sábado, 22 de maio de 2010

O meu dia #2

Hoje esteve calor, e talvez por isso a minha cara tenha derretido nas bordas e caído no meio do chão. Não me chegava ter-me caído a cara, o que já de si é inconveniente, mas ainda por cima foi a meio de uma passadeira. Antes que pudesse evitá-lo, tropecei sobre ela, chutei-a para a frente e vi-a ser atropelada por um enorme camião. Insultei o camionista, mostrei-lhe um dedo. Ele viu, o camião parou, e o camionista saiu segurando um pé de cabra e gritando que me ia arrancar a cara à porrada. Disse-lhe que sim senhor, belo timing, e o camionista viu a minha cara a meio da estrada, com uma marca de pneu de camião entre o nariz e uma orelha, e soltou uma gargalhada. Uma senhora de uma mercearia ali ao pé, que se aproximara da porta do estabelecimento na esperança de ver pancadaria, riu-se também. Eu não. Perguntei-lhe se não ia pedir desculpas por me ter atropelado a cara, e o camionista mandou-me ir a um local e arrancou, ainda às gargalhadas.

Apanhei a cara, sacudi-a, olhei para ela. Ali estava ela, a minha cara, a identidade que conhecia de a ver no espelho todas as manhãs. Estava cheio de borbulhas, agora podia vê-lo, e para fazer tempo enquanto esperava pelo autocarro fui rebentando-as como quem usa aquele plástico das bolinhas onde se embrulham os televisores para passar o tempo. O autocarro nunca mais passava, por isso fiz sinal a um táxi.

- Que lhe aconteceu, homem? – pergunto-me o taxista, surpreendido por ver um tipo cheio de músculos e vasos à vista.

- Caiu-me a cara.

- Porra.

- A quem o diz.

- Isso não levanta uma série de perguntas e questões filosóficas sobre a identidade do indivíduo?

- Claro que sim, mas isso não é já, é mais tarde na história.

- Ui, peço desculpa.

- Não tem problema.

- Sinceramente não sabia que poderia estragar-lhe a história.

- Depois quando a escrever no meu blog eu apago esta parte.

- Vou aparecer num blog? – entusiasmou-se o taxista.

- Agora já não, porque vou apagar a parte em que revelou metade da moral da história logo no início. Se calhar se aprendesse a manter a boca fechada aparecia mais vezes citado em histórias e em blogues.

- Pode ao menos dizer que entrou num táxi e que o taxista se chamava António e que era muito atraente.

- Pronto, pronto, eu faço-lhe isso.

- É para mostrar aos meus filhos, eles vão adorar ver o pai num blog!

- Arranque lá com isso. Rua Cinco, por favor.

- Não se esqueça de dizer que estou mais magro. Para impressionar as senhoras.

O taxista António, que era gordo e borbulhento, arrancou finalmente, e só parou junto à Delegação Nacional para as Crises de Identidade. Sentei-me na sala de espera com a minha senha, vendo todo o tipo de pessoas com crises de identidade. Havia outras duas pessoas sem cara, um anão altíssimo com pelo menos metro e oitenta, e uma mulher loura e de arredondados contornos. Havia alguém que não sabia bem quem era, duas pessoas sem BI e outra que achava que era alguém que não sabia quem era. Senti-me mal, e apresentei-me. Todos me olharam com ar de quem tinha feito uma coisa extremamente desagradável.

- Acha bonito perguntar o nosso nome? Eu nem sou quem sou! Não entende o que significa estar numa crise de identidade? - perguntou uma senhora, visivelmente nervosa, e um senhor que deveria ser seu marido afagou-lhe o cabelo. Entretanto a senhora perguntou se era casada com o senhor, e o senhor disse que não sabia, mas que era possível, e que mesmo que se não fossem não quereria ela ir ali a um cantinho ver se chovia? E foram, trancando-se na casa de banho a ver se se descobriam.

Chamaram o meu nome. Cheguei ao gabinete de uma senhora daquelas frustradas, que trabalha nos arquivos bafientos em alguma sub-cave.

- Nome? – perguntou a senhora com uma voz monoc

- Que raio de pergunta é essa, para ser feita num centro de crises de identidade?

- O senhor quer reescrever o processo governamental para a obtenção de informações introdutórias administrativas?

- Parece entusiasmante, mas não.

- O senhor que ensinar-me a fazer o meu trabalho?

- Não, claro que não.

- Então pode dizer-me o seu nome?

Respondi-lhe educadamente. Ela tinha um enorme pisa papéis ao seu lado. Com gente desta não se brinca.

- Qual é o seu problema?

- Cai-me a cara. Não se nota?

- Ligeiramente. Pode mostrar-me um documento de identificação?

Mostrei-lhe.

- Ups.

- Então?

- Este documento está desactualizado.

- Está?

- Quem é este na fotografia?

- Sou eu.

- Mas você não se parece nada com o tipo na fotografia.

- Mas ou eu, garanto-lhe. Só estou assim porque me caiu a cara.

- Este documento de identidade não é válido.

- Então e agora?

- Agora significa que não tem outro documento de identificação. OU tem?

- Dá o cartão do MiniPreço?

- Não.

- E o da escola?

- Também não.

- Então nada feito.

- Não tem outro documento.

- Não.

- Está a dizer-me que não tem qualquer documento válido que comprove a sua identidade?

- Exactamente. Isso é mau?

- Oh, não, não se preocupe. Vamos ajudá-lo.

A mulher pegou no telefone que tinha ao seu lado.

- Estou, Marília? Liga-me ao departamento das Ilegalidades, por favor.

- Ilegalidades? – disse eu.

- Não sabe que é ilegal não ter um BI?

- Ouça, eu só preciso de repor a cara no seu devido lugar. Só isso.

- Tem até amanhã para se apresentar aqui neste gabinete com uma cara que corresponda à deste BI.

- Muito obrigado pela opotunidade – disse eu, agradecido, e caminhei corredor fora procurando alguém que me pudesse ajudar. Levava a minha cara no bolso, e ia mostrando-a às pessoas para indicar o meu problema. Conduziram-me até uma sala com materiais cirúrgicos e mandaram-me esperar. Minutos depois entrou um médico.

- Ora bom dia. Temos aqui um Anónimo, certo? Você está sem BI.

Expliquei-lhe tudo.

- Ah, vejo bem. Não se preocupe, vamos pôr-lhe a cara no lugar.

Respirei fundo, engoli um comprimido e senti-me anestesiado. Deitaram-me na poltrona e adormeci pacificamente. Acordei horas depois.

- EU peço imensa desculpa – disse o médico, assim que me viu abrir os olhos.

- Como correu a operação?

- Tecnicamente, foi soberba. Nunca fiz um implante facial com tanta facilidade.

- Que bom!

- Só que a sua cara estava inutilizável, cheia de marcas de pneus, e por isso utilizámos uma cara que tínhamos a mais nos Perdidos e Achados.

- Oh meu Deus.

- Era a última, não tínhamos mais. Aqui tem o seu BI actualizado.

Li o nome no cartão. Flávia Cassandra Silveira.

- Mas o que é isto?

- Foi uma senhora brasileira que se esqueceu cá da cara e do BI. Foi a sua sorte, senão não havia identidade para ninguém. Alegre-se, homem! Aliás, Fávia.

Chorei um pouco, devo confessar. No dia seguinte, mais recomposta, fui ao gabinete da mulher dos arquivos.

- Nome? – pergunto-me.

- Flávia Cassandra Silveira.

- Você é entroncada para uma mulher.

- É verdade.

- E não tem seios.

- Não, não tenho.

- O seu BI está actualizado. Pode seguir.

Segui. A minha namorada não gostou muito da ideia, diz que lhe faz confusão os lábios carnudos e as pestanas para cima. Eu cá já me começo a habituar a ser Flávia, nem que seja para ir às finanças ou à loja do cidadão tratar de qualquer coisa.

Sempre vossa,

Flávia Silveira

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