sábado, 16 de abril de 2011

The Fernandez Challenge #4

Desafio para hoje: "Ruminante"


José, sentado sobre uma pedra, observa uma vaca a mastigar relva com o entusiasmo de um doente terminal. Estão ambos, José e a Vaca, num prado verdíssimo e iluminado por um sol de Verão daqueles de postal. Um figurão de mulher, com os cabelos louros e cara de quem acabou de chegar às Finanças quando já não há senhas para esse dia, senta-se a alguns metros, aliás bastantes, à beira de um riacho.

José observa a Vaca e aguarda. O seu maxilar sobre, desce, desliza e oscila. A relva vai sendo sugada e engolida, e armazenada num misterioso compartimento do qual José tem o conhecimento superficial de quem tem um contacto íntimo com as vacas e bovinos em geral apenas no prato, e preferivelmente com batatas fritas.

O figurão de mulher, junto ao riacho, cruza os braços e encosta-se a uma árvore meio caída. José observa-o, deliciado, num misto de fascínio e sensação de perda do autocarro. Tinha-a trazido ali para um piquenique romântico, que incluía um vinho, morangos, queijo de barrar, tostas em forma de peixe e pratos de porcelana. Tudo no maior cuidado e na maior expectativa: José planeava dar à mulher sua namorada um enorme anel de diamantes, que lhe havia custado seis meses de poupanças e alguns sacrifícios pessoais dos quais não se orgulharia a longo prazo.

No momento alto do lanche, em que o sol se punha no horizonte e o riacho emitia um som mesmo mesmo à riacho, José retirou a caixinha do bolso e, com mãos tremidas, estendeu-o à sua mais-que-tudo. Ela surpreendeu-se, acabou de mastigar uma das tostas em forma de peixe, largou-se num pranto descontrolado e disse que sim, sim, sim! E depois agarrou-se a José com a intenção de aproveitar a solidão que os rodeava num momento mais intimista; e algures pelo meio das aberturas dos fechos éclair, a Vaca aproximou-se e abocanhou o anel, engolindo-se sem demoras.

A José restou-lhe um sentimento de culpa e uma forte sensação quente na área da virilha, interrompida pela frieza da sua mais-que-tudo que, furiosa, se afastou a praguejar. Uma vaca devora de anéis é, convenhamos, uma boa forma de interromper qualquer momento romântico e potencialmente erótico.

José lembrou-se da particularidade que toda a gente conhece das vacas, isto é, que dão leite. E só depois de outra particularidade, aliás comum a outros herbívoros, que é o acto de ruminar. Era necessário esperar que a Vaca fizesse regressar a comida mal mastigada à boca para, aí, recuperar o anel. Para isso trouxera já um pé de cabra do automóvel, estacionado a alguns metros, caso fosse necessário forçar a abertura do maxilar da ruminante criatura.

E esperaram. José esperou. A sua mais-que-tudo, furiosa, esperou. E ambos aproveitaram a espera para reflectir sobre si próprios, uma vez que não havia pró ali edições antigas da TVGuia com que se entreter.

José pensou sobre a sua vida. A sua carreira como escriturário. As suas imcapacidades físicas na área do amor. A forma como a sua sensibilidade artística (decorava sofás como ninguém) tinha atraído o amor do mulherão a quem quisera pedir a mão. A surpresa, quando a mulher que antes o intimidava ao ponto de suar dos pés e da testa, aceitou namorá-lo. A felicidade no dia em que a apresentou aos seus pais, que aprovaram a sua personalidade formal e católica mas mostraram algumas reticências em relação ao seu decote exagerado. O decote exagerado. O decote mais exagerado. O decote todo aberto. O conteúdo do decote esparramado nas suas mãos, para sua utilização imediata e…

José agitou a cabeça e olhou a vaca. O seu maxilar parecia mastigar. O seu estômago soltou um ruído. Ruminaria daí a uns minutos, era certo. José preparou-se para receber o anel.

A Vaca ruminou, começou a mastigar relva abundantemente, ruminou-se toda outra vez e os seus olhos abriram-se, surpreendidos. Que é isto, pensará ela, a arranhar-me as entranhas? Mal sabe o animal que se trata do diamante valiosíssimo.

A vaca caiu para o lado, com uma fortíssima hemorragia interna sabotando-lhe os planos para o futuro. Tantos sonhos, tanto pasto por comer, tanto leite por ejacular…! E para quê?

José, feliz, abriu o maxilar da Vaca e puxou-lhe pelo meio da língua suculenta a caixinha semi-digerida com o anel lá dentro. Envolto em gosma de Vaca, caminhou até ao riacho, tropeçando aqui e ali, e ajoelhou-se à frente da sua mais que tudo.

- Amo-te, amo-te, amo-te! Casa comigo…

E a sua mais-que-tudo limpou-lhe a gosma com o lenço, o seu beiço avantajado transformou-se num sorriso, e os dois fizeram o Amor, tórrido e sentido, sobre o cadáver da Vaca que nunca mais voltaria a ruminar e a quem o destino trocara as voltas.

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