Eram já duas da manhã quando o ouviu lá fora: um silvo
ameaçador interrompeu a noite e fê-lo levantar a cabeça da almofada e pousar
por momentos o livro. Com brusquidão, o beco caiu no silêncio habitual e ele
voltou a pôr o livro sob o candeeiro. E logo depois: um gemido de criança,
longo, ondulado, agudo, como uma alma a comunicar com os vivos.
Ele levantou-se e pôs-se à janela para escutar melhor; e lá
estava, segunda vez, ligeiramente mais fraco. Poderia aquele som horrível, tão
capaz de despertar um calafrio, ser o resultado de um animalzinho de rua?
Imaginou uma criança em sofrimento, assustada; mas o seu espírito de
racionalidade conduziu-o à opção mais proporcional. Um gato tinha perdido uma
briga. Era isso que acontecia nos becos escuros às duas da manhã. O mundo
continuava a girar.
E no entanto projectaram-se logo decadentes imagens na sua
imaginação: um ser vivo peludo, felino, entristecido, de bigodes tortos, orelha
carcomida, e uma profunda e avermelhada ferida no pelo, cheia de carnes
infectadas, e moscas. Estava estendido num canto, protegendo-se dos cães e dos
insectos, lambendo com a minúscula e rosada língua uma mancha nojenta de sangue
e carne da pata. E miava em desespero, chamando um amigo. O beco respondia-lhe
com indiferença, pois ninguém o viria acudir.
Pôs-se de chinelos e camisola e foi até à janela da cozinha
ver melhor. Nenhuma pista do paradeiro do desgraçado; apenas aquele miar
desfalecido, agora mais frágil, como se lhe esgotasse o ar.
- Que se passa? – acordara o pai; aí vinha ele, acabrunhado.
- É um gato, parece-me que está magoado mas não sei.
Escutaram, de orelhas erguidas, o pai céptico a pentear o
bigode com movimentos descendentes. E aí estava ele: outro miado.
- É mesmo.
O pai virou costas.
- Alguém devia ir lá abaixo.
- Deixa-me dormir.
- Eu vou lá abaixo.
- Então? – era a mãe, enrolada num roupão.
- É um gato – disse o pai.
- Vou calçar as botas.
- Onde vais?
- Lá abaixo.
- Fazer?
- Não ouves?
- É um gato.
- Parece uma criança – disse a mãe, escutando atentamente.
- Não é uma criança – disse o pai - É um gato.
- Não quero passar por lá amanhã de manhã e encontrá-lo
morto, coberto de moscas.
- E vais fazer o quê?
- Vou lá abaixo ver onde está.
- Parece mesmo uma criança – dizia a mãe, de braços
cruzados, cabeça fora pela janela e olhos fechados para escutar melhor.
- Não, vais fazer o quê, especificamente?
Isso interrompeu-o. O pai quedava-se, descalço e gigante,
sob a ombreira da porta da cozinha, olhando-o apesar do sono.
- Quando encontrares o gato e deres com ele, como fazes?
- Não sei.
- Ele pode atacar-te, sentir-se ameaçado.
- Os animais às vezes fazem isso. E que frio que está, que
noite gelada! – disse a mãe.
- Sendo assim levo-lhe uma manta. Tapo-o. Trago-o para cá.
- Desculpa? – perguntou a mãe, metendo a cabeça para dentro.
- Ele cabe no hall de entrada.
- Não.
- Na varanda.
- Faz tanto frio como na rua.
- Eu fico ao pé dele, não o deixo miar.
O pai levantou as palmas das mãos abertas e a cozinha parou.
- Como é óbvio não vais trazer um gato ferido para dentro de
casa. Há doenças de que desconhecemos, e pulgas. Não vais dormir com ele na
rua, pois não? Nem chamar o 112. Então? Explica-me passo a passo o que vais
fazer quando chegares lá abaixo e deres com um gato a morrer.
Não havia resposta, apenas vontade.
- Nem há certezas nenhumas. Amanhã passas por lá, com luz,
vês se está mesmo um gato por ali escondido. Chama-se alguém – disse a mãe.
- Quem?
- Isso pergunto-te eu.
- Nessa altura já está morto.
- Sabes lá se está sequer a morrer.
- É mesmo por isso, por não saber.
- Vou fechar isto que ainda nos constipamos – disse a mãe.
- Gatos destes morrem a toda a hora – disse o pai.
Voltaram para os quartos; mas ele agarrou na almofada e no
lençol e mudou-se para o lado oposto da casa para que o miar não lhe roubasse o
sono. De manhã foi carro a carro, espreitando por detrás dos pneus, por entre
os canteiros de plantas horrorosas e secas: e lá deu com ele, um corpo todo
frio e amaçado de um gato cinzento com riscas brancas, uma criaturinha pequena
e toda encolhida como uma criança com frio. A ferida era tal qual imaginara.
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