sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Um Homem chamado Destino, uma Senhora vestida de Branco

Isto só fará sentido depois de lerem o último post, "Uma Mulher chamada Ovária, um Homem chamado Destino". Se mesmo assim não fizer sentido, paciência. Coisas de autor.

A Senhora Branca não tinha idade, e à sua volta tudo era mais recente do que ela; até o mundo. Quando caminhava por uma floresta, os pássaros deixavam de cantar e os animais ferozes escondiam os dentes, vendo-a passar, iluminados como que por uma luz branca e leitosa que irradiava dos cabelos da Senhora. Era toda ela branca, mais branca que a mais branca das luzes ou o mais branco dos linhos; e trazia as mãos vazias, esvoaçando levemente ao vento e acompanhando o ritmo dos pés descalços.

A Senhora Branca entrou no quarto da estalagem, e olhou para a estranha criatura deitada sobre a cama. Havia um cheio a podridão e carne ressequida que violava as suas narinas, capazes de cheiras os mais puros aromas do mundo; e no entanto a sua pálida face de mármore mal se entortou ou estremeceu. Aproximou-se do homem esquelético, e deixou que a pálida luz branca que irradiava o acordasse do seu sono delirante.

- Senhora - disse o homem esquelético, mastigando as palavras com a língua de cortiça - Ajude-me.

- Seu idiota ignorante - disse a Senhora Branca, sentando-se à berma da cama e colocando a sua mão de seda sobre o joelho amedrontado do homem esquelético - Como te sentes?

- Água. Por favor, Água.

A Senhora Branca dobrou-se sobre um copo sujo na mesa de cabeceira e trouxe-o aos lábios finos e chupados do homem. Ele bebeu com sofreguidão, tossiu umas quantas vezes, e quase se engasgou.

- Calma - disse a Senhora, na sua voz de veludo branco - Respira. Como te sentes?

- Como se morresse.

- Assim o é, meu querido - disse a Senhora com um sorriso.

- Perdi o Destino. Senhora, perdi-o. Levaram-no.

- Bem sei. Descansa, agora. Terás tempo, mas respira e descansa. Quando acordares ainda aqui estarei.

E o homem esquelético adormeceu, e quando acordou dois dias depois estava curado e a Senhora Branca permanecia ao seu lado.

***

A pele do peito voltara a crescer, como uma crosta mole e estranha ao resto do corpo. O homem esquelético, em temos e durante eterniades chamado Destino, era agora um homem esquelético apenas. Nada restava da sua eterna personalidade.

- Sabes porque aqui vim, não sabes? - perguntou a Senhora, sempre branca e sempre bela - Deves recuperar o Destino dos Homens. Sem ele, não haverá paz.

- Foi a mulher. Ovária. Foi ela que mo tirou.

- Os Deuses estão desapontados, Destino. Muito desapontados.

- Bem sei, Senhora.

- E esperam que sejas capaz de corrigir o mal que fizeste. As consequências de uma missão falhada são demasiado desastrosas para serem sequer consideradas. Compreendes-me, Destino?

- Compreendo, Senhora. Perdoe-me.

- Visitar-te-ei em cinco dias, para saber como estás. Se até lá não tiveres encontrado o Destino, os Deuses terão de procurar outra pessoa para o fazer. Reconheces as consequências que terá o teu insucesso?

- Reconheço, Senhora.

- Vai, Destino. Lembra-te. Cinco dias.

***

Por quatro dias caminhou Destino, enrolado num manto velho e arrastando os ossos pelos caminhos. Sentia frio, sentia fome, e de Ovária nem o mais vago sinal. A mulher que o ajudara e que lhe salvara a vida evaporara-se como um sonho, levando consigo a sua pele e o seu próprio eu. O que restava de Destino, sem o destino na pele, era uma carcaça ressequida com um conteúdo mole e vísceras tremendo de fraqueza. Chovia agora, na noite do quarto dia, e a Lua alta fazia antever a meia noite. O quinto dia não demorava, e Destino, apesar da ironia, sabia que destino o esperava. Deixou-se tombar no chão da floresta, a meio caminho entre duas aldeias longínquas e tão afastadas dali que as suas fogueiras não eram mais do que pequenos pontos de luz por entre as árvores. Pensou que ia morrer, e a coisa mais bela do mundo surgiu-lhe à frente e estendeu-lhe uma mão branca e fria.

- Ele deseja ver-te - disse a Senhora Branca. O que em tempos fora o Destino estendeu um dedo chupado, e tocou na palma da mão da Senhora. A floresta desapareceu, o chão também, e tudo o que via era a mais pura das luzes divinas. À sua frente, à sua volta, por todo o lado, estava a figura gigantesca e grotesca de um leão dourado, de longa juba com todas as estrelas dos firmamentos. A boca do leão podia tê-lo engolido quando falou:

- Porque falhaste, Destino? - e a voz estendeu-se pelo mundo todo, antes de vir ecoar dentro dos seus ouvidos.

- Nem sei que lhe dizer - disse o homem que em tempos fora Destino, deixando-se aquecer pela luz branca. O leão dourado deu duas voltas sobre si mesmo, e voltou a abrir a boca.

- Falhaste. Que outros tenham melhor sorte que tu. E agora, o que pensas que te resta?

A voz do leão ocupava galáxias inteiras.

- Morrer - disse o homem que fora Destino, fechando os olhos; mas mesmo com os olhos fechados podia ver o leão infinito à sua frente.

- Os Deuses não morrem. Em tempos foste um de nós, mas uma vez falhaste e uma vez foste castigado. Agora voltaste a falhar, e segunda vez receberás um castigo. Está a tornar-se rotina, Destino.

- Peço perdão - disse o homem, ou melhor, o resto de homem - Perdão.

- Destino. Ouve-me. Não serei eu a escolher. Que vivas com as consequências do que fizeste. Voltaras a caminhar o mundo como um homem, mortal como qualquer homem, e submetido ao Destino como qualquer homem. Destino que perdeste. Adivinha o que se segue?

- O caos - disse o homem esquelético, e o leão deu mais duas voltas sobre si próprio.

- Vai, e não chames por nós quando rezares pois não te acudiremos.

E a floresta voltou, e o leão foi-se, e o homem em tempos chamado Destino levantou-se do chão e encarou a Senhora Branca.

- Sinto muito, a sério - disse a Senhora.

- Não a voltarei a ver, Senhora.

- Talvez de visite, apesar de não visitar os Homens. Quem sabe. Só os Deuses.

E com isto a Senhora Branca desapareceu também, e nunca mais o homem esquelético, em tempos um Deus, em tempos o Destino, viu uma face tão doce ou uma luz tão branca.

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