Passa-se algo de estranho no mundo das músicas pirosas.
Divido-as em dois grupos:
- Grupo A: músicas feitas em Portugal.
- Grupo B: músicas feitas no estrangeiro.
O Grupo A é representado por criadores como Barreiros,
Carreira (os três; ou já serão quatro?), Sardet. O Grupo B, por sua vez, é caracterizado por
lucrar com aquela que eu apelido de “Defesa I Love You”: qualquer parvoíce
lamechas soa bem quando dita em inglês.
Consequências: as Grandes Bandas de
hoje são Carreiras em potência, são Barreiros traduzidos, são Sardets tão bons
como o original (ou seja, ostensivamente vulgares). Vou agarrar em dois
casos paradigmáticos, sem querer ofender ninguém (muito menos designers):
Carreira Pai e Coldplay.
Leiamos com profunda atenção as letras de uma música de cada
artista. Comecemos pelo actual sucesso “Paradise”, dos Colplay, que em
português significa “Paraíso”. Viram? Ainda nem chegámos ao refrão da música e
já se aproxima perigosamente do nome de um bar gay.
When she was just a girl
She expected the world
But it flew away from her reach so
She ran away in her sleep
And dreamed of
Para-para-paradise, para-para-paradise, para-para-paradise
Every time she closed her eyes
Não precisamos de mais versos (também não é preciso
transformar isto numa experiência dolorosa para todos). Traduzamos, então, este
belíssimo poema para a nossa língua, i.e., vamos lá ver se a beleza intrínseca
da coisa, qual Divina Comédia traduzida pelo Vasco Graça Moura, sobrevive à
tradução e transpira sem travões:
Quando ela era apenas uma rapariga
Estava à espera do mundo
Mas ele escapou-se do seu alcance e portanto
Ela fugiu durante o sono
E sonhou com
Para-para-paraíso, para-para-paraíso, para-para-paraíso
Sempre que fechava os olhos
O que temos aqui? Uma miúda a sonhar. Com quê? Com o nome de um bar gay. E é só. Podia dar mais
exemplos: ao longo da letra falam-nos de “lágrimas que se transformam em
cascatas” ou “a vida continua e torna-se pesada”; e há até dois versos
brilhantes nos quais o vocalista canta:
La-la-la-la-la-la-la
La-la-la-la-la-la-la-la-la-la
Aquela coisa mágica que faz os fãs da banda chorar a torto e
a direito deve ter desaparecido na tradução. Toda a gente sabe que o português
apresenta enormes dificuldades de expressão.
Agarremos, então, num exemplo oposto. Aqui está um dos
poemas mais significativos de Carreira pai, o refrão de “Os Sonhos de Menino”:
E hoje a cantar
Em cada canção trago esse lugar no meu coração
Criança que fui e homem que sou, e nada mudou
E hoje a cantar não posso esquecer aquele lugar que me viu
nascer
Tão bom recordar aquele cantinho
E os sonhos de menino
“Eh, que piroseira”, vociferam já os fãs de Coldplay,
enquanto preparam um furioso e-mail dirigido ao autor deste blog. Mas calma.
Sim, é Tony Carreira: o nome do homem tem um “y” e ele é a estrela do pic-nic
gigante do Continente. Mas que nos diz isso sobre o poeta? Vamos lá traduzir
“Os Sonhos de Menino” para o inglês dos Coldplay:
And today as I sing
In every song
I carry that place in my heart
The child I was, the man I am, nothing has changed
And today as I sing I cannot forget
That place that saw me being born
It’s so good to remembre that little corner
And those little boy’s dreams
Há aqui qualquer coisa, há que admiti-lo. Eu diria até que a
banalidade inicial foi transformada, pela língua de Shakespeare, numa profunda
reflexão sobre o envelhecimento, sobre a Arte, e sobre aquilo que dá significado
à vida. Mas o principal não é aquilo que um Tony Inglês poderia ou não
transmitir aos seus fãs; é perceber que se “Those Little Boy’s Dreams” fosse
cantado e tocado pelos Coldplay ninguém daria pela diferença.
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