Mais
tarde chamariam a atenção para o facto de ser 4 de Agosto. A praia algarvia
estava cheia de gente. Cheirava a protector solar e a gelado derretido. No meio
das ondas surgiu uma cabeça e, agarrada a ela, o elegante corpo de um jovem
rapaz. Louro, de olhos claros, orgulhoso porte, todo coberto de algas e areia.
As pessoas estranharam vê-o sair do mar sem no entanto o terem visto entrar
primeiro; ainda por cima vestido. De onde vinha?
-
Isto é Portugal? – perguntou o rapaz. Um turista disse que yes.
- Sou
o Rei desta nação – proclamou, de braços estendidos como Cristo– e vim
salvar-vos.
Os
turistas começaram a tirar fotografias e a dizer very good mas os portugueses
decidiram chamar a polícia. Assim que chegou, a GNR pediu ao rapaz que se
identificasse.
-
Não preciso – explicou ele em voz baixa, e a praia calou-se para o escutar– sou
o Rei.
Um
GNR agarrou-o pelo braço e levou-o para a esquadra. Já o esperavam as
televisões, cansadas de entrevistar famílias por causa do calor e à espera de
um escândalo de Verão. O tipo que se dizia D. Sebastião abriu o jornal das oito,
e acompanhando-o os relatos de populares que, à hora da emersão do Rei, viram o
sol brilhar mais belo e as nuvens afastarem-se: um augúrio com bom aspecto.
Uma
equipa de historiadores e psicólogos foi chamada à esquadra para testar a
veracidade da personagem. O rapaz louro sabia tudo sobre o Rei que afirmava ser,
respondendo às perguntas mais complexas sobre o seu reinado e iluminando até
alguns mistérios; e foi ele, sem qualquer sugestão por parte dos
investigadores, a citar com enorme pormenor certos dados geográficos sobre
Alcácer-Quibir. Consumiu-se café, a
madrugada voou; e os investigadores, já rendidos, resumiram ao rapaz a história
nacional dos últimos séculos e terminaram com uma negra panorâmica sobre a
actualidade. O Rei escutou os historiadores até ao fim, quieto e de queixo
paralelo ao chão; e depois disse:
-
Cheguei, nada há a temer.
Nascia
o sol; e sobre a cabeça loura do rapaz escorreu a luz amarela da manhã.
Avisado
do potencial de uma revolução monárquica, o Presidente da República mandou
reunir os partidos políticos e o Governo para um encontro de emergência. Todos
regressaram das suas férias em trote rápido. Disse o Presidente:
- O
Rei garante a solução para todos os problemas do país, e assim prometia a sua
profecia. Cá estaremos para ver como tudo corre; mas poderemos deixar que a
democracia republicana, tão dolorosamente conquistada e mantida, corra o risco
de ser substituída por um indivíduo de misteriosas intenções?
O
Governo e os partidos concordaram. No dia seguinte possuíam já curtas declarações
sobre o rapaz louro, transmitidas à saída ou à entrada de uma reunião qualquer,
com as quais pretendiam transmitir despreocupação. O Governo declarou que a precipitação
era inimiga da verdade e a esquerda foi mais longe e afirmou que qualquer corpo
abandonado em África há tantos séculos cabia apenas na morgue e não no
Parlamento. Ainda assim, as promessas do Rei continuavam a sair em catadupa da
pequena cela da GNR:
-
Nada temam, eu sei como transformar o nosso país num Império.
E,
dizia-se, o rapaz escrevia já as suas ideias em folhas de papel gentilmente
cedidas por um polícia que tinha pena dele (e quem sabe alguma esperança).
Alguns comentadores tiveram acesso aos rascunhos e, entusiasmados, profetizavam
novos ventos políticos. O Partido Monárquico acampou à porta da esquadra algarvia
a fim de apoiar o seu Rei, traçar árvores genealógicas e defender a democracia;
e o Presidente da República, tentando a todo o custo acalmar as massas que se
inflamavam, repetia que a República não estava em apuros.
O
Governo, por sua vez, argumentava que a linha de políticas usadas até ali era
contrariada pelas ideias do Rei, e que por isso elas não podiam ser aceites sem
mais nem menos; e a oposição, peremptória, lembrou que as ideias do Rei iam
contra tudo o que tinham defendido desde a última legislatura. Mas a população
acarinhava o rapaz louro que dizia, entregando mais umas páginas manuscritas ao
seu polícia:
- Não
confiem em mim; confiem nas minhas ideias.
Entretanto
aspectos da vida pessoal do Rei invadiram a imprensa; por que mecanismos lá
chegaram nunca se soube. Rumores de que o rapaz louro era homossexual, e por
isso anti-cristão, chocaram muitos dos seus apoiantes. O Rei, no entanto,
garantia:
- Em
nada tal invalida a minha capacidade para liderar este país.
E
como prova apresentava as suas páginas dolorosamente manuscritas, que se
somavam de dia para dia num enorme manuscrito. Os comentadores que as liam em
tempo real, suados e barbudos, afirmavam-se surpreendidos com a clareza do Rei
mas começavam a duvidar que muitas das suas ideias endereçassem as verdadeiras
questões. Outros comentadores, discordantes quer do Rei quer dos comentadores
que discordavam primeiramente com ele, duvidavam que as verdadeiras questões
estivessem sequer a ser consideradas.
Entretanto
o Governo, confrontado com as ideias do Rei, lembrou que esses “rascunhos” não
podiam substituir o programa de governo votado pelos portugueses, e a oposição defendeu
que os escritos do rapaz louro não protegiam os desprotegidos e, até, que em
nenhum dos seus parágrafos surgia a palavra “desempregado”.
O
tempo passou até que o manuscrito do Rei foi finalmente publicado num tijolo de
milhentas páginas. Vendeu cento e cinquenta exemplares nos primeiros três dias,
mas devido aos seu tamanho apenas três ou quatro intelectuais o leram e,
sublinharam, “nunca até ao fim”, alguns “até meio”, tal era a complexidade do
ensaio. E acrescentavam: faltam coisas, as questões essenciais não estão lá,
ignora-se o conflito israelo-palestiniano, como de pose falar de política
externa sem ter em consideração as importações japonesas?
- O
que falta, virá – defendia-se o Rei, preparando já o segundo tomo.
E
ainda assim os seus apoiantes, desapontados com a densa literatura, levantaram
o acampamento. Os jornais recusaram-se a publicar partes do livro e lamentaram
a sua complexidade, impossível de resumir num editorial. O Presidente da
República disse que tinha lido o primeiro tomo sim senhor, mas só uma parte, já
que se encontrava demasiado ocupado a reflectir sobre as verdadeiras questões
do país; os Monárquicos afirmaram que o livro ia contra a Monarquia, o Governo
acusou o livro do Rei de estar contra o Governo nalgumas coisas e noutras a
favor da oposição, e a oposição acusou o livro do Rei de estar a favor do
Governo nalgumas coisas e noutras a favor do capital; e relembraram que a
palavra “desemprego” surgia apenas 7 vezes em toda a extensão do texto.
O
Rei terminou finalmente o segundo tomo e com ele a sua obra, uma coisa complexa
e poderosa, que abria caminho a um novo país e a uma nova política, e que
completava tão maravilhosamente o primeiro tomo que os historiadores do futuro
tratá-lo-iam como “a abandonada maravilha do século político”. Mas ninguém o
leu. A população viu Agosto acabar e, chegado Setembro, regressou à sua vida
atarefada. O Presidente da República restaurou a confiança das pessoas na
República, o Governo desmarcou-se totalmente das ideias do rei e a oposição
acusou o Governo de não se desmarcar o suficiente das ideias do rei.
E o
rapaz louro morreu de velhice.
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