sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A Mensagem


Mais tarde chamariam a atenção para o facto de ser 4 de Agosto. A praia algarvia estava cheia de gente. Cheirava a protector solar e a gelado derretido. No meio das ondas surgiu uma cabeça e, agarrada a ela, o elegante corpo de um jovem rapaz. Louro, de olhos claros, orgulhoso porte, todo coberto de algas e areia. As pessoas estranharam vê-o sair do mar sem no entanto o terem visto entrar primeiro; ainda por cima vestido. De onde vinha?

- Isto é Portugal? – perguntou o rapaz. Um turista disse que yes.

- Sou o Rei desta nação – proclamou, de braços estendidos como Cristo– e vim salvar-vos.


Os turistas começaram a tirar fotografias e a dizer very good mas os portugueses decidiram chamar a polícia. Assim que chegou, a GNR pediu ao rapaz que se identificasse.

- Não preciso – explicou ele em voz baixa, e a praia calou-se para o escutar– sou o Rei.

Um GNR agarrou-o pelo braço e levou-o para a esquadra. Já o esperavam as televisões, cansadas de entrevistar famílias por causa do calor e à espera de um escândalo de Verão. O tipo que se dizia D. Sebastião abriu o jornal das oito, e acompanhando-o os relatos de populares que, à hora da emersão do Rei, viram o sol brilhar mais belo e as nuvens afastarem-se: um augúrio com bom aspecto.

Uma equipa de historiadores e psicólogos foi chamada à esquadra para testar a veracidade da personagem. O rapaz louro sabia tudo sobre o Rei que afirmava ser, respondendo às perguntas mais complexas sobre o seu reinado e iluminando até alguns mistérios; e foi ele, sem qualquer sugestão por parte dos investigadores, a citar com enorme pormenor certos dados geográficos sobre Alcácer-Quibir.  Consumiu-se café, a madrugada voou; e os investigadores, já rendidos, resumiram ao rapaz a história nacional dos últimos séculos e terminaram com uma negra panorâmica sobre a actualidade. O Rei escutou os historiadores até ao fim, quieto e de queixo paralelo ao chão; e depois disse:

- Cheguei, nada há a temer.

Nascia o sol; e sobre a cabeça loura do rapaz escorreu a luz amarela da manhã.

Avisado do potencial de uma revolução monárquica, o Presidente da República mandou reunir os partidos políticos e o Governo para um encontro de emergência. Todos regressaram das suas férias em trote rápido. Disse o Presidente:

- O Rei garante a solução para todos os problemas do país, e assim prometia a sua profecia. Cá estaremos para ver como tudo corre; mas poderemos deixar que a democracia republicana, tão dolorosamente conquistada e mantida, corra o risco de ser substituída por um indivíduo de misteriosas intenções?  

O Governo e os partidos concordaram. No dia seguinte possuíam já curtas declarações sobre o rapaz louro, transmitidas à saída ou à entrada de uma reunião qualquer, com as quais pretendiam transmitir despreocupação. O Governo declarou que a precipitação era inimiga da verdade e a esquerda foi mais longe e afirmou que qualquer corpo abandonado em África há tantos séculos cabia apenas na morgue e não no Parlamento. Ainda assim, as promessas do Rei continuavam a sair em catadupa da pequena cela da GNR:

- Nada temam, eu sei como transformar o nosso país num Império.

E, dizia-se, o rapaz escrevia já as suas ideias em folhas de papel gentilmente cedidas por um polícia que tinha pena dele (e quem sabe alguma esperança). Alguns comentadores tiveram acesso aos rascunhos e, entusiasmados, profetizavam novos ventos políticos. O Partido Monárquico acampou à porta da esquadra algarvia a fim de apoiar o seu Rei, traçar árvores genealógicas e defender a democracia; e o Presidente da República, tentando a todo o custo acalmar as massas que se inflamavam, repetia que a República não estava em apuros.

O Governo, por sua vez, argumentava que a linha de políticas usadas até ali era contrariada pelas ideias do Rei, e que por isso elas não podiam ser aceites sem mais nem menos; e a oposição, peremptória, lembrou que as ideias do Rei iam contra tudo o que tinham defendido desde a última legislatura. Mas a população acarinhava o rapaz louro que dizia, entregando mais umas páginas manuscritas ao seu polícia: 

- Não confiem em mim; confiem nas minhas ideias.

Entretanto aspectos da vida pessoal do Rei invadiram a imprensa; por que mecanismos lá chegaram nunca se soube. Rumores de que o rapaz louro era homossexual, e por isso anti-cristão, chocaram muitos dos seus apoiantes. O Rei, no entanto, garantia:

- Em nada tal invalida a minha capacidade para liderar este país.

E como prova apresentava as suas páginas dolorosamente manuscritas, que se somavam de dia para dia num enorme manuscrito. Os comentadores que as liam em tempo real, suados e barbudos, afirmavam-se surpreendidos com a clareza do Rei mas começavam a duvidar que muitas das suas ideias endereçassem as verdadeiras questões. Outros comentadores, discordantes quer do Rei quer dos comentadores que discordavam primeiramente com ele, duvidavam que as verdadeiras questões estivessem sequer a ser consideradas.

Entretanto o Governo, confrontado com as ideias do Rei, lembrou que esses “rascunhos” não podiam substituir o programa de governo votado pelos portugueses, e a oposição defendeu que os escritos do rapaz louro não protegiam os desprotegidos e, até, que em nenhum dos seus parágrafos surgia a palavra “desempregado”.

O tempo passou até que o manuscrito do Rei foi finalmente publicado num tijolo de milhentas páginas. Vendeu cento e cinquenta exemplares nos primeiros três dias, mas devido aos seu tamanho apenas três ou quatro intelectuais o leram e, sublinharam, “nunca até ao fim”, alguns “até meio”, tal era a complexidade do ensaio. E acrescentavam: faltam coisas, as questões essenciais não estão lá, ignora-se o conflito israelo-palestiniano, como de pose falar de política externa sem ter em consideração as importações japonesas?

- O que falta, virá – defendia-se o Rei, preparando já o segundo tomo.

E ainda assim os seus apoiantes, desapontados com a densa literatura, levantaram o acampamento. Os jornais recusaram-se a publicar partes do livro e lamentaram a sua complexidade, impossível de resumir num editorial. O Presidente da República disse que tinha lido o primeiro tomo sim senhor, mas só uma parte, já que se encontrava demasiado ocupado a reflectir sobre as verdadeiras questões do país; os Monárquicos afirmaram que o livro ia contra a Monarquia, o Governo acusou o livro do Rei de estar contra o Governo nalgumas coisas e noutras a favor da oposição, e a oposição acusou o livro do Rei de estar a favor do Governo nalgumas coisas e noutras a favor do capital; e relembraram que a palavra “desemprego” surgia apenas 7 vezes em toda a extensão do texto.  

O Rei terminou finalmente o segundo tomo e com ele a sua obra, uma coisa complexa e poderosa, que abria caminho a um novo país e a uma nova política, e que completava tão maravilhosamente o primeiro tomo que os historiadores do futuro tratá-lo-iam como “a abandonada maravilha do século político”. Mas ninguém o leu. A população viu Agosto acabar e, chegado Setembro, regressou à sua vida atarefada. O Presidente da República restaurou a confiança das pessoas na República, o Governo desmarcou-se totalmente das ideias do rei e a oposição acusou o Governo de não se desmarcar o suficiente das ideias do rei.

E o rapaz louro morreu de velhice.

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