Previamente, em Smith e as Sereias, Poseidon decidiu finalmente aceitar a sua homossexualidade e seguir com a sua vidinha. Já não era sem tempo.
O salão de banquetes, onde se realizavam as refeições no palácio, foi decorado com enormes faixas dizendo A CORTE APOIA O REI POSEIDON, escritas em letras douradas e vermelhas. Castiçais gigantescos com frascos de plâncton bioluminiscente iluminavam as mesas enormes, cobertas por talheres talhados à mão a partir dos mais finos e resistentes corais sul-americanos. De um lado do salão, Sebastião presidia a uma comitiva impressionante de carapaus, atuns, sardinhas, peixes-espadas e outras criaturas marinhas, todas vestidas a rigor com fatos pretos e bandejas prateadas nas barbatanas. E às mesas sentaram-se todas as sereias da corte, incluindo Ariel, Lilith e, a seu lado, o moço louro e Smith (na sua cadeira de rodas).
Poseidon subiu a um pequeno púlpito, no cimo do salão. Olhou em volta. Silêncio puro.
- Meus queridos filhos sub-aquáticos – disse – Obrigado por esta maravilhosa festa. Acreditem que as vossas calorosas boas vindas não são despropositadas. Hoje celebram vós e celebro eu também a chegada de um Poseidon renascido. Um Poseidon novo. Este Poseidon é homossexual. Alguém tem algum problema com isso?
Silêncio total.
- Como sabem, uma dica anónima informou os jornais desta minha característica.
Smith corou bruscamente e tossiu.
- Mas o tempo para rancores terminou, e hoje encontro-me preparado para recomeçar a minha vida. É por isso que gostaria de vos apresentar o meu companheiro, que sempre me apoiou em todos os momentos. Por favor, saúdam Namor, o Príncipe Atlante.
Uma porta abriu-se, e Namor entrou no salão. Estava envergonhado. As sereias torceram os pescoços para o ver entrar, e o burburinho começou. Uma das sereias, uma rapariga de cabelo castanho e banha na barriga, falou mais alto que as outras:
- Eia granda bronca, é o ex-marido da Ariel!
- Shiu! – gritou outra sereia.
- Aquela gorda é uma desbocada – rosnou Lilith, servindo-se de mais vinho.
- Aquele é o teu ex-marido? – perguntou o moço louro a Ariel. Ariel disse que sim com a cabeça.
- E afinal – continuou o moço louro em voz baixa – vocês vão-se casar ou não? Tu e o Smith?
Smith e Ariel trocaram um olhar desconjuntado.
- O meu pai há me libertou de qualquer obrigação, por isso acho que não – disse Ariel.
- O que queres dizer é que não tens bem a certeza – cortou Smith, tomando a palavra – Mas não podes ignorar os bons tempos que passámos os dois quando estive doente.
- Tecnicamente ainda estás doente – comentou Lilith – Mas com melhor cara. Isso ainda te dói?
- De vez em quando.
- Smith, não tive oportunidade de te pedir desculpas – disse Lilith.
- De quê?
- De ter sido uma verdadeira sacana contigo. Aquela coisa de te ter aconselhado a dar umas algas verdes à Ariel. Eu sabia que ela era alérgica.
- Bem me quis parecer – comentou Ariel, mastigando um aperitivo.
- Mas foi tudo feito com a mais sincera e descontrolada obsessão amorosa – continuou Lilith – Que agora já me passou. Compreendo finalmente que tenho sérios problemas de controlo de emoções. E de libido.
- Não faz mal – disse Smith com um sorriso.
- Não, a sério – insistiu Lilith - toda aquela coisa de ter planeado a tua morte é coisa do passado. E aquilo de te ter agarrado na estufa e…
- Uau, este vinho está maravilhoso – quase gritou Smith. Ariel olhou-o de lado. Em cima do púlpito, Namor juntou-se a Poseidon.
- Eu sei, eu sei – disse o Rei dos Mares a todo o salão – Todas vós devem estar a perguntar-se porque é que me apaixonei pelo ex-marido da minha filha Ariel.
- Ah ah! – gritou a sereia com banha, triunfante – Eu disse!
- A verdade é que aconteceu por acaso, e o capítulo 3 do livro que estou a ler avisa-me que é importante não sentir a necessidade de me desculpar a torto e a direito – continuou Poseidon.
Houve uma salva de palmas. As sereias soltaram palavras de apoio. “É isso mesmo, pai!”, gritavam. A porta lateral abriu-se e o Profeta Salmão entrou no salão. Houve um silêncio brusco.
- Eia grande bronca! – gritou a sereia com banha, num timing perfeito. Alguém a mandou calar.
- Vejo que a consumação da heresia foi efectuada sem sequer esperarem por mim – resmungou o Salmão, aproximando-se do púlpito – Olhai bem para vós. Não sabeis o que disse a Pescada Santa sobre a homossexualidade?
- Que era proibida! – berrou a sereia com banha.
- Afinal quem é aquela? – perguntou Smith, apontando para a sereia gorda.
- E mesmo assim – continuou o Salmão, em voz alta – Aqui está o Rei dos Mares a pavonear-se com o seu herege amante homossexual, o qual com toda a certeza gosta de sodomizar!
- Profeta Salmão, com todo o respeito – disse Poseidon – faça o favor de não me ofender no meu próprio Palácio.
- Estás a pôr acendalhas no teu próprio grelhador, Poseidon! – berrou o Salmão, a começar a ficar vermelho – Nunca ouviste o ditado “Quem te persegue com as suas obsessões religiosas, teu amigo é?”
- Terei oportunidade de falar consigo sobre isto de manhã, Profeta – disse Poseidon – Agora por favor, eu gostaria de continuar o meu jantar com as minhas filhas.
O Profeta Salmão agitou as barbatanas e espalhou panfletos vermelhos pelas águas. Os panfletos espalharam-se como chuva de confetis.
- Deixo-vos com um pouco de decência e responsabilidade moral, minhas queridas sereias! E com desejos de vos voltar a ver na Igreja no próximo Domingo!
O Salmão virou-se de costas e correu porta fora, agitando-se com todo o dramatismo como uma senhora da alta sociedade que acabou de ser ofendida.
Smith agarrou num dos panfletos. Em enormes letras gordas, dizia JÁ TE ABSTIVESTE HOJE? UM GUIA PARA A VERDADEIRA PAZ (SEM SEXO).
- Uau! Tem bonecos ilustrativos! – gritou a sereia com banhas, lendo o folheto.
***
Retirado do jornal Diário Anémona,
ESCÂNDALO NO PALÁCIO
O Profeta Salmão foi violentamente banido do salão de banquetes do Palácio Real na noite passada, altura em que Poseidon, o orgulhoso governante gay, deu a conhecer a toda a Corte o seu amante homossexual, o ex- Príncipe Atlante Namor.
“Entrei no salão e fui imediatamente ameaçado com sodomizações várias” declarou o Profeta Salmão ao nosso enviado especial, “E foi com dificuldade que afastei as tentativas de sedução de pelo menos três atuns”. O Profeta descreve que Poseidon e Namor se beijaram em público, de língua, e que, obviamente, isso apresenta “um desrespeito à minha sensibilidade”.
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