sábado, 28 de julho de 2012

Fui vítima de um programa de decoração


Cheguei a casa e alguém me vendou os olhos.

- Que vem a ser isto? – perguntei. A última vez que me haviam vendado os olhos tinha sido para me surpreender com uma festa de anos. Havia palhaços, malabaristas, bolo de chocolate com morangos e muito refrigerante. Perguntei quem tinha tido a excelente ideia de pôr morangos no bolo, estragando-o. Houve silêncio, e um daqueles maricas que surgem agora e que gostam de gastronomia explicou-me que era normal equilibrar sabores, cores e texturas contrastantes para despertar o palato. Perguntei-lhe por que razão não despertava o palato na casa dele em vez de me estragar a festa de anos, e ele chamou-me de “apreciador de comida congelada”. Para lhe pedir desculpas convidei-o para jantar em minha casa, cozinhei-lhe uns gnocchis salteados com alho francês caramelizado e pedaços de cocó de pombo.


- Que vem a ser isto? – perguntei, vendado.

- É surpresa – respondeu-me uma voz.

- Mau.

Conduziram-me a um espaço que me pareceu ser a sala de estar e identifiquei imediatamente o aroma a loja de mobílias. Arrancaram-me a venda. À minha frente estava uma câmara de televisão, uns tipos vestidos de publicidade a uma loja de decoração, uma apresentadora de televisão e uma senhora com aqueles cortes de cabelo da moda, que custam cinquenta euros e que as senhoras de meia idade arranjam para se sentirem mais novas e modernas.

- Bem vindo ao “Querido, mudei a casa”! – disse-me a apresentadora toda muito contente. Olhei em volta. Alguém tinha transformado a minha confortável sala de estar num décor de uma novela da TVI, só que sem a escadaria central e a iluminação de estúdio.

- Inspirei-me em teorias orientais – justificou-se a dona do penteado, que (óbvio) era decoradora – Feng Shui. É uma técnica que eu aprendi. Sou decoradora.

- Ora faça lá uma expressão feliz, que a gente depois põe uma música com violinos por cima – indicou-me a apresentadora.

- Como, assim? – levantei o dedo do meio na direcção da câmara e alguém disse “Corta!”.

- Ok, vamos repetir a entrada – era o realizador, um homem gordo que achava boa ideia não limpar o suor da testa.

- Assim – e a apresentadora abriu as mãos, esbugalhou os olhos, pôs-se toda alegre.

- Repare no equilíbrio entre os tons dos cortinados e das cadeiras – dizia-me a decoradora – aprendi isso na escola de decoradores. São técnicas que se aprendem.  

- Os meus livros?

- Escolhemos os que têm as lombadas a condizer com o tapete. Os outros estavam a impossibilitar a respiração das cores na parede.

- E o sofá?

- Foi fora – respondeu um dos trabalhadores, mascando pastilha. Conseguia imaginá-lo a meter o meu sofá dentro de um contentor e a rir-se para a câmara, como quem diz “Pronto, salvámos a fruição estética deste homem de uma vez por todas”.

- O seu sofá estava a inibir a exploração do espaço – disse a decoradora, agitando as mãos e os braços como quem, sei lá, frui de qualquer coisa, ou como quem se está a afogar – Agora tem cadeiras com a tonalidade correcta.

- O meu rabo não concorda.

- Olhe, olhe – dizia a apresentadora, aproximando-se delas – são bonitas.

- Cuidado, querida – interrompia a decoradora – não lhes mexas que desequilibras o Feng Shui.

- As paredes foram pintadas, também – disse um outro trabalhador, apontando para a cor de salmão cru; imaginava-o de pincel na mão, a atacar os colegas à gargalhada, dando-lhes pinceladas no nariz, para mostrar que no “Querido” nem tudo é trabalho, também há espaço para a brincadeira.

Depois entrou aquele tipo musculado cujo físico apela ao público feminino mas que com certeza está lá pela personalidade, que consiste em ser um pacóvio simpático.

- Olé, olé, então como vai isso amigo Renato?

- Tira as mãozinhas de cima de mim.

- Tás muito emotivo, não é? Já reparaste nos cactos que te pusemos à janela?

- Assim não a posso abrir.

- Não importa – explicou a decoradora – as energias passam na mesma. Além disso, eu sou decoradora. Cactos sim. Janelas abertas... – e fez que não com a cabecinha.

- Vamos repetir a entrada? – propôs a apresentadora.

- Vão é pôr a sala como estava.

Veio um tipo da produção explicar-me que a mobília era mesmo para mim, que podia ficar com a porcaria da sala horrorosa e disfuncional e que me tinham apagado qualquer traço de personalidade na divisão sem o mínimo custo. Era tudo grátis.

- O Sr. Renato tem é de entrar, tirar a venda e fazer assim, ai meu deus, tá tão lindo, nunca pensei, nunca pensei, que coisa, isto, aquilo, tá?

- Tá – concordei. Fiz-lhes a vontade, depois mandei-os embora. Consegui recuperar o sofá do contentor e vendi os móveis no CustoJusto. Afinal o mundo da publicidade até traz as suas vantagens.   

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