sábado, 23 de janeiro de 2010

Uma ida à pastelaria e uma divagação improvisada sobre o pensamento moderno

Hoje acordei cedo, e porque não tinha com que me alimentar corri à pastelaria perto de minha casa, convenientemente instalada do outro lado da rua (literalmente) em relação à porta do meu prédio. A pastelaria é, na verdade, um cubículo pequeno e apertado, com uma mesa para duas pessoas, um armário para bolos (que está sempre vazio) e um balcão transparente com as bebidas e os bolos organizados em vários andares. A menina da pastelaria, uma brasileira redonda e cuja cor do cabelo tende a mudar com frequência (hoje estava vermelho), ignorou a minha entrada: estava ao telemóvel. Disse bom dia, e aproximei-me do balcão contando trocos. A menina estava de um lado para o outro do balcão, a falar no seu profundo sotaque do interior do Brasil, aquele que ouvimos nas novelas da Globo e que não acreditamos ser tão exagerado. Olhou para mim, esperando ordens, e eu pedi-lhe um pão de Mafra e um bolo de arroz. Ela continuou a falar ao telemóvel. “Sim, combina lá para depois à noite podemos conversar”; só que, no seu sotaque, conversar é pronunciado “conveirsâer”, com os R’s pronunciados como se um inglês lesse a palavra “Rita”. Isto, claro, sem me dirigir uma palavra. Meteu com dificuldade o pão de Mafra no saco de plástico, uma vez que estava com o telemóvel encaixado entre o ombro de chouriço e a orelha. Empacotou-me o bolo de arroz, altura em que fez o obséquio de interromper a conversa (que agora parecia ser sobre uma relação amorosa que corria mal) para me perguntar se o bolo era “pra levá”. Eu disse que sim, era pra levá, e ela continuou a conversa ao telemóvel enquanto me colocava o bolo e o pão sobre o balcão. Observei, enquanto esperava, a prateleira das bebidas, e reparei na comparência de uma marca de pacotes de leite que adoro. Acrescentei um dos pacotes ao meu pedido, dizendo, “Depois podia dar-me um pacote de leite daqueles? (apontar)”. Ela disse que sim com a cabeça, continuando, “Porque ele me disse se você continua perto dele o cara tá férrado”. Dobrou-se sobre o balcão, estendendo o braço para chegar ao pacote de 6 pacotes de leites, e retirou-o. Olhou para mim, levantou o pacote de leites de chocolate à altura dos olhos e agitou-o. “Um destes?”. E eu, feito parvo, disse que sim com a cabeça, educadamente, para não lhe interromper a conversa. Paguei e vim-me embora.

Agora que olho em retrospectiva, não sei se teria sido simpático fazer uma queixa sobre a óbvia falta de atitude e brio profissional. Não fui propriamente ao Ritz comprar o bolo de arroz; no entanto, se eu trabalhasse num sítio destes, nem que seja a pastelaria da esquina, teria um pouco mais de respeito pelos clientes e não estaria a falar dos meus problemas amorosos ao telemóvel enquanto os atendia.

Mas no fundo, esta é uma atitude que vemos todos os dias. Não foi a primeira vez que me aconteceu, nem será a última; só me chamou a atenção a suavidade com que encarei a situação. Tornou-se parte do nosso dia-a-dia, o acto de falar ao telemóvel e ignorar quem nos rodeia ao mesmo tempo. Quem conduz a falar ao telemóvel, ou interrompe o atendimento a um cliente quando o telefone lhes toca. Neste caso, não me surpreende que não haja consequências da acção da rapariga; a própria dona da pastelaria já me vendeu um croissant a falar ao telemóvel, e sem sequer me cumprimentar. Este tipo de carinho e educação, que era uma constante no comércio dito tradicional, está a desgastar-se! Desculpamos com toda a facilidade quem fala ao telemóvel porque o telemóvel faz agora parte do nosso mundo de maneira estrutural. Não é só uma questão prática, é uma questão de necessidade. “Desculpa, dá-me dois minutos, tenho mesmo de atender esta chamada”.

Isto aplica-se a outras realidades. O telemóvel está, do ponto de vista social, ultrapassado. Hoje ter um telemóvel é banal, regular e pouco impressionante. Hoje em dia, um dos mais importantes critérios sociais é estar inscrito no Facebook, Twitter, Youtube, Hi5 ou qualquer outra “rede social”. Não deixa de ser engraçado estudar a história europeia (o que estou a fazer, como parte integrante da disciplina de História e Cultura das Artes), e perceber que há 500 anos atrás, em pleno Renascimento, o critério social mais importante era (imagine-se) a individualidade! O indivíduo era visto como único e com características especiais, que o distinguiam de todos os outros (individualismo), e essas características deviam ser preservadas; isso aplicava-se no pensamento e opiniões, mas também na moda e na forma de ostentar o luxo (ao contrário dos nosso tempos, era na expressão da originalidade que os grandes senhores que tinham dinheiro para estas coisas encontravam a sua forma de se destacarem dos outros). Outro critério tomado em conta na altura era a cultura. Quanto mais culto e lido era um homem, mas facilmente entraria nos meandros da alta sociedade, e mais depressa ascenderia a cargos importantes. Não se trata de uma relação quase matemática de proporcionalidade, mais cultura mais poder, mas podemos falar numa mentalidade generalizada que se distingue de outros períodos da História (como o nosso).

O que temos nos tempos modernos é o contrário absoluto. Ser culto, ler livros ou conhecer a história do seu próprio país passou a ser sinal de falta de personalidade, e sinónimo de poucos namorados e amigos. É incompreensível para a geração a que (infelizmente) pertenço haver alguém que goste de perder tempo a aprender ou a cultivar-se, fora do espaço escolar em que isso é obrigatório. É incompreensível também que tal pessoa o faça por gosto genuíno. Os parâmetros sociais de hoje em dia estão tão afastados dos do Renascimento que podemos finalmente falar da estupidificação das massas; os grandes ídolos da sociedade são em geral jogadores de futebol, actores e modelos, e raramente filósofos, artistas ou cientistas. Parece que a cultura e o conhecimento são secundários ou até desprezados hoje em dia. A beleza, o aspecto exterior, as relações familiares e sociais, os gostos pelas mesmas coisas que toda a gente e a fama meteórica passaram a ser tratados como virtudes. Serão mesmo?

Isto traz-nos ao individualismo, que como vimos era uma característica da sociedade Renascentista há séculos atrás. Não preciso dizer o quanto este ideal foi violado entretanto, toda a gente consegue pensar em pelo menos dez exemplos de como, nos dias que correm, ser diferente é ser esquisito. As modas, as tribos urbanas, a estandardização (odeio esta palavra, soa a tradução pirosa) dos produtos e ideias: tudo isto contribuiu para se criarem correntes de pensamento e ideais esquisitos e diversificados. Todos vendem uma filosofia de vida ou um determinado gosto por uma determinada coisa, mas todos têm uma coisa em comum: nenhum dá importância à pessoa, mas sim à massa. As pessoas deixaram de ser pessoas, e passaram a ser as marcas que vestem, a música que ouvem, os seus penteados ou a filosofia com a qual se identificam. Não há nada de errado em identificarmo-nos com outros, que tenham os mesmos gostos e prazeres que nós; mas hoje em dia o “Eu” é sinónimo de egoísmo, e o diferente é sinónimo de rebeldia. É difícil, para alguém, ir contra a corrente do pensamento generalizado, pois é rapidamente rotulado de ser “do contra”; como se ser do contra, só por si, fosse uma enorme fonte de prazer. Alguém que, surpreendentemente, não goste das mesmas coisas que o resto da massa demográfica goste, é alguém que precisa de ir ao psicólogo. Não gostar dos Abba é ser carrancudo, não gostar do Crepúsculo é ser insensível, não torcer pela Selecção Nacional é não gostar do país, não gostar de comida chinesa é ser intolerante a outras culturas, não vestir roupas consideradas decentes é ser deslavado, e não gostar de ir a festas é ser anti-social. Nos dias que correm, convém quase pedir desculpa pela opinião ou gostos que temos, especialmente quando rodeados por pessoas que não partilham dos nossos ideais.

Isto pode parecer exagerado, mas acaba por ser verdade. Veja-se nas redes sociais (das quais já falei aqui), em que se cultiva a idiota crença de que todos somos únicos e especiais. Toda a gente usa os mesmos smiles, preenche perfis supostamente honestos e realistas (como se quem nos lesse o perfil nos ficasse a conhecer), e contacta com milhões de pessoas à distância de um clique. Há gente com centenas e centenas de “Amigos”, dois terços dos quais, muito provavelmente, não conhecem ou viram uma vez na vida, numa festa, às escuras, e com o qual trocaram dois beijinhos. Contactam com os “amigos” através da escrita, com pequenas mensagens automáticas a revelar o estado de espírito ou comentários vagos e vazios de conteúdos às fotografias alheias. É possível, nestas redes, encontrar grupos de pessoas com os mesmos gostos que nós; e o que pode parecer uma ode ao tráfico de informação acaba por ser o absoluto contrário daquilo com que se define: rede social.

Não há nada mais anti-social que as redes sociais. Não há nada que promova mais o estar em casa à frente de um ecrã. A televisão, que antigamente servia este propósito, está ultrapassada como o telemóvel; há coisas mais modernas e divertidas com que perder tempo. Actualizar o nosso perfil, os nossos álbuns de fotografias ou comentar uma mensagem de outra pessoa são imperativos categóricos. No entanto, quem utiliza estas redes acaba por nunca estar, realmente, com os seus amigos. Se as comunicações estão assim tão facilitadas e gratuitas, por que não aproveitar para combinar mais idas ao cinema, mais jantares, mais encontros? Um amigo com o qual contactamos por Facebook não é um amigo, é um Tamagotshi que nos responde.

De qualquer forma, este texto está longo demais (ou, tal como o meu avô chama aos textos longos, é uma lombriga). Fico por aqui.

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1 comentário:

What disse...

Sim sim, a propósito do comércio tradicional:
Queixam-se que está a acabar e que é muito prejudicado pelas grandes superfícies, mas se eu for à pastelaria da esquina sou atendida por uma tipa mal-disposta e mal educada que fala ao telemovel enquanto me atende, e se for ao MacDonalds a pobre da menina que está a atender, que até pode estar cheia de problemas e querer suicidar-se, diz sempre "Boa Tarde, o meu nome é ____, em que posso ajudar/posso anotar o seu pedido?"

Querem que as pessoas prefiram o comércio tradicional, então podiam começar a inovar, a ver o que podem ir buscar de positivo ao exemplo das grandes superfícies e tentar dar ao cliente o melhor do que é tradicional mas com o melhor do que é "moderno" também.

Tenho dito. x)