quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A Invasão

Uma trincheira estava encolhida entre duas rochas cinzentas, e à sua volta um deserto áspero e pouco simpático. Uma tempestade de areia varrera aquele local há umas horas atrás, mas agora tudo estava calmo. O sol era uma bola pastosa a escorrer pelo céu, e as sombras estavam compridas. Encaixada na trincheira, à sombra de uma das rochas, estava uma cápsula de ferro, como uma lapa à beira mar. Lá dentro, espetado entre o rádio e o enorme canhão que saía pela janelinha da cápsula, Número 10 esperava ordens.

Tinha o rádio ligado na frequência correcta, e segurava nervosamente as pegas do canhão. A janelinha à sua frente era a única fonte de luz da cabine: de resto, só via os pontinhos luminosos do rádio e o condensador energético do canhão. Sentia-se a tremer ligeiramente, mas tremia muito mais do que achava estar a tremer; e tinha muito, muito calor. Um pequeno termómetro pendurado a um canto marcava uma temperatura de fazer derreter o aço. Número 10 suspirou, segurou-se ao canhão e sondou a paisagem.

“Número 10? Responda, número 10.”

O rádio, pensou ele. Entusiasmado, largou o canhão, agarrou-se ao rádio, o canhão descaiu, voltou a segurá-lo para que não caísse e só aí carregou num botão triangular.

“Número 10 escuta! Estou aqui!”

“Está aí? Onde é que haveria de estar, Número 10?” perguntou uma voz furiosa por entre a estática.

“Desculpe, Ómega 6”

“Daqui Ómega 7, não Ómega 6. Faça o favor de se manter acordado e de ouvir as suas ordens, Número 10. Segue relatório de actividade esperada. Às 070 Central espera-se descida total do Astro Rei. Às 073 Central espera-se escurecimento a 100%. Ainda está acordadinho, Número 10?”

“Escuto, Ómega 7” respondeu Número 10, a suar de vergonha.

“Ah bom. Às 076 espera-se primeiro contacto com a nave invasora. Leituras preliminares confirmam a aproximação do corpo estranho e respectiva entrada na nossa atmosfera. Manter atenção máxima e constante sobre o terreno. Compreendo, Número 10?”

“Compreendido, Ómega 7”

“É para manter-se acordado, soldado. Estamos a ser invadidos, pelos céus. Mantenha os olhos abertos! Fim de transmissão”

Houve um click e Ómega 7 parou de transmitir.

Número 10 voltou a sua atenção para a janelinha à sua frente, transpirando mais do que nunca. Esperou.

O Astro Rei escorreu pelo céu como uma gema de ovo colada a uma parede. Agora havia uma neblina cinzenta a cair sobre o deserto, escura e depressiva.

“Estrelinhas”, pensou Número 10, a olhar pela janela para os subtis pontinhos dourados. Estava a ficar mais fresco. De volta a casa, pensava Número 10, a minha mãezinha estaria a preparar-me uma refeição quente e nutritiva, e tudo ficaria bem.

O frio e o escuro tudo cobriam, e Número 10 continuava agarrado ao canhão. Esperando. Foi num desses momentos em que passava os olhos do deserto para as estrelas lá em cima que viu uma delas, gorda e arredondada, começar a mexer-se e a crescer. Não parecia nada indecisa em relação à trajectória que queria seguir, nem em relação ao seu destino: ali. O ponto que era ponto cresceu para uma bola de luz, e finalmente houve um brilho intenso e um tremor pelo ar. A bola de luz descia dos céus, e Número 10 arregalou os olhos, maravilhado. Uma gigantesca nave, comprida e cheia de pequenas janelinhas, aproximava-se descendo a pique. Da sua extremidade mais perto do chão rebentaram cinco tremendos propulsores, que interromperam a queda da nave. Por momentos foi como se pairasse no ar, até que começou a descer devagarinho. O chão do deserto começou a tremer, e o corpo de Número 10 também. O canhão parecia uma máquina de lavar em pleno funcionamento, tremendo não sabemos se por causa da enorme nave que agora aterrava, ou se por causa do nervosismo do soldado que o segurava.

A nave tocou no solo do deserto, e houve um último estrondo. Os propulsores cessaram, e Número 10 abriu os olhos. Inacreditável, pensou. A nave estendia-se como uma coluna metálica. Cada uma das suas janelinhas cuspiu um feixe de luz, uma a uma, e os feixes corriam pelo deserto e tentavam furar por entre a poeira levantada como os braços de um polvo desorientado.

Número 10, paralisado, analisou as suas opções. Podia fugir, podia avisar Ómega 7 e fugir, ou podia começar a disparar e, portanto, marcar para dali a meia dúzia de segundos a sua completa aniquilação. As opções não lhe pareciam nada optimistas. Número 10 estava nervoso, e mal conseguia ver por entre as gotas de suor que lhe caiam para os olhos. Piscou-os e continuou a analisar a nave.

Agora uma pequena porta abria-se a um terço da altura da nave, e uma pista prateada estendeu-se por ali abaixo até ao solo do deserto como uma língua em caracol. De dentro da nave, vindas da portinha aberta, quatro figuras começaram o caminho até cá abaixo. Número 10 olhou para elas com absoluto terror. Os invasores eram horrendos.

À medida que desciam a língua de metal e começavam a caminhar pelo deserto, segurando pesadas armas à sua frente e uma pequena máquina que parecia sondar a areia, Número 10 reparou nos pormenores das estranhas criaturas. Tinham um par de pernas, um par de braços, e no topo do corpo um bolbo arredondado. Pareciam segurar as armas e os aparelhos com estranhos conjuntos de tentáculos, pequeninos e articulados. Vestiam fatos prateados, e o estranho bolbo no topo dos seus corpos estava coberto de um material transparente. As figuras aproximaram-se. Número 10, levando mais uma vez os seus três tentáculos ao manípulo do canhão, empurrou o corpo para frente e encostou o bico à janela da sua cápsula, tentando ver melhor. O seu quarto olho a contar da esquerda estava a tremer incontrolavelmente, e podia sentir gotas de suor a descer por entre as penas do seu corpo.

Os invasores viravam-se uns para os outros, opinando sobre o que os seus instrumentos pareciam registar. Número 10 constatou, com absoluto horror, que o bolbo no alto do corpo parecia coberto de pêlo até metade da sua altura e que, logo abaixo do tufo de pelo, os invasores possuíam um par de visores aparentemente biológicos, um outro bolbo mais pequeno a meio da face, e duas cartilagens amachucadas nos dois lados do bolbo. Seria por onde se alimentavam? Número 10 achava que sim. Um dos invasores virou-se de frente para a cabine, e Número 10 reparou finalmente num redondo buraco cor de rosa a meio do bolbo, dentro do qual um nojento verme cor de rosa parecia contorcer-se.

Número 10, suando, tremendo, gemendo entre dentes, levou um tentáculo ao botão de transmissão do rádio e esperou que o ruído de estática desaparecesse.

“Daqui Ómega 7. Número 10, o que raio quer de mim?”

“Ómega 7, eles são absolutamente… “

“Repita, número 10!”

Número 10, fascinado por aquelas estranhas criaturas, observava-as enquanto caminhavam de um lado para o outro, ridiculamente apoiadas nas suas duas perninhas articuladas. Estavam mais perto da cápsula, e aproximavam-se. Número 10 começava a perder a voz. Aquilo era demais para ele. Ainda há uns dias solares estava na gruta dos pais, ajudando-os a caçar insectos para o jantar. Não tinha sido feito para aquilo.

“Ómega 7” murmurou Número 10, com toda a coragem que conseguiu reunir, e com os dois corações a baterem como tambores no fundo do seu peito “Ómega 7, a invasão está em curso”

“Porque raio está a murmurar, Número 10? Fale!”

“Ómega 7” sussurrou Número 10, sem tirar os olhos das criaturas. Os seus aparelhos pareciam dar sinal de alguma coisa, e os quatro invasores caminhavam vagarosamente na sua direcção.

“Repita, que não o ouço!”

“Ómega 7, a invasão está em curso!” repetiu Número 10, abandonando a janela e debruçando-se completamente sobre o microfone. ”Os invasores estão armados e são absolutamente aterrorizadores!”

Do outro lado da transmissão, Ómega 7 empalideceu.

“Pelo Astro Rei… Consegue vê-los, soldado?”

“Estão mesmo…” começou Número 10, espreitando outra vez lá para fora “… à minha frente”

E estavam mesmo. Um dos invasores enfiou um comprido tubo prateado cheio de luzes pela janela da cabine, despedaçando o vidro. O tubo entrou pela cabine dentro, e ainda Número 10 estava a abrir o bico e a preparar-se para gritar quando uma bala saiu de dentro do tubo e lhe despedaçou a cabeça. O crânio pareceu propagar-se em todas as direcções ao mesmo tempo, dividido em pequenas peças. Da parte de trás da cabeça de Número 10 voou sangue, e toda a cabina ganhou uma pintura nova. O corpo do soldado caiu para trás, os tentáculos flácidos, todos o olhos abertos mas vazios por dentro.

“Número 10?!” gritava Ómega 7. “Número 10, responda! Núm…”

Houve um esguicho sonoro. Outra bala, esta no rádio.

Os invasores olharam para Número 10, agora falecido, e afastaram-se sem grandes cerimónias. Tinham o resto do planeta para conquistar; não podiam perder muito tempo.
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