- Oh, não estás a perceber – disse Deus, agarrando melhor na árvore e virando-a ao contrário – Ela fica presa ao chão, por isso não voa. E como está há aos milhões, não sei o número ao certo mas hei-de ter registado algures.
- E come o quê? – perguntou Grishgy, uma criatura transdimensional com um comprido manto de estrelas e focinho de leão, tocando ao de leve no tronco como quem toca num bicho asqueroso.
- Fotões.
- Essa é outra que não percebo bem – comentou I, o Senhor de Tudo, e a sua voz estendeu-se a todos os núcleos de todos os átomos de todas as galáxias de todos os Universos.
- Luz – explicou Deus – Imagina uma série de bolinhas brilhantes, pronto. É luz. A minha primeira invenção. Linda, brilhante, incrivelmente quente e reconfortante até no dia mais…
- Ouve – interrompeu-o …, a indizível senhora dos céus abertos – Eu não caio na tua conversa. Quero que me expliques sem rodeios o porquê de tudo isto.
Apontou com a sua invisível mão para uma mesa de proporções infinitas, estendida à sua frente e à frente de todos os outros Deuses e Deusas. Em cima dela, milhares de biliões de pequenos elementos de uma criação que cheirava a mofo. Aqui uma árvore, acolá um mexilhão, a um dos cantos os planetas, noutro lugar uma coisa chamada Amor. Tudo catalogado com cartõezinhos, por ordem alfabética.
Deus limpou o suor da testa e baixou os braços, colocando a árvore sobre a mesa.
- Tudo o que podia correr mal, correu mal.
- Ah! – gritou um Deus, lá atrás, rindo-se com gosto – Eu avisei! Que tipo de idiota cria luz? Luz!
- Essa também me ultrapassa – disse Grishgly – O teu é o único Universo com luz. Desapontante.
- O meu plano inicial tinha tudo para correr bem.
- O do casal? – perguntou … .
- E anjos que cantavam e dançavam – acrescentou numa voz grossíssima um Deus em forma de bebé gordo – Eu lembro-me deles. Eram um amor.
- Um deles desautorizou-me e caiu.
- Eu li isso no jornal, mas não quis acreditar – Abug, o infinitamente informado senhor de uma dimensão longínqua de nome impronunciável, cruzou os braços – Eu pensei que eras omnisciente e que podias fazer tudo.
- Como aliás qualquer Deus com brio deveria ser – comentou I.
- E era, mas decidi colocar tudo em piloto automático e ver como corria.
Houve algumas gargalhadas vindas do meio da multidão de Deuses.
- Improvisaste, portanto – continuou I – diz-me, como resolveste a questão da incredulidade?
- Escrevi um livro.
Mais gargalhadas. Um dos deuses, em forma de crocodilo, parecia estar com sérias dificuldades em respirar e rir ao mesmo tempo.
- Ouve-me – começou …, esforçando-se para não ser condescendente – Eu percebo que esta tenha sido a tua primeira tentativa, e assim. E que ainda estejas a apanhar-lhe o jeito. Mas há coisas que alguém te tem de dizer desde logo.
Estendeu um dos seus braços impossíveis de definir e agarrou num objecto invisível e imaterial que estava em cima da mesa. Deus olhou para os próprios pés, como o mau aluno cujo trabalho colado a cuspo é inspeccionado pelo professor.
- Isto – disse …, referindo-se à doença que segurava na mão – é injustificável.
- Eu pensei que…
- Que o sofrimento alheio despertava o amor e a compaixão entre os seres? – perguntou um deus em forma de batata.
- Oh! – Deus soltou uma gargalhada amarela – Não! Claro que não!
Houve uma pausa. O deus em forma de crocodilo soltou uma risada profunda e longa, e deixou-se cair de cócoras para não rir à gargalhada.
- Como rascunho até nem está mal – interveio 6546, uma entidade matemático-abstracta – Estas leis naturais estão bastante bem afinadas. Um pouco complicadas, talvez.
- No meu Universo – disse I – as constantes físicas são todas em números redondos. Muito mais simples. Mas isto sou eu, que não percebo nada disto.
Mais gargalhadas, e algumas vozes concordantes. Deus parecia tentar enterrar a cabeça dentro do tecido do cosmos.
- Mas no geral – continuou 6546 – Gosto do que fizeste com as formigas e com os polvos. E penso sinceramente que a regra de ouro é uma ideia divinal.
- Falemos, então, de rectângulos agradáveis à vista, e outros elementos imprescindíveis a um Universo funcional – resmungou Pagu, Deus Imaterial de Algures e Todo o Lado – Que mais tens para nos mostrar?
- Tenho umas coisas lindíssimas feitas em minha honra, chamam-se catedrais.
- Essas coisas bicudas?
- Reparem nos vitrais!
- Para que servem?
- Para estar.
- Para estar…
- Sim, para estar mais perto de mim.
- E porque não vais tu para perto de quem te construiu essas coisas?
- Porque acredito no poder da fé. Os homens amam-me, e não é porque lhes facilitei a vida. É exactamente porque eles devem acreditar em mim, e Amar-me.
- Que sádica necessidade é essa de seres amado? – perguntou o deus com forma de crocodilo, e houve um silêncio pesado, interrompido aqui e ali por um deus a tossir, ao longe. Deus tinha os olhos cravados de lágrimas.
- Alguém quer comprar o meu universo ou não?
Houve uma pausa.
- Ah, que se dane – o deus em forma de crocodilo avançou, de mãos no seu bolso inter-celestial, e atirou umas quantas unidades de energia cósmico-imaterial para a mão de Deus – Fico com essa coisa redonda – leu a etiqueta – “Marte”.
- É uma óptima escolha – disse Deus antes de morder o lábio inferior – Perfeito para passar férias com a família e amigos.
O deus em forma de crocodilo afastou-se, com Marte debaixo do braço, e os outros deuses seguiram-lhe o exemplo, aproximaram-se da mesa e escolheram meia dúzia de coisas, mais por cerimónia do que por necessidade. As amêijoas foram, a luxúria e o conceito de felicidade também. O Homem ficou lá.
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