terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Viva as prioridades! (ou: Mais um pequeno desabafo sobre Deus)

Enquanto a maioria das pessoas realmente preocupadas com o que se passou no Haiti começam a fazer os possíveis para enviar medicação, água, alimentos e voluntários, um grupo religioso americano decidiu enviar como contributo indispensável 600 bíblias electrónicas. Chamam a este dispositivo o “Proclamador”, e trata-se na verdade de uma Bíblia em formato digital, alimentada a energia solar, que permite transmitir a palavra de Deus a mais de 300 pessoas “pobres e iletradas” de cada vez.

Numa altura em que os voos estão a ser filtrados de forma a que apenas o essencial chegue à população do Haiti, não deixa de ser curioso que alguém se tenha lembrado de entupir espaço aéreo (ou marítimo, ou terrestre) com este disparate. Esperemos que as autoridades saibam decidir quais as suas prioridades, e acelerar o transporte de medicação e das equipas de resgate ao invés de perder tempo com os delírios religiosos de um grupo de fanáticos. Talvez se vendessem as Bíblias em “qualidade digital” pudessem angariar dinheiro suficiente para realmente ajudar alguém; ou, quem sabe, levar antibióticos e não Bíblias no porão do avião. Qualquer solução alternativa seria mais coerente.

Fecho com uma pequena crítica religiosa. Na notícia dizem-nos:

With tens of thousands of Port-au-Prince residents living outdoors because their homes have collapsed or they fear aftershocks from last week's quake, the audio Bible can bring them "hope and comfort that comes from knowing God has not forgotten them through this tragedy", the group said.

Pessoalmente, e isto é apenas a minha opinião, a última coisa que eu queria era receber a palavra de um Deus hipócrita. Com que então criou o mundo da forma como ele é, com as suas places tectónicas e respectivos movimentos e libertações de energias em grande escala, e este grupo religioso tem a lata de nos garantir que Deus “não se esqueceu deles”; claro que não se esqueceu. Se ele existe, é ele o responsável por esta tragédia. Mas como se trata de um Deus benevolente, tenho a certeza que ele lá terá as suas razões para destruir a capital de um dos países mais empobrecidos do mundo. Quem somos nós para o desdizer? Há que deixar morrer todas as crianças haitianas com perigosas infecções ou esmagadas pelos escombros, e pensar sempre, no conforto do nosso egoismo e falta de humanidade, Deus está a olhar por nós.

Nós ateus somos normalmente acusados de estarmos “zangados com Deus”; o que é engraçado, uma vez que não acreditamos que tal figura exista. No entanto, se existisse, se Deus me aparecesse à frente neste preciso momento para me provar a sua omnipotência, eu ia continuar a achar que ele é a criatura mais vil deste Universo. Ser o supremo criador da humanidade não lhe dá o direito de ter um “plano especial” para todos, mesmo que isso inclua devastar cidades com catastrophes naturais. Se assim fôr, não pode nunca ser definido como um Deus benevolente. Ele bem pode definer-se a si próprio dessa maneira, mas então além de vil é incoerente. Resta-nos a nós, simples formigas debaixo da lupa, esperar que o plano divino nos caia em cima.

.

8 comentários:

Tiago Santos disse...

Romans 8:31-39 (The Message)

"So, what do you think? With God on our side like this, how can we lose? If God didn't hesitate to put everything on the line for us, embracing our condition and exposing himself to the worst by sending his own Son, is there anything else he wouldn't gladly and freely do for us? And who would dare tangle with God by messing with one of God's chosen? Who would dare even to point a finger? The One who died for us—who was raised to life for us!—is in the presence of God at this very moment sticking up for us. Do you think anyone is going to be able to drive a wedge between us and Christ's love for us? There is no way! Not trouble, not hard times, not hatred, not hunger, not homelessness, not bullying threats, not backstabbing..."

1º - Se as pessoas ficarem reconfortadas, psicologicamente, por ouvirem palavras de um livro, em que acreditem ou não, e tu achares estúpido as pessoas preocuparem-se com a paz de espírito das pessoas e com a possível segurança e esperança que pode ser trazida as pessoas, independentemente do quão vil ou inexistente Deus possa ser, então cheira-me que não estas a ser mto coerente na tua preocupação

2º - Se achas que comida e abrigo e medicina satisfazem uma pessoa então tb nao andas a prestar atençao...

abraço

Renato Rocha disse...

Tiago:

1- Estou a ser totalmente coerente. Não estou de forma nenhuma a dizer que fé e reconforto “espiritual” nunca poderão ajudar ninguém numa situação de crise. Estou apenas a dizer que esse reconforto está muito abaixo de outras prioridades que devem ser satisfeitas AGORA. Referi a medicação e a água potável, uma vez que se tratam de necessidades objectivas. Não interessa se as pessoas estão confortadas com a sua situação, se a maioria morre de desidratação ou infecções. É absurdo pensar que o conforto espiritual deve vir primeiro que a satisfação das mais básicas formas de preservar a vida. Estamos a falar de pessoas sem casa, alimento, água potável ou local para dormir; não de pessoas deprimidas ou entristecidas com a vida. E se alguém, como este grupo religioso, tem a oportunidade e dinheiro para enviar directamente qualquer mercadoria, escolher a Bíblia (ou qualquer outro texto religioso ou até livros de auto-ajuda, não estou aqui a atacar a religião ou livro sagrado específico mas sim o princípio em si) acima de material prioritário é uma irresponsabilidade.

2- Quanto à tua segunda observação, não me quero repetir. A prioridade, neste momento, está longe de ser o conforto espiritual. E, tal como disse no post, a prioridade deve ser dada ao transporte de medicação e alimento ao invés de gastar tempo, dinheiro e oportunidade a alimentar paz de espírito. Duvido que alguém numa situação de esfomeado desespero escolha uma Bíblia e não um bife ou uma garrafa de água. Se acho que comida, abrigo e medicina satisfazem uma pessoa? Neste contexto? Obviamente que sim, pelo menos para já. Não sou eu a dizê-lo, basta ligar a televisão ou abrir um jornal e ouvir o que nos dizem os directamente envolvidos neste tipo de catástrofes. A prioridade não está em manter o bom espírito na população, está em manter a população viva.

Quanto ao texto que transcreveste, apenas sublinha a hipocrisia de que falo no post. Deus está ao nosso lado, ama-nos, e o seu amor é eterno; no entanto, criou um planeta em que este tipo de catástrofes não só é possível, como acontece com relativa frequência. Se um terramoto desta magnitude, que é directa responsabilidade do Deus que o permite e deixa acontecer, serve de pretexto para aumentar a fé de alguém, parece-me tratar-se de uma fé bastante mal fundamentada e desonesta. Em nenhuma situação real defenderiamos um indivíduo responsável por tamanha catástrofe, mesmo que este tivesse feito algum tipo de sacrifício por nós Humanidade. Esse tal sacrifício e respectiva importância é já de si muito discutível, mas não me quero alongar nem sair do contexto em que estava.

Abraço!

Tiago Santos disse...

antes de mais,
eu não quero começar uma grande discussão com 3mil respostas então provavelmente não vou voltar a dar a minha opinião neste post especifico.

Renatinho:

1 - Primeiro algo que deves saber é que nestas ocasiões chovem alimentos, mantas, agua, etc. literalmente... existem um milhão de organizações preparadas para estes momentos e, digo te isto pq sei através de pessoas que já estiveram em Africa e sabem do que falam, que nestes momentos o problema não é a falta de apoio mas a falta de segurança pois todos os suprimentos acabam por ir parar ao mercado/mercado negro e acaba por nunca ser "de borla" para as pessoas que precisam. Isto não significa que ache que nao se deva enviar comida, mas se alguem tem a possibilidade de enviar "audio bibles", segundo o que estava no excerto que transcreveste, acho que fazem muito bem. Se achas que a parte emocional (para nao falar de espiritual, pois o meu objectivo aqui nao é discutir a existencia de Deus) é assim tão pouco importante então não posso fazer nd. As pessoas precisam tanto de esperança e de se sentirem seguras, amadas, etc, como de alimentos. Se não concordas então é outra discussao (da qual poderias fazer 1 post bastante interessante...).

2- Se achas que comida e agua satisfazem uma pessoa nessa condição é contigo. eu pessoalmente não concordo. A prioridade é mantê-las vivas, mas um trauma como perder a familia toda numa catastrofe como esta não é resolvido por comida, agua, mantimentos e mantas. Se pudemos dar esperança a criança que perdeu as unicas pessoas que ela conhecia e que cuidavam e protegiam dela, devemos faze-lo.
Não é uma questão entre comida ou cuidado emocional. Existem recursos e ha que saber utiliza-los nos locais e alturas certas.

3 - Se partes do ponto principio que Deus existe para provares a sua hipocrisia, ou pelo menos a hipocrisia presente neste texto da biblia, vou partir do mesmo principio para dizer a minha opiniao.
Deus olhou para o mundo e ficou triste. Então decidiu fazer 1 esforço do caraças e deixar que 1 das pessoas com quem tinha estado desde TODA A ETERNIDADE, e que gostava mm bue, sofresse bue cenas para que todos os Homens pudessem viver para sempre.
Se conseguires imagina (isto funciona cmg, ve-se funciona cnt) que tinhas o teu filho, a 1 palmo de ti a sofrer as maiores e enormes barbaridades. tu esticavas o braço e salva-lo... nas calmas. mas para seres justo tinhas de deixa-lo sofrer por todas as pessoas (nos) que cometeram erros. Diz-me... Achas que alguém que fez este esforço todo, que sofreu isto tudo, que viu tudo isto acontecer, de um momento para o outro cagava na Humanidade e dizia: "deixa-os morrer, agr nao me apetece"?
Tu vês o que quiseres, nos acontecimentos a tua volta. (parece que agr até estou a falar sobre a existência de Deus xP)
Eu acredito que todas aquelas pessoas foram e ainda são, vivas ou mortas, amadas por Deus. As que salvou eu agradeço-Lhe por isso. As que morreram e que não estão com Ele agr, eu ponho a minha mão no fogo como Ele LITERALMENTE, chorou e ainda chora por elas.

Desculpa o tamanho.

abraço!

Renato Rocha disse...

Tiago:

Vou tentar ser breve na minha resposta, e expressar a minha opinião o mais rápido possível; no entanto, não vou esconder algum desapontamento. A tua resposta não só está factualmente errada, como demonstra desatenção ao ler quer o post quer a minha primeira resposta. Provavelmente vou dizer coisas ofensivas e violentas, e por isso peço desculpa.

1- Não é a primeira vez que utilizas o argumento “um amigo meu, que é (inserir grau de autoridade), garante-me que isto é verdade”. A experiência do teu amigo em nada valida a tua afirmação, e mesmo que assim fosse… O Haiti não é África. Não estamos a falar de uma pequena tribo africana sem água, em que a ajuda directa de organizações humanitárias pode realmente fazer a diferença e cujos esforços são muitas vezes combatidos e sabotados pelos mercados negros e milícias locais. Estamos a falar de uma capital devastada de lés a lés por uma catástrofe súbita e sem precedentes. Basta ligar a TV ou abrir um jornal para ver os pedidos de ajuda, as estimativas dos custos da emergência médica, ou o que os responsáveis das organizações humanitárias estão a dizer neste momento: não há memória de uma catástrofe assim, e todos os esforços serão poucos. Falamos de centenas de milhar de mortos, e MILHÕES de desalojados sem alimento, alojo ou medicação apropriada: tudo isto numa cidade destruída e sem infra-estruturas capazes de responder eficazmente a uma situação como esta. Se para ti “chovem” alimentos e mantas, então convido-te a cair na realidade. Serias a primeira pessoa a avaliar a actual resposta internacional dessa maneira. Um amigo meu, que já foi ao Haiti, diz-me que estás enganado.

(continua)

Renato Rocha disse...

(cont)

2- Quanto à tua observação, que por si só demonstra a tua falta de atenção ao ler a minha resposta anterior, não merece grande comentário. Portanto, resta-me copiar na íntegra a minha resposta anterior a uma pergunta que fizeste, muito semelhante a esta:

A prioridade, neste momento, está longe de ser o conforto espiritual. E, tal como disse no post, a prioridade deve ser dada ao transporte de medicação e alimento ao invés de gastar tempo, dinheiro e oportunidade a alimentar paz de espírito. Duvido que alguém numa situação de esfomeado desespero escolha uma Bíblia e não um bife ou uma garrafa de água. Se acho que comida, abrigo e medicina satisfazem uma pessoa? Neste contexto? Obviamente que sim, pelo menos para já. Não sou eu a dizê-lo, basta ligar a televisão ou abrir um jornal e ouvir o que nos dizem os directamente envolvidos neste tipo de catástrofes. A prioridade não está em manter o bom espírito na população, está em manter a população viva.
Se tu pessoalmente não concordas, isso é contigo. Eu não descordo contigo “pessoalmente”: é razoavelmente óbvio que a prioridade deve ser, SEMPRE, manter uma pessoa viva e não deixá-la morrer em absoluto conforto espiritual. Suponho que para alguém que acredite que a maioria destas pessoas vai na verdade ascender ao Céu, a sua morte imediata não seja de grande preocupação. Sei que nunca afirmaste tal coisa, mas está implícito no teu raciocínio quando dizes que conforto espiritual é uma prioridade tão grande e urgente como a hidratação. Nós, que vivemos no mundo real e objectivo, acreditamos que por muito boa que seja a vida após a morte, a vida actual deve ser preservada a todo o custo.

(continua)

Renato Rocha disse...

(cont)

3- Mais uma vez aproveitas uma resposta para citar alguma informação sobre as tuas crenças; o que é aceitável, apesar de pessoalmente estar à espera da TUA opinião. No entanto, responderei ao que me disseste, em particular, como Deus salvou o mundo com o seu filho e como deus chora pelas vítimas do terramoto.
Vou desde já “despachar” a história de Jesus, porque não é este o tema central. Deus deu o seu filho (que era, supostamente, ele próprio ao mesmo tempo) à Humanidade, sacrificando-o para nos salvar a todos de todos os horríficos pecados cometidos. No entanto, o que sacrifica Deus? O seu corpo? De que forma pode, para o Criador do universo, ser o sacrifício de um corpo físico uma coisa assim tão fantástica? Além de que, no fundo, Deus está a “salvar-nos” de um sistema que ELE PRÓPRIO criou de raiz. Deus criou o Homem de determinada forma, sabendo (porque é omnisciente) que o Homem tomaria certas decisões e atitudes; definiu uma série de regras que o homem deveria seguir, mesmo sabendo de antemão que ele não as seguiria; depois, castiga-nos por fazermos exactamente o que ele já sabia que íamos fazer; e por fim, sacrifica-se a si próprio para nos salvar de si próprio. É esta a estrutura geral da história que me contas, quando lhe retiro a carga emocional com que a tentas barrar flagrantemente.

(continua)

Renato Rocha disse...

(cont)

Perguntas-me de seguida: Achas que alguém que fez este esforço todo, que sofreu isto tudo, que viu tudo isto acontecer, de um momento para o outro cagava na Humanidade e dizia: "deixa-os morrer, agr nao me apetece"?

Acho, e é óbvio que assim é. Deus criou o mundo, com todas as suas características; e, sendo omnisciente, sabia de antemão tudo o que iria acontecer como consequência dessas características! Deus sacrifica o seu filho e ele próprio ao mesmo tempo, e supostamente sofre com isso, com a finalidade de nos salvar; então, que finalidade tem o sofrimento de todos aqueles que morrem em violentas catástrofes naturais, como consequência directa das imperfeições do planeta criado por Deus? Ele assim o quis? Então como poderá ser benevolente? Fará parte do seu plano maior? Então como poderá ele ter a lata de “chorar”, como dizes, pelo sofrimento dos seus filhos? Foi ele o responsável por toda a situação, e dizeres-me a mim que ele chora por causa de algo que ele próprio deixou acontecer é chamar o teu Deus de estúpido ou malévolo.
Utilizarei a mesma analogia que tu, a do pai e do filho. Imagina um pai que traz ao mundo um filho, e que o põe a viver numa casa. Imagina que o pai construiu essa casa, e ama o seu filho. Imagina que o pai sabe que a casa tem imperfeições: fundações mal feitas, problemas de canos, fugas de gás. Imagina que esse pai, sendo omnisciente, sabe que no dia tal às tantas horas vai haver uma horrenda explosão, e que essa explosão matará o seu filho. Imagina que esse pai, sendo omnipotente, pode evitar essa situação. E imagina que esse pai, sendo benevolente e todo ele Amor, decide nada fazer. Quando a polícia investigar o caso, o pai será entrevistado e dirá que chora e sofre pela perda do filho. Para mim este é o retrato de um psicótico, não de um pai benevolente; e ninguém defenderia o pai com o argumento que tu usas para defender Deus: “Ele ama o seu filho, ele chora pela sua morte!”
Em conclusão, Tiaguinho, mesmo que o teu Deus me aparecesse à frente neste momento, eu continuaria a achá-lo um monstro vil. A sua existência ou não existência é irrelevante. Mesmo que ele exista e tenha as características que tu lhe atribuis, personagem ou realidade, ele é para mim uma criatura desprezível. A mim pouco que me importa se ele tem a hipocrisia de “chorar” pela sua criação quando é ele o responsável pelo seu sofrimento; muito menos que ele “salve” algumas pessoas (Engraçado como se 200.000 morrerem num terramoto mas uma mulher sobreviva, a mulher é prova que Deus existe, é bom e gosta de nós, e o resto dos mortos também é prova de que Deus existe, é bom e gosta de nós! Portanto, se eu entrar num centro comercial, matar todas as pessoas lá dentro menos um bebé, eu serei um herói e a personificação do Amor, uma vez que poupei um bebé! É um milagre!). É um Deus que, mesmo que fosse verdadeiro, não mereceria a minha veneração.

Não peço desculpa pelo tamanho da minha reposta, uma vez que são questões que requerem especial atenção e não podem ser tratadas com dois parágrafos pequenos. Compreendo que não querias responder a isto; mas se o fizeres, por favor inclui a tua opinião e não o debitar sistemático das tuas crenças.

Abraço!

What disse...

Deus é uma espécie de bebé grande.
Os miúdos normalmente fazem coisas erradas (por exemplo, bater com um brinquedo numa mesa até ele partir) e depois choram pelo erro que cometeram.
Se for assim, então tudo bem.
Mas os bebés que fazem isso não são omniscientes...