quinta-feira, 20 de maio de 2010

A Transmutação de Sara Pires

Sara Pires está com fome, e Sara Pires quando tem fome sai de casa, mete-se no carro, conduz até ao Pingo Doce mais próximo e compra uma ferradura de chocolate. Um enorme e comprido folhado gordurento recheado com chocolate. Sara Pires gosta, pelo que Sara Pires sai mesmo de casa, mete-se mesmo no carro, e conduz mesmo até ao Pingo Doce para comprar uma ferradura de chocolate.

Sara Pires, acrescente-se, é uma mulher adulta, e por ser adulta mas ainda jovem e disparatada, dedica parte da sua tarde a ir ao Pingo Doce comprar um bolo só porque tem fome. Aproveita e compra uma salada, atum, tomate e dois sacos de laranja, fingindo que a partir desse dia seguirá uma dieta equilibrada e saudável que a permitirá viver magra e elegante até aos oitenta anos. E, quando a sua mãe lhe ligar hoje à noite, vai dizer que comprou todas estas coisas verdes e com sementes, e sublinhar o facto de agora que tem um namorado estável, uma casa só para si e até um pequeno carro, estar finalmente a crescer para fora da pequena caixa da sua juventude. A mãe ficará orgulhosa, sem sequer saber da existência do folhado de chocolate.

Sara Pires paga tudo a dinheiro, não trouxe cartão. Gosta dos trocos no bolso, porque sente que assim tem as contas contadas e não se estica. Filosofa: um pedaço de cartão magnético abre-lhe caminho para gastar dinheiro a mais, porque um pequeno número verde e digital não provoca tanto impacto que o acto de estender moedas e notas palpáveis à senhora da caixa. Sara Pires paga tudo, já se disse; e sai com um saco de plástico a caminho do parque de estacionamento do supermercado.

Sara Pires aproxima-se do lugar onde deixou o carro, e é com alguma surpresa que em vez de encontrar o seu Fiat Punto amarelo dá-se de caras com um Lamborghini. Pára por momentos, olhando em volta. Tinha a certeza que tinha deixado o carro ali. A certeza absoluta; mas pelos vistos estava errada. Procura pelo resto do parque de estacionamento, mas não há nenhum Fiat Punto à vista. Começa a ficar assustada, desce de elevador até ao nível do supermercado e chama o segurança. Sara Pires leva o segurança até ao Lamborghini.

- Tem a certeza que deixou o carro aqui? – perguntou o segurança.

Sim, Sara Pires tem a certeza.

- Não estará enganada?

Não, Sara Pires não está.

- O seu carro estava aqui? Neste lugar?

Sim, estava, diz Sara Pires.

- Está a dizer que alguém levou o seu Fiat Punto?

- Exactamente – disse Sara Pires – E alguém colocou um Lamborghini no mesmo lugar. Não têm câmaras de filmar?

- Pode emprestar-me a sua chave, por favor? – pede o segurança, e Sara Pires obedece, e Sara Pires vê o segurança analisar as chaves, passar o polegar por cima do símbolo da Lamborghini presente no porta-chaves e enfiar a chave na fechadura do automóvel. Um pequeno clique denuncia o destrancar das portas, o Lamborghini está destrancado e o segurança olha para Sara Pires com pouca paciência.

- As suas chaves abrem este carro – diz o segurança, e Sara Pires não quer acreditar.

- Essas são as minhas chaves? – pergunta Sara Pires incrédula. Até se esqueceu-se do folhado de chocolate.

- Ouça, não me faça perder tempo – disse o segurança, levantando as sobrancelhas – Por favor entre no carro e siga caminho.

- Não é possível, onde está o meu Fiat Punto? – pergunta Sara Pires, olhando à sua volta, e não reparando que o segurança entra no carro, estende-se até ao porta luvas, procura e procura e regressa com os documentos do carro.

- Cá está – diz ele, e Sara Pires olha para os documentos que lhe são estendidos e vê a sua fotografia, o seu nome, a sua morada na documentação do carro. Sara Pires abre a boca.

- O carro é seu. Por favor, deixe-me trabalhar – diz o segurança, fechando a porta do carro e afastando-se com cara desconfiada. Que louca será esta que nem se lembra do seu próprio carro?

Sara Pires sabe que há qualquer coisa que está mal, mas entra no Lamborghini e respira fundo, soltando uma gargalhada. Sara Pires tinha um Fiat Punto, Sara Pires entra no Pingo Doce, Sara Pires sai de Lamborghini. Sara Pires roda a chave, acelera pelo estacionamento, o carro é espectacular e é dela.

Sara Pires chega a casa, e enfia uma embalagem de lasanha no microondas. Programa cinco minutos, e cinco minutos se senta a pensar o porquê de ter um carro desportivo. Terá sido uma partida, conclui. Mas de quem? DO seu namorado? Dos seus amigos? E porquê tão elaborada? Como lhe tinham trocado as chaves enquanto estava no Pingo Doce? Teriam rebocado o Fiat e colocado o Lamborghini no seu lugar? A logística da partida absorve-a, esqueceu-se do folhado do chocolate e vai agora ao microondas buscar a sua lasanha no seu recipiente de alumínio ordinário. Abre a portinhola, o vapor que de lá sai fá-la afastar a cabeça e quando se aproxima e tira o prato do microondas vê-se perante uma espectacular refeição de duas fatias de carne tenra, com um ligeiro tempero adocicado, uma batata assada elegantemente equilibrada num pedacinho de puré e a rematar uma folha de qualquer verdura desconhecida e aromática. Ali está a pequena construção gastronómica, no centro de um prato branco de porcelana, e Sara Pires pensa “onde está o alumínio?”

Sara Pires desconfia, primeiro da lasanha congelada e depois do seu juízo. Esta já não pode ser partida, pesa Sara Pires, reflectindo ainda que ela própria vira com os seus olhos e depositara com as suas mãos a lasanha no microondas, e que nunca tinha arredado pé de frente do microondas pensando no seu novo Lamborghini. A única explicação era ou um defeito da lasanha ou uma debilidade mental. Sara Pires preocupa-se. Estará louca?

Enquanto reflecte, Sara Pires cheira a carne, parece-lhe boa, prova e aprova. Está excelente, parece comida de revista.

***

Sara Pires ia ligar ao namorado, mas não sabia que tinha telemóvel. Só quando caminhou para o telefone manhoso e plastificado que tinha na sala é que o viu substituído por um maravilhoso Blueberry cor de rosa, com músicas super realistas que Sara Pires nunca ouvirá e jogos de grafismo estonteante que Sara Pires nunca jogará. Tem Internet e bluetooth. Por momentos Sara Pires esquece-se que acha que está louca, e brinca com o telemóvel até se lembrar que aquilo não era seu, e deixou-o cair levando as mãos à boca. A sua televisão, um cubo negro com dedadas no ecrã, era agora um LCD de gigantescas proporções, e Sara Pires procurou não chorar e agarrou no Blueberry e ligou para o namorado e Sara Pires chora, e o namorado atende, e Sara Pires diz-lhe

- Vem para já que acho que estou doida.

O namorado se Sara Pires voou pela cidade e estacionou o carro ao lado de um maravilhoso Lamborghini. Toca à porta, sobre de elevador, e bate à porta de casa e Sara Pires abre-lhe e solta um grito.

- Querida, o que se passa?

Sara Pires não respondeu, até porque não sabia. O homem, espectacular em atracção e sex appeal e bem vestido com roupas de marca que estava à sua frente podia ser um modelo televisivo, talvez uma estrela de cinema, talvez um modelo da Multiopticas com aqueles grandes olhos azuis e a barba aparada de anúncio; mas não era o seu namorado.

- Quem és tu?

- Querida, o que se passa?

Sara Pires olhou para ele sem saber o que fazer.

- Qual é a nossa música? – perguntou Sara Pires, porque Sara Pires sabia que se havia alguém que lhe daria a resposta correcta seria apenas e só o seu namorado, e não o muito giro e atraente, ainda que descontextualizado, modelo à sua porta.

- Aquela do Armaggedon, que eu nunca me lembro o nome. Sara, o que se passa?

Passava-se que o namorado de Sara Pires responderia exactamente aquilo, porque era realmente aquela a música e realmente aquele estilo descomprometido de não saber sequer o nome.

- Qual é o meu sabor de gelado favorito?

- Sara, pelo amor de Deus, estás a preocupar-me…

- Diz, caramba!

- Manga.

Sara Pires leva as mãos à cabeça. Confirma-se, é mesmo manga. Sara Pires está doida, só pode, e corre para a casa de banho sem ter consciência de que o corredor por onde agora corre já não é o mísero corredor sem janelas mas sim uma impressionante divisão aberta para um varandim com piscina e vista pela cidade. No entanto é a sua casa, sabe onde está a casa de banho e enfia-se nela, atirando-se contra a porta para a fechar. Sara Pires olha em volta, perguntando-se o que raio será aquilo, quem é aquele homem à sua porta e porque saberá a música e o sabor de gelado. Sara Pires lava a cara num lavatório com porcelanas finas, seca-se num toalhão turco importado e olha-se ao espelho; mas a Sara Pires que lá está e que olha para ela tem um cabelo louro, comprido, penteado, uma maquilhagem impecável, uns lábios carnudos, um decote pronunciado, um olhar plástico de lentes de contacto. Sara Pires pergunta-se porque está ali fechada na casa de banho, e Sara Pires pergunta ainda

- Qual será o meu nome?

Mas não sabe a resposta. Bonita como está pouco lhe importa, e a Sara Pires que não sabe bem quem é abre a porta e beija o homem atraente e bem vestido que a espera, e juntos vão para a piscina ver o pôr-do-sol.

.

Sem comentários: