Então:
estava eu calmamente a enterrar uma pessoa que tinha acabado de matar à paulada
quando dei com a pá em qualquer coisa dura. Pensei logo: outra pedra, caramba.
Experimentem estar com pressa para enterrar um tipo que ainda por cima não é
nada magro e encontrar pedras de cinco em cinco minutos. Lá a tentei escavar a
custo. Tirei-a da terra, limpei-a com a manga e engoli em seco: estava a
segurar num pedaço de ouro puro.
Era
do tamanho do meu punho. Coisa enorme e pesada. Pensei: quem é que me enterrou isto
no jardim sem eu dar por isso? Cheguei logo à conclusão que tinham sido
provavelmente uns piratas ou contrabandistas marroquinos a fugir à polícia que
por ali tinham passado e, num instantinho, enterrado o seu saque a um metro e
tal de profundidade (os mortos enterram-se bem fundo para que os cães não os
encontrem enquanto esgravatam à toa).
As
minhas reflexões comeram-me cinco ou dez minutos, não sei bem; foi o suficiente
para a estúpida da minha porteira vir coscuvilhar por entre as sebes do meu
jardim, ver o gordo morto e eu de pá em punho, e ir chamar a polícia. Quando
dei por mim estava com a polícia à perna. Literalmente. Um polícia agarrara-se
à minha perna para não me deixar fugir; e o parvo empurrou-me com tal força que
o pedaço de ouro saiu disparado das minhas mãos e foi acertar na testa da
porteira, que coscuvilhava ainda por entre as sebes.
-
Renato Almeida Rocha – disse um detective enorme, de bigodes e gabardine,
comendo donuts e bebendo café como nos filmes – O senhor está preso pelo
assassinato deste gordo que aqui está deitado e da sua porteira, Dona Clotilde.
- Eu
não matei a porteira.
-
Então olhe lá para ela.
Olhei:
estava de facto estendida no chão, com sangue na testa e o pedaço de ouro ao
lado, as suas mãos flácidas e pálidas segurando ainda a última edição da TV
Guia. Ainda tentei ler os últimos desenvolvimentos na vida pessoal do Goucha
mas fui interrompido pelo polícia que voltou a atirar-se para cima das minhas pernas e a mandar-me ao
chão.
-
Pare lá quieto, que estou a conversar com o criminoso – disse o detective, e o
polícia atirou-se às pernas dele a chorar e a pedir desculpa.
- É
uma coisa que me dá, sô detective, atiro-me e pronto.
Consolei-o:
-
Deixe-se disso, não me aleijou nem nada.
-
Mas se não fosse eu – disse o polícia chorão, apontando para a porteira – A Dona
Amélia ainda estaria viva.
-
Estaria agora, com um assassino a viver no seu rés-do-chão – rosnou o
detective, olhando para mim e emborcando um donut recheado com chocolate
branco.
- Um
assassino? – gritou alguém. Olhei para o meu lado esquerdo (ou direito, não sei
precisar já qual; foi um deles): trepando pela porteira morta acima e
procurando atravessar a abertura entre as sebes estava Paulo Marques, o Famoso
Advogado.
-
Olha quem é ele – disse eu, reconhecendo-o.
-
Quem é este? – perguntou o detective dos donuts.
-
Paulo Marques, advogado criminal – disse o homem de fato impecável. Era daquele
tipo de pessoas que parece ter acabado de tomar banho e vestir-se na secção
mais cara do El Corte Inglés – muito prazer.
- O
prazer é meu. Quer um donut? – perguntou o detective.
-
Que vem a ser isto? Aqui o Renato Rocha, o meu cliente, foi apelidado por si de
“assassino” e “criminoso”. Então e o advérbio?
-
Qual advérbio?
-
Alegadamente.
-
Sim, mas alegadamente que advérbio?
-
Alegadamente é um advérbio.
- É
esse o advérbio a que se referia?
-
Definitivamente.
-
Gosta de advérbios, você.
-
Decididamente – respondeu Paulo Marques com um sorriso de anúncio de pasta
dentífrica.
- Eu
sou um mero estudante de cinema, tenho lá forma de lhe pagar... – avisei-o
logo. O advogado conduziu-me o olhar para o seu bolso: lá dentro estava o
pedaço enorme de ouro. Piscou-me o olho, ajeitou a gravata e foi até ao
detective dos donuts:
-
Que provas tem para acusar alegadamente o meu cliente?
- O
seu alegado cliente? Todas.
-
Não, o cliente não é alegado. O que é alegada é a acusação.
-
Mau. Você disse “alegadamente o meu cliente”. Ou ouvi mal?
-
Típico erro de português – interveio o polícia que agora se abraçara às pernas
de Paulo Marques – Se o advogado quisesse dizer isso a formulação correcta
seria “Que provas tem para acusar o meu alegado cliente”.
-
Assim se fala em bom português – acrescentei eu, de indicador direito espetado.
-
Que provas tem para acusar alegadamente, vírgula, o meu cliente que não é
alegado, é mesmo a sério?
O
detective gordo limitou-se a retirar um donut com pepitas de chocolate negro de
dentro do bolso da gabardine e apontar para o tipo gordo que eu alegadamente
matara alegadamente ontem à noite, com alegadamente uma arma que alegadamente
esperava que a polícia não viesse a alegadamente encontrar.
-
Vejo um pobre coitado pálido. E depois? – perguntou Paulo Marques.
-
Está morto.
- E
como sabe que foi o meu cliente quem o alegadamente matou?
O
detective levantou o dedo mindinho e agitou-o à frente do nariz de Paulo
Marques.
- Se
é só isso que tem para me dizer...
-
Ouça lá – resmungou o detective, parando de mastigar: a conversa tornava-se
séria – Este tipo morto escreveu uma carta endereçada à família que diz o
seguinte – retirou uma carta com nódoas de donuts do bolso e leu-a em voz alta
– “Querida família, foi o Renato Almeida Rocha que me matou. Com amor, Vicente.”
-
Portanto, tem uma carta do falecido Sr. Vicente...
-
Alegadamente falecido – interrompeu o polícia à perna de Paulo Marques – o
médico legista ainda não chegou para confirmar o óbito.
- O
alegadamente falecido Sr. Vicente diz nessa carta que foi o meu cliente quem o
alegadamente matou?
-
Diz pois, está aqui.
- E
como sabia ele o nome completo do meu cliente?
-
Viu-lhe o BI.
-
Alegadamente...
-
Alegadamente viu-lhe o BI.
- E
onde está a arma do crime?
-
Dentro da churrasqueira – disse o detective.
“Sacana
da porteira”, pensei.
Um
polícia aproximou-se com uma espada samurai igualzinha à que eu tinha no quarto
ainda há uns dias atrás, mas mesmo assim diferente da minha em quase tudo,
mesmo quase tudo.
-
Esta espada samurai é sua? – perguntou-me Paulo Marques.
-
Ora essa, eu sou lá pessoa de ter isso em casa.
-
Diz aqui – resmungou o detective do donut com frutos silvestres – “espada
dedicada ao Renato Almeida Rocha. Ass. Mestre Xiung – Iang”.
Paulo
Marques levantou um dedinho:
-
Alegadamente dedicada...
-
Não foi isso que o Mestre Xiung-Iang escreveu aqui. Mas só para confirmar...
O
detective assobiou alto. Apareceu um polícia escoltando um velho mestre de
armas chinês, ou coreano, ou japonês, ou vietnamita, os olhos deles são todos
iguais, aliás, nem sei quem é, nunca o vi mais magro ou mais gordo ou a fazer
espada nenhuma.
-
Mestre Sing Pung?
O
tipo chinês vez uma daquelas vénias com as mãos metidas dentro das mangas.
-
Confirme lá a veracidade desta espada fachavôr – o detective estendeu-a ao
coreano, que a analisou durante alguns segundos, e disse:
- ーズンの勝率が同率首位 !
- Que bronca, eu podia jurar que o que ele disse foi
em chinês… - comentou Paulo Marques.
- E depois? - resmungou o detective.
- Toda a gente sabe que os samurais eram japoneses.
- Toda a gente sabe que os chineses fazem de tudo e
mais alguma coisa, até galos de Barcelos.
- Alegadamente fazem tudo e mais alguma coisa. Oh Sr.
Detective, não acha que a sua testemunha está descreditada?
- Fui eu buscá-lo ao Japão para isto? – perguntou o
polícia que escoltava o mestre vietnamita.
- Ao Japão! – berrou logo Paulo Marques.
- Ao Japão – rosnou o detective, olhando de soslaio
para o polícia que escoltava o mestre coreano – porque o mestre chinês estava
lá a passar férias com a sua família de chinesinhos. Não é assim, oh Mestre
Feng Shiu?
-日本国!
- Agora já fala japonês? – perguntou Paulo
Marques – Isto é um escândalo de proporções nipónicas.
O polícia que Paulo Marques tinha à perna
soltou uma gargalhada, mas foi o único.
- Chega! – berrou o detective. Apontou para
mim - você, vem comigo para a esquadra.
- E eu vou também – disse logo Paulo
Marques. Depois murmurou-me ao ouvido – Não se preocupe, eles não têm nada
contra si.
Eu disse que sim com a cabeça e lá aceitei
ser algemado, sabendo que tinha o melhor advogado criminal a trabalhar para
mim. Ao menos já não tinha de acabar de cavar o buraco e enterrar o gordo.
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