah – disse eu, procurando esconder a horrenda dor – Só isso?

O homem ia atirar-se a mim outra vez.

- Não, não, espera, espera.

Ele parou. Eu olhei para ele. Tinha três opções. Admitir que os tinha ouvido, e assim ameaçar os meus amigos, e assim levar mais um murro; mentir-lhe, e ele ia perceber e dar-me outro murro; ou lançar mais outra bomba de ironia, que me custaria mais um murro. Pensei. Pensei. Pensei.

- Deves ser muito solitário, essa cicatriz deve afastar a senhoras – disse eu, e fechei logo os olhos. Pimba, o meu nariz dobrou-se agora para o lado oposto, e senti mais sangue a descer-me pelo queixo. Aquilo doía, seriamente; e o sarcasmo à herói de cinema não estava a resultar tão bem como eu pensava.

- Ouçam, muito recentemente aprendi uma coisa chamada altruísmo. É excelente. Significa sacrificarmo-nos pelos outros. E isso inclui levar murraças no nariz. Por isso podem bater-me, mas não vou vos dizer o que sei.

- Óptimo – resmungou o tripulante de cicatriz – Tragam a sereia ruiva.

A sereia ruiva…

- Oi, calma lá – ergui-me na cadeira – Vocês não se atrevam a fazer mal à Ariel!

- Ela é a tua namorada, não é? – perguntou o tripulante da cicatriz.

- Vocês não lhe vão tocar… - estava a ficar zangado. Não me lembro te ter ficado assim antes.

- Então vamos ter de fazer aqui um acordo.

De nariz desfeito, a ser ameaçado, com sangue a escorrer pela cara, estava disposto a levar mais uma centena de murros antes de arriscar colocar a Ariel em perigo. É extremamente estereotipada, esta ideia do protector da dama indefesa; mas a verdade é que o herói sarcástico deu lugar ao herói protector. Olhei para o tipo da cicatriz com olhos de mau mas subjuguei-me logo:

- Digam-me logo o que querem e deixem-me ir.

- Manténs a boca fechada e nós mantemo-nos longe da tua namorada. Não sei se já reparaste, mas vocês estão mais ou menos fechados dentro do nosso submarino. Percebeste?

Eu percebi. Percebi logo. Levantei-me e saí porta fora. Tinha sangue na camisola, em cima do sumo da fruta. Olhei para mim mesmo e pus-me a descer corredor fora, com a promessa de um dia ser eu a partir o nariz àquele selvagem.

***

- O que raio te aconteceu? – perguntei eu, quando vi entrar Smith dentro do quarto. O nariz dele era uma batata gorda e empapada em sangue seco, e tinha a camisola toda suja. Foi ajudá-lo a sentar-se, e corri à caixa de primeiros socorros que me tinha lembrado de trazer na mala.

- Tropecei no carrinho das frutas – explicou-me ele, a colocar um pano empapado em líquido de medusa do Pacífico.

- Estás a brincar, certo? Alguém te fez isto. Quem?

- Uma melancia.

- Smith, a sério!

Ele olhou para mim e depois para o tecto. Respirei fundo.

- Tenho de te pôr o nariz no sítio.

- Como assim?

Levei as mãos ao nariz e toquei-lhe ligeiramente na batata vermelha.

- Au!

- Calma, maricas.

Dei-lhe um safanão e o nariz foi ao sítio com um estalo. Smith deu um salto.

- Agora vais contar-me o que se passou.

- Andava a correr e fui de caras com uma carrinha da fruta que ali andava a passar.

- Como num mau filme de perseguições?

- Exactamente. Ouve, tu tens de confiar em mim. Confias em mim?

- Sinceramente? Não. Diz-me, Smith. Quem te fez isso?

- Ninguém.

E a conversa acabou ali.

***

Chegou a noite. Fiquei na cama de baixo, não me importo. A Ariel não faz barulho a ir à casa de banho. Vamos tentar dormir agora. Vamos sim.

Não consigo dormir. A verdade é que não deixo pensar no Jack. Pobre Jack… Meu querido Jack… Não é que eu goste dele, necessariamente. Quer dizer, mais ou menos. Não é sim nem é não. É um mais ou menos; mas um mais ou menos definitivamente a cair para o lado do menos. Mas menos não significa que eu não goste dele, eu acho-o simpático, e querido, e honesto, e fantástico, e estupidamente lindo. Aquele cabelo. Como é que ele consegue? É tão suave. No outro dia toquei-lhe sem querer no cabelo. Parece uma peruca de seda. É maravilhoso. Um dia talvez tenha filhos lindos como ele. Especialmente se ele fosse o pai. Não por querer que ele seja o pai, é só mesmo porque se ele, SE, numa hipótese remota, remotíssima, me engravidasse involuntariamente como o Smith fez à Ariel, eu seria uma mulher feliz. Não por ele ser pai, nada disso, muito menos por ele depois ter de viver comigo, e dormir ao meu lado, e ajudar-me a mudar as fraldas, e trazer-me o pequeno-almoço à cama com uma rosa e aquele sorriso delicioso e querido e de rapaz maravilhoso. Nada disso mesmo.

Calma, Lilith. Adormece. Estás a ficar um bocado obcecada demais com a tua mania de não queres que o Jack seja o teu marido para o resto da vida. Não achas que estás a exagerar? Acalma-te. Pensa noutra coisa. Pensa na actualidade mundial, por exemplo. Alguma notícia interessante?

No outro dia e eu o Jack estávamos a ler o jornal, e o Jack comentou que…

***

- Hoje portaste-te bem, Jack – disse o Capitão Nemo, bebericando outro batido de algas que Jack lhe preparara. Estava sentado ao seu enorme cadeirão no seu escritório pessoal, uma sala oval com uma enorme lareira a um lado e uma prateleira enorme do outro, coberta com livros, manuscritos, equipamentos electrónicos e uma impressionantemente realista maqueta do Nautilus em cima de uma elegante base de vidro.

- Obrigado, Capitão – disse Jack com uma pequena vénia. Estava estafado, queria ir dormir e tirar a porcaria da peruca em forma de alga que lhe fazia comichão no pescoço.

- Este batido está excelente.

- Obrigado, Capitão.

- Sentes-te humilhado?

- Oh não, nada disso. Está tudo bem, senhor.

- Estava a fazer uma pergunta sincera, e espero que a resposta esteja ao mesmo nível.

- Sinto-me mais humilhado do que nunca, Capitão.

- Bom. Muito bom – o Capitão virou-se para a lareira e continuou a bebericar o batido –Amanhã espero-te aqui às seis e meia. Podes ir.


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