sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Um gato a morrer



Eram já duas da manhã quando o ouviu lá fora: um silvo ameaçador interrompeu a noite e fê-lo levantar a cabeça da almofada e pousar por momentos o livro. Com brusquidão, o beco caiu no silêncio habitual e ele voltou a pôr o livro sob o candeeiro. E logo depois: um gemido de criança, longo, ondulado, agudo, como uma alma a comunicar com os vivos.


Ele levantou-se e pôs-se à janela para escutar melhor; e lá estava, segunda vez, ligeiramente mais fraco. Poderia aquele som horrível, tão capaz de despertar um calafrio, ser o resultado de um animalzinho de rua? Imaginou uma criança em sofrimento, assustada; mas o seu espírito de racionalidade conduziu-o à opção mais proporcional. Um gato tinha perdido uma briga. Era isso que acontecia nos becos escuros às duas da manhã. O mundo continuava a girar.

E no entanto projectaram-se logo decadentes imagens na sua imaginação: um ser vivo peludo, felino, entristecido, de bigodes tortos, orelha carcomida, e uma profunda e avermelhada ferida no pelo, cheia de carnes infectadas, e moscas. Estava estendido num canto, protegendo-se dos cães e dos insectos, lambendo com a minúscula e rosada língua uma mancha nojenta de sangue e carne da pata. E miava em desespero, chamando um amigo. O beco respondia-lhe com indiferença, pois ninguém o viria acudir.

Pôs-se de chinelos e camisola e foi até à janela da cozinha ver melhor. Nenhuma pista do paradeiro do desgraçado; apenas aquele miar desfalecido, agora mais frágil, como se lhe esgotasse o ar.

- Que se passa? – acordara o pai; aí vinha ele, acabrunhado.

- É um gato, parece-me que está magoado mas não sei.

Escutaram, de orelhas erguidas, o pai céptico a pentear o bigode com movimentos descendentes. E aí estava ele: outro miado.

- É mesmo.

O pai virou costas.

- Alguém devia ir lá abaixo.

- Deixa-me dormir.

- Eu vou lá abaixo.

- Então? – era a mãe, enrolada num roupão.

- É um gato – disse o pai.

- Vou calçar as botas.

- Onde vais?

- Lá abaixo.

- Fazer?

- Não ouves?

- É um gato.

- Parece uma criança – disse a mãe, escutando atentamente.

- Não é uma criança – disse o pai - É um gato.

- Não quero passar por lá amanhã de manhã e encontrá-lo morto, coberto de moscas.

- E vais fazer o quê?

- Vou lá abaixo ver onde está.

- Parece mesmo uma criança – dizia a mãe, de braços cruzados, cabeça fora pela janela e olhos fechados para escutar melhor.

- Não, vais fazer o quê, especificamente?

Isso interrompeu-o. O pai quedava-se, descalço e gigante, sob a ombreira da porta da cozinha, olhando-o apesar do sono.

- Quando encontrares o gato e deres com ele, como fazes?

- Não sei.

- Ele pode atacar-te, sentir-se ameaçado.

- Os animais às vezes fazem isso. E que frio que está, que noite gelada! – disse a mãe.

- Sendo assim levo-lhe uma manta. Tapo-o. Trago-o para cá.

- Desculpa? – perguntou a mãe, metendo a cabeça para dentro.

- Ele cabe no hall de entrada.

- Não.

- Na varanda.

- Faz tanto frio como na rua.

- Eu fico ao pé dele, não o deixo miar.

O pai levantou as palmas das mãos abertas e a cozinha parou.

- Como é óbvio não vais trazer um gato ferido para dentro de casa. Há doenças de que desconhecemos, e pulgas. Não vais dormir com ele na rua, pois não? Nem chamar o 112. Então? Explica-me passo a passo o que vais fazer quando chegares lá abaixo e deres com um gato a morrer.

Não havia resposta, apenas vontade.

- Nem há certezas nenhumas. Amanhã passas por lá, com luz, vês se está mesmo um gato por ali escondido. Chama-se alguém – disse a mãe.

- Quem?

- Isso pergunto-te eu.

- Nessa altura já está morto.

- Sabes lá se está sequer a morrer.

- É mesmo por isso, por não saber.

- Vou fechar isto que ainda nos constipamos – disse a mãe.

- Gatos destes morrem a toda a hora – disse o pai.

Voltaram para os quartos; mas ele agarrou na almofada e no lençol e mudou-se para o lado oposto da casa para que o miar não lhe roubasse o sono. De manhã foi carro a carro, espreitando por detrás dos pneus, por entre os canteiros de plantas horrorosas e secas: e lá deu com ele, um corpo todo frio e amaçado de um gato cinzento com riscas brancas, uma criaturinha pequena e toda encolhida como uma criança com frio. A ferida era tal qual imaginara.

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