domingo, 27 de setembro de 2009

O Grávido

Não se conseguia lembrar com precisão do que acontecera na noite anterior, mas tinha a certeza que havia uma boa explicação para o facto de ter acordado grávido. Quem o engravidou, não sabia. Sabia que estava de esperanças, e como é normal nessas alturas as hormonas levaram a melhor e começou a chorar. Depois irritou-se, e a seguir desejou um gelado de ananás com manteiga de amendoim. Levantou-se e foi à rua.

O supermercado da sua rua devia estar fora para férias, porque no seu lugar estava um enorme cartaz a indicar que, devido a uma campanha humanitária, o supermercado voara até aos desertos da Nigéria para distribuir comida aos meninos pobrezinhos. O Grávido, chamemos-lhe assim, recomeçou a chorar, e imaginou criar uma crianças naquelas condições, com tudo cheio de moscas e sem água potável com que hidratar a pele. Desde que saira de casa estava mais e mais preocupado com hidratar a pele. Sentia-se seco e áspero. Talvez seria por isso que a mãe do seu bebé o tinha deixado assim, de barriga, e depois o tinha abandonado pela madrugada. Chorou.

No lugar do supermercado estava uma pequena entrada para uma sub-cave, onde normalmente, quando o supermercado ali costumava estar, se podia estacionar o carro e os veículos de tracção animal. Estavam dois Mercedes, um Fiat Punto, duas carroças e um coche puxado por leões marinhos no parque de estacionamento. Um dos leões marinhos tinha cinco multas enfiadas num dos dentes, e parecia adormecido. O Grávido passou pelos animais, com cuidado para não os acordar, e caminhou até ao seu carro. Era o Fiat Punto. Assim, daquela maneira, estacionado entre o Mercedes cinzento platinado e a carroça com os póneis, o seu Fiat Punto parecia um carro de merda. E era, bem vistas as coisas. Se tivesse poupado durante a sua juventude poderia ter comprado uma carroça como aquelas, ou um coche com leões marinhos. Puxado por unicórnios, até. Chorou, depois entrou no carro e fez marcha atrás com cuidado para não derrubar os leões marinhos multados.

O Fiat Punto ronronava pela cidade vazia. Era feriado nacional e segunda feira, tudo ao mesmo tempo, pelo que o pessoal aproveitara o fim de semana prolongado para ir à praia. O Grávido não gostava de praia, o que lhe apetecia agora era um gelado de ananás com manteiga de amendoim. Virou uma esquina, e perdeu a vontade do gelado. Substituiu-a por um desejo de salada de queijo com coca cola gelada, fez uma perigosa manobra para mudar de direcção com o carro, e atropelou duas velhinhas indefesas. Por acaso não estavam na passadeira, mas mesmo que estivessem não havia nenhum polícia por ali para o multar. Estava tudo na praia. O Grávido perguntou-se porque é que aquelas velhinhas não tinham ido para a praia também, e como não sabia a resposta chorou. Agora desejava uma enorme omolete de camarão com gambas importadas, pelo que deu outra meia volta perigosa, em plena Avenida Principal, e foi até um pequeno restaurante que conhecia na Quinta Rua.

Lá toda a agente o conhecia, e nessa manhã não foi diferente. Todos elogiaram a sua barriga, e apesar de a menina ruiva do balcão ser praticamente infértil e estar a tentar engravidar há mais de sete anos de cada marmanjo que encontrava, o Grávido não a viu derrubar uma lágrima. Pôs-lhe a mão no ombro, chorou, e disse que assim é que era, miúda. Sempre em frente. A força é o caminho. Continua. Coragem. Um dia serás mãe. Agora faz me uma omolete com camarões.

Ela foi até às traseiras pescar os camarões e apanhar os ovos, e por segundos o Grávido ficou sentado numa das mesas do restaurante vazio, apenas acompanhado por um estranho homem que o observava de um canto. O homem parecia ser cego não só porque tinha um cão-guia sentado aos seus pés, mas porque estava a colocar pimenta no café com leite. O Grávido ainda pensou em ir lá corrigir-lhe o erro, mas desde pequeno que tinha pavor de gente cega. O cão guia olhava-o com toda a desconfiança, muito provavelmente dando-se conta de que aquele gajo grávido que para ali estava cheirava a noitada, e estava a gozar com o seu dono. O Grávido preferiu ficar quieto, com medo do cego e do cão do cego, e ver a reacção do cego quando levasse o café com leite à boca. O Grávido levou as mãos à boca, esperando ter de controlar uma gargalhada, mas não é que o cego engoliu uma golfada de café com leite e pimenta e nem respingou? O Grávido, curioso e em absoluto choque, enojou-se e fez uma careta.

- Vai fazer caretas à tua tia – disse-lhe o cego, bebericando do café com leite. - Diga? – perguntou o Grávido, surpreendido com a perspicácia do cego.

- Estava a dizer para ires fazer caretas à tua tia.

- Eu não fiz caretas nenhumas, caro senhor.

- Julgas o quê, que sou cego?

O Grávido não respondeu.

- Também me pareceu. Voltas a fazer isso e atiço o Pantufa na tua direcção.

- É o nome do cão?

- É pois. É cego, pobrezinho. Tenho de andar bem agarrado a ele para não esbarrar com ninguém na rua. Estás a ver aquele defeito na orelhinha esquerda? Foi contra um marco do correio.

O Grávido não disse nada.

- Porque é que não dizes nada, julgas que sou surdo? – perguntou o cego, com maus modos, olhando-o nos olhos.

- Estava a pensar na vida.

- Porque é que não estás na praia?

- Tive uma noite confusa e complicada, e acordei grávido.

- Percebo. Não fiques nervoso, a minha filha quando ficou grávida aos doze anos também ficou nervosinha e eu disse-lhe “Filha, desde que o puto tenha fraldas e papinhas, estará sempre bem”.

- Ainda não sei se fico com ele – respondeu o Grávido, e à medida que dizia isto começava realmente a pensar no assunto.

- Porquê?

- Hoje de manhã, ao ir buscar o carro, vi um cartaz sobre uma campanha dos meninos pobrezinhos nos desertos da Nigéria, e fiquei sensibilizado.

- Os miúdos lá andam cheios de moscas.

- Exactamente, e nem sei se têm televisão por cabo. Não percebo como é que os aguentam até serem adultos. Não acho que esteja preparado para a responsabilidade.

O cego que afinal não era cego voltou a colocar pimenta no café com leite, e bebericou mais um bocadinho. A rapariga ruiva do balcão, a tal que era infértil, chegou com a omeleta de camarão.

- Que merda é esta? – perguntou o Grávido, olhando para o prato à sua frente. Era uma omeleta flácida e sem personalidade alguma.

- É uma omolete de camarão – disse a menina.

- O que estás aqui é uma omolete. Não vejo aqui nenhum camarão.

- Está aí, pois. Ora veja lá.

- Aquilo é um bocado de tomate.

- E ali debaixo? Olhe, são os bigodes de uma gamba.

- De uma só? E só os bigodes? Acha isto aceitável?

- Claro que sim. Isto aqui não é uma marisqueira - disse a rapariga do balcão, aquela que era infértil.

- Não a ouça, ela é infértil – disse o cego que afinal não era cego – Está sempre a evitar desculpas para tudo.

- É muito má educação falar assim da minha empregada – disse o dono do bar, que entretanto se aproximava. Depois olhou para a rapariga – Oh Estér, vai lá para a cozinha que eu resolvo isto.

- A rapariga chama-se Estéril? – perguntou o Grávido.

- Ah ah! – fez o cego que afinal não era cego.

- Estér. É Estér, o nome dela – esclareceu o dono do bar.

- De qualquer maneira, a Estéril trouxe-me uma omeleta terrível. Olhe para isto. Só bigodes de gamba.

O dono do bar olhou para a omeleta, e o Grávido percebeu rapidamente que naquele bar estavam todos feitos uns com os outros.

- A omolete parece-me óptima – disse-lhe o dono do bar. Tinha tomates para estar a dizer aquilo .

- É preciso ter tomates para dizer isso – disse o cego que não era cego – Até eu vejo daqui do fundo que isso é só ovo.

- Está a ver? É só ovo – disse-lhe o Grávido. O dono do bar não parecia convencido. Do fundo do bar apareceu Estér, a rapariga do balcão, a tal que era infértil, segurando um pauzinho de plástico branco com uma manchinha de cor de rosa em forma de +

- Estou grávida! – declarou ela, com lágrimas pelas bochechas abaixo.

O cego que não era cego levantou-se com um salto, e o dono do restaurante também se sobressaltou. Olharam um para o outro, depois olharam para a rapariga, e a rapariga, aquela que era infértil mas que pelos vistos não era tão infértil assim, olhou para eles.

- E agora, quem é o pai?

***

Passaram-se nove meses complicados, e finalmente os partos chegaram. De mãos dadas, o Grávido e a rapariga do balcão, a tal que era infértil, abriam as pernas e respiravam com força. O cego que não era cego, que era caucasiano, e o dono do restaurante, que era africano, esperavam pacientemente o nascimento da criança da rapariga infértil. Debruçados sobre as suas pernas abertas, observavam a vagina palpitante como quem observa uma baliza antes de um penalti, e suavam também.

O Grávido começou a sentir as primeiras contracções quando se levantara nesse dia para urinar, e sentira a bexiga apertada. O puto estava a dar pontapés. Depois o seu pénis começou a inchar ao longo do dia, adquirindo o aspecto de um pepino sob altas concentrações de fertilizante, pelo que foi até à maternidade. O médico obstetra nunca vira um caso como o seu. A coisa mais estranha que lhe acontecera no serviço fora um homem com uma barata no nariz, pelo que um homem grávido parecia ser uma enorme novidade. Os estudantes de medicina estavam também no local, tirando apontamentos, e as cadeias de televisão nacionais esperavam o desfecho da gravidez do homem grávido lá fora, com inquietação.

A rapariga do restaurante, a tal que não podia ter filhos, entrou em trabalho de parto, gritou, chamou nomes a toda a gente, mordeu o dedo a uma enfermeira e continuou a bufar, até que a crianças deslizou cá para fora e o cego que não era cego, o tal que era branco, e o dono do restaurante, o tal que era preto, saltaram de alegria: o miúdo era asiático. Enquanto a rapariga que era infértil abraçava a sua criança e começava a pensar nos asiáticos que conhecia, o pénis do homem grávido estava inchado como uma bola de bowling. A cabeça da criança despontou pela glande, e espreitou com toda a curiosidade para este novo mundo. O grávido fez toda a força que podia, e o seu bebé saiu pelo buraquinho como se estivesse ali escondido só na brincadeira. Os médicos precipitaram-se sobre a criança, estudando o seu estado de saúde. Os cirurgiões plásticos dobraram-se sobre o pénis alargado do grávido, procurando forma de o cicatrizar. Confusão de médicos e doutores, enfermeiras e trapezistas, enquanto o homem grávido abraçava a sua criança e chorava. Era o milagre da vida. O dono do restaurante emocionou-se, e o cego que não era cego levou com um bisturi no olho e ficou cego de uma vez.

FIM

nota: história escrita de improviso, sem paragens, de uma ponta à outra. Nada planeado. Espero que isto explique o constante sentimento de caos e as personagens profundamente complexas.
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1 comentário:

Paulo39 disse...

Esta história está excelente!!
Surrealismo fantástico.