Cheguei
a casa e alguém me vendou os olhos.
-
Que vem a ser isto? – perguntei. A última vez que me haviam vendado os olhos tinha
sido para me surpreender com uma festa de anos. Havia palhaços, malabaristas,
bolo de chocolate com morangos e muito refrigerante. Perguntei quem tinha tido
a excelente ideia de pôr morangos no bolo, estragando-o. Houve silêncio, e um
daqueles maricas que surgem agora e que gostam de gastronomia explicou-me que
era normal equilibrar sabores, cores e texturas contrastantes para despertar o
palato. Perguntei-lhe por que razão não despertava o palato na casa dele em vez
de me estragar a festa de anos, e ele chamou-me de “apreciador de comida
congelada”. Para lhe pedir desculpas convidei-o para jantar em minha casa,
cozinhei-lhe uns gnocchis salteados com alho francês caramelizado e pedaços de
cocó de pombo.
-
Que vem a ser isto? – perguntei, vendado.
- É
surpresa – respondeu-me uma voz.
-
Mau.
Conduziram-me
a um espaço que me pareceu ser a sala de estar e identifiquei imediatamente o
aroma a loja de mobílias. Arrancaram-me a venda. À minha frente estava uma
câmara de televisão, uns tipos vestidos de publicidade a uma loja de decoração,
uma apresentadora de televisão e uma senhora com aqueles cortes de cabelo da
moda, que custam cinquenta euros e que as senhoras de meia idade arranjam para
se sentirem mais novas e modernas.
-
Bem vindo ao “Querido, mudei a casa”! – disse-me a apresentadora toda muito
contente. Olhei em volta. Alguém tinha transformado a minha confortável sala de
estar num décor de uma novela da TVI, só que sem a escadaria central e a
iluminação de estúdio.
-
Inspirei-me em teorias orientais – justificou-se a dona do penteado, que (óbvio)
era decoradora – Feng Shui. É uma técnica que eu aprendi. Sou decoradora.
-
Ora faça lá uma expressão feliz, que a gente depois põe uma música com violinos
por cima – indicou-me a apresentadora.
-
Como, assim? – levantei o dedo do meio na direcção da câmara e alguém disse
“Corta!”.
-
Ok, vamos repetir a entrada – era o realizador, um homem gordo que achava boa
ideia não limpar o suor da testa.
-
Assim – e a apresentadora abriu as mãos, esbugalhou os olhos, pôs-se toda
alegre.
-
Repare no equilíbrio entre os tons dos cortinados e das cadeiras – dizia-me a
decoradora – aprendi isso na escola de decoradores. São técnicas que se
aprendem.
- Os
meus livros?
- Escolhemos
os que têm as lombadas a condizer com o tapete. Os outros estavam a
impossibilitar a respiração das cores na parede.
- E
o sofá?
-
Foi fora – respondeu um dos trabalhadores, mascando pastilha. Conseguia
imaginá-lo a meter o meu sofá dentro de um contentor e a rir-se para a câmara,
como quem diz “Pronto, salvámos a fruição estética deste homem de uma vez por
todas”.
- O
seu sofá estava a inibir a exploração do espaço – disse a decoradora, agitando
as mãos e os braços como quem, sei lá, frui de qualquer coisa, ou como quem se
está a afogar – Agora tem cadeiras com a tonalidade correcta.
- O
meu rabo não concorda.
-
Olhe, olhe – dizia a apresentadora, aproximando-se delas – são bonitas.
-
Cuidado, querida – interrompia a decoradora – não lhes mexas que desequilibras
o Feng Shui.
- As
paredes foram pintadas, também – disse um outro trabalhador, apontando para a
cor de salmão cru; imaginava-o de pincel na mão, a atacar os colegas à
gargalhada, dando-lhes pinceladas no nariz, para mostrar que no “Querido” nem
tudo é trabalho, também há espaço para a brincadeira.
Depois
entrou aquele tipo musculado cujo físico apela ao público feminino mas que com
certeza está lá pela personalidade, que consiste em ser um pacóvio simpático.
-
Olé, olé, então como vai isso amigo Renato?
-
Tira as mãozinhas de cima de mim.
-
Tás muito emotivo, não é? Já reparaste nos cactos que te pusemos à janela?
-
Assim não a posso abrir.
-
Não importa – explicou a decoradora – as energias passam na mesma. Além disso,
eu sou decoradora. Cactos sim. Janelas abertas... – e fez que não com a
cabecinha.
-
Vamos repetir a entrada? – propôs a apresentadora.
- Vão
é pôr a sala como estava.
Veio
um tipo da produção explicar-me que a mobília era mesmo para mim, que podia
ficar com a porcaria da sala horrorosa e disfuncional e que me tinham apagado
qualquer traço de personalidade na divisão sem o mínimo custo. Era tudo grátis.
- O
Sr. Renato tem é de entrar, tirar a venda e fazer assim, ai meu deus, tá tão
lindo, nunca pensei, nunca pensei, que coisa, isto, aquilo, tá?
- Tá
– concordei. Fiz-lhes a vontade, depois mandei-os embora. Consegui recuperar o
sofá do contentor e vendi os móveis no CustoJusto. Afinal o mundo da
publicidade até traz as suas vantagens.
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