segunda-feira, 25 de abril de 2011
Cartas para Andrómeda #3
Há quanto tempo! Hoje arranjei um tempinho para lhe escrever porque no país onde estou hospedado é feriado. Os feriados são dias em que se celebram coisas de que poucas pessoas se lembram e em que não se trabalha. Hoje, no entanto, é um dia especial. Celebra-se uma revolução extremamente aborrecida que aconteceu há 37 anos atrás (muito pouco tempo na escala humana), em que nem sequer morreu ninguém de importante e onde se instaurou no país uma coisa chamada Democracia.
Antes dessa revolução havia uns senhores que mandavam e torturavam as pessoas. Nessa altura toda a gente era analfabeta e por isso pensava que vivia bem. Não havia liberdade, porque as pessoas eram presas por pensarem por si próprias. Depois vieram os militares, que mudaram o sistema ditatorial para um sistema democrático. O meu professor de Estudos Humanos explicou-nos ontem que este é um sistema muito valorizado pela população, porque a maioria continua a achar que o seu voto faz toda a diferença.
A democracia é uma coisa esquisita, Tia, e ainda bem que não a temos aí no nosso bom planeta. Democracia significa que todas as pessoas desenham cruzinhas num papel, à frente do nome da pessoa que querem que governe, e depois esperam pelos resultados em casa durante o jantar. Eles acham que isto é justo, porque acham que a cruzinha de uma pessoa burra deve valer tanto como a cruzinha de alguém que se informa. E como as pessoas não gostam de política, dão sempre a sua cruzinha aos senhores que se vestem melhor, ou que gritam mais alto, ou que dão mais bandeirinhas na rua. Talvez por isso ganhem sempre os mesmos; e mesmo assim as pessoas não estão satisfeitas, e por isso gostam muito de perder tempo em manifestações e em festas para celebrar a data.
A vida das pessoas está muito melhor agora, depois da revolução, porque já possuem liberdade para dizer o quanto os governantes que eles próprios elegem são uma porcaria. E, além disso, têm sempre o poder de eleger governantes diferentes. Porque será que elegem sempre os mesmos? Eles lá saberão. A mim faz-me confusão, e o professor também nunca me soube explicar bem esta questão. Vou continuar a tentar perceber, e talvez um dia tenha uma resposta para si.
Também perguntei ao professor se ele não achava esquisito um sistema em que uma população maioritariamente mal informada decide o seu futuro quanto a complexas e especializadas questões económicas, sociais e políticas, e ele disse que sim, achava esquisito. Talvez isto explique por que é que os humanos são tão estranhos e diferentes de nós!
Como vão as coisas na quinta? Os ghdgy já deram frutos? Espero que não matem muitas crianças este ano… E o nosso Ditador Infinitamente Iluminado? É verdade que morreu e que andam a fazer testes de QI e cultura geral para saber qual dos governantes lhe deve suceder? Mande notícias!
O Seu Sobrinho
sábado, 23 de abril de 2011
História em Segundos #3
quarta-feira, 20 de abril de 2011
terça-feira, 19 de abril de 2011
Vamos pensar com profundidade
segunda-feira, 18 de abril de 2011
História em Segundos #2
Mudo o lençol da cama. Sujaste-o. Podia dizer que tinha sido com o teu suor, e com o meu. O nosso suor, numa mistura com fortíssimo carácter erótico. Quase pornográfico. Afinal, nem está calor o suficiente para nos fazer suar dessa forma. Até porque, convenhamos, não me fazes suar assim tanto quando fazemos o Amor. Dás-me um ou dois puxões, e depois pronto. Não estou a dizer que o que fazemos é péssimo, não me interpretes mal. É só que. Bem… Gostaria de poder dizer que mudo o lençol da cama por o teres empastado com o teu suor, o teu aroma de mulher leoa, e todos esses estereótipos. Mas não. Babas-te a dormir. Por isso mudo o lençol da cama. Mas amo-te na mesma. Ok?
sábado, 16 de abril de 2011
The Fernandez Challenge #4
José, sentado sobre uma pedra, observa uma vaca a mastigar relva com o entusiasmo de um doente terminal. Estão ambos, José e a Vaca, num prado verdíssimo e iluminado por um sol de Verão daqueles de postal. Um figurão de mulher, com os cabelos louros e cara de quem acabou de chegar às Finanças quando já não há senhas para esse dia, senta-se a alguns metros, aliás bastantes, à beira de um riacho.
José observa a Vaca e aguarda. O seu maxilar sobre, desce, desliza e oscila. A relva vai sendo sugada e engolida, e armazenada num misterioso compartimento do qual José tem o conhecimento superficial de quem tem um contacto íntimo com as vacas e bovinos em geral apenas no prato, e preferivelmente com batatas fritas.
O figurão de mulher, junto ao riacho, cruza os braços e encosta-se a uma árvore meio caída. José observa-o, deliciado, num misto de fascínio e sensação de perda do autocarro. Tinha-a trazido ali para um piquenique romântico, que incluía um vinho, morangos, queijo de barrar, tostas em forma de peixe e pratos de porcelana. Tudo no maior cuidado e na maior expectativa: José planeava dar à mulher sua namorada um enorme anel de diamantes, que lhe havia custado seis meses de poupanças e alguns sacrifícios pessoais dos quais não se orgulharia a longo prazo.
No momento alto do lanche, em que o sol se punha no horizonte e o riacho emitia um som mesmo mesmo à riacho, José retirou a caixinha do bolso e, com mãos tremidas, estendeu-o à sua mais-que-tudo. Ela surpreendeu-se, acabou de mastigar uma das tostas em forma de peixe, largou-se num pranto descontrolado e disse que sim, sim, sim! E depois agarrou-se a José com a intenção de aproveitar a solidão que os rodeava num momento mais intimista; e algures pelo meio das aberturas dos fechos éclair, a Vaca aproximou-se e abocanhou o anel, engolindo-se sem demoras.
A José restou-lhe um sentimento de culpa e uma forte sensação quente na área da virilha, interrompida pela frieza da sua mais-que-tudo que, furiosa, se afastou a praguejar. Uma vaca devora de anéis é, convenhamos, uma boa forma de interromper qualquer momento romântico e potencialmente erótico.
José lembrou-se da particularidade que toda a gente conhece das vacas, isto é, que dão leite. E só depois de outra particularidade, aliás comum a outros herbívoros, que é o acto de ruminar. Era necessário esperar que a Vaca fizesse regressar a comida mal mastigada à boca para, aí, recuperar o anel. Para isso trouxera já um pé de cabra do automóvel, estacionado a alguns metros, caso fosse necessário forçar a abertura do maxilar da ruminante criatura.
E esperaram. José esperou. A sua mais-que-tudo, furiosa, esperou. E ambos aproveitaram a espera para reflectir sobre si próprios, uma vez que não havia pró ali edições antigas da TVGuia com que se entreter.
José pensou sobre a sua vida. A sua carreira como escriturário. As suas imcapacidades físicas na área do amor. A forma como a sua sensibilidade artística (decorava sofás como ninguém) tinha atraído o amor do mulherão a quem quisera pedir a mão. A surpresa, quando a mulher que antes o intimidava ao ponto de suar dos pés e da testa, aceitou namorá-lo. A felicidade no dia em que a apresentou aos seus pais, que aprovaram a sua personalidade formal e católica mas mostraram algumas reticências em relação ao seu decote exagerado. O decote exagerado. O decote mais exagerado. O decote todo aberto. O conteúdo do decote esparramado nas suas mãos, para sua utilização imediata e…
José agitou a cabeça e olhou a vaca. O seu maxilar parecia mastigar. O seu estômago soltou um ruído. Ruminaria daí a uns minutos, era certo. José preparou-se para receber o anel.
A Vaca ruminou, começou a mastigar relva abundantemente, ruminou-se toda outra vez e os seus olhos abriram-se, surpreendidos. Que é isto, pensará ela, a arranhar-me as entranhas? Mal sabe o animal que se trata do diamante valiosíssimo.
A vaca caiu para o lado, com uma fortíssima hemorragia interna sabotando-lhe os planos para o futuro. Tantos sonhos, tanto pasto por comer, tanto leite por ejacular…! E para quê?
José, feliz, abriu o maxilar da Vaca e puxou-lhe pelo meio da língua suculenta a caixinha semi-digerida com o anel lá dentro. Envolto em gosma de Vaca, caminhou até ao riacho, tropeçando aqui e ali, e ajoelhou-se à frente da sua mais que tudo.
- Amo-te, amo-te, amo-te! Casa comigo…
E a sua mais-que-tudo limpou-lhe a gosma com o lenço, o seu beiço avantajado transformou-se num sorriso, e os dois fizeram o Amor, tórrido e sentido, sobre o cadáver da Vaca que nunca mais voltaria a ruminar e a quem o destino trocara as voltas.
quinta-feira, 14 de abril de 2011
História em Segundos
Esta é a nova rubrica aqui do blog. O objectivo é retomar a pedalada há muito perdida graças a todos estes meses de não-escrita. Uma história, pequena, escrita de improviso, em poucos segundos ou minutos, cujo objectivo é começar com uma frase e ir vendo como corre pelo caminho. As consequências, posso prometê-lo, serão tão surpreendentes para vós como para mim.
Gil era um cão. A sua mãe era uma cadela; e mesmo que alguém lhe dissesse tal coisa ele nunca se ofenderia. Gil era um cão mas era inteligente: e sabia perfeitamente que, por definição, a sua mãe tinha de ser uma cadela. Pior seria se a sua mãe não fosse uma cadela. Nesse caso, Gil seria um cachorro-proveta. Ou pior, um cachorro órfão. Mas, ainda assim, mesmo órfão, mesmo proveta, o Gil continuaria a ser um cão e uma gloriosa consequência de uma fecundação bem conseguida, ou num tubo de ensaio ou no útero da cadela que era a sua mãe; ou seja, continuaria a ser essencial para a existência de Gil, o cão, a existência de uma cadela sua mãe, que lhe tivesse facultado metade do material genético que é hoje em dia a pastosa identidade bioquímica do animal. Conclui-se, assim, que chamar cadela à mãe de Gil não poderá nunca ser uma grande ofensa. A não ser que Gil, num momento de exagerada sensibilidade emotiva, se ofendesse com facilidade perante tamanha evidência. Gil não é, de todo, um cão burro; o que, por si só, seria uma contradição difícil de impingir a alguém. A não ser, claro, que a mãe de Gil fosse fecundada por um burro. Isto é, claro, impossível. Tratam-se de espécies diferentes, extremamente afastadas na árvore da vida, e por definição impossíveis de cruzar; mas se não fosse esse o caso, e tivéssemos nós um milagre biológico nas nossas mãos, poder-se-ia dizer que Gil, o cão, teve uma mãe cadela e um pai burro.