quinta-feira, 26 de novembro de 2009

O Aniversário

O texto que se segue pode conter linguagem ou cenas susceptíveis de ferir a sensibilidade dos leitores.


- Hoje, meu amigo – disse-me o Marcos – vais ver gajas à séria.

Eu dizia que sim, com um sorriso que não podia controlar mas que também não era sincero. Os outros rapazes uivavam e repetiam “Gajas, gajas!”, mas eu não partilhava do seu entusiasmo. Estávamos todos enfiados num carro enorme, do pai de um dos amigos do Marcos. Era uma carrinha de nove lugares, e lá dentro eram todos grandes e barulhentos. Eu ia no banco de trás com o Marcos, que se via como minha figura paternal no meio daquela confusão toda e parecia sentir uma grande responsabilidade em educar-me.

- Vais ver gajas à séria e vais-te soltar um bocado. Nas calmas. Isto aqui é tudo gente amiga e liberal, topas? – disse-me ele.

Eu não topava lá muito, mas o que é que ia fazer? Meti-me na embrulhada, tinha de a aguentar. Houve risos gerais, e eu mostrei-lhe mais uma vez aquele meu sorriso amarelo de quem recebeu umas meias como prenda de Natal. O Marcos era um tipo engraçado quando queria, mas se lhe dessem duas cervejas e trinta segundos para as beber entrava num estado de euforia completa; e o pior é que, para um tipo que não aguenta a bebida, ele fazia aquilo demasiadas vezes.

Éramos todos menores ali dentro, menos o primo do Marcos, que era quem ia a conduzir. Pelo estilo da condução, e pelos sinais vermelhos que o vi passar, deduzi que a maioridade não lhe tinha dado grande juízo. Nos bancos de trás, passavam-se garrafas de vodka como se fossem de sumo de laranja.

Eu só ali estava por ser o aniversário do Marcos, e por ser seu amigo de infância. Crescemos juntos e ainda me lembro quando realmente bebíamos sumo de laranja natural, e brincávamos no jardim. Algures entre esses tempos e o presente as nossas vidas tinham tomado rumos diferentes, e enquanto eu escolhera as notas constantes na escola e os concursos literários, ele preferira vomitar num beco escuro todas as sextas feiras à noite. As pessoas mudam mas as amizades não se perdem; e quando o Marcos veio falar comigo sobre irmos celebrar a noite de aniversário dele a “um bar muito fixe” e com “uns conhecidos, e mais o meu primo que é super responsável” eu não tinha razões nenhumas para dizer que não. Na altura. Agora a minha resposta teria sido muito diferente.

- Hei, Marcos, onde é aquela merda? – perguntou o primo do Marcos, o tal que era maior de idade, o tal que era “super responsável”.

- Segue que é mais à frente!

- Onde, caraças?

- Mais à frente, pá!

A julgar pela companhia e pela conversa das “gajas a sério”, o “bar muito fixe” seria um lugar realmente encantador, e apesar do cheiro a álcool e a fumo que se entranhava na minha roupa comecei a desejar que não chegássemos ao nosso destino.

- Como te estava a dizer antes daquele paneleiro ao volante me ter interrompido – disse o Marcos, virando-se para mim outra vez – Vais ver gajas a sério, e vais podes descontrair-te. Acho que devias sair mais comigo, pá. Tu precisas de agitação, de ver coisas bonitas ao vivo e a cores. Oh Grajolas, passa aí a gasolina!

O Grajolas estendeu-lhe a garrafa de vodka, que ia a meio. Era um dos mais recentes amigos do Marcos, que vivia entre comas alcoólicos e lojas de roupa de marca. Os pais não tinham propriamente dificuldades económicas, pelo que o Grajolas podia frequentar as melhores escolas e comprar praticamente o que quisesse. O pai dizia que ele ia ser médico, mas eu acho que lá no fundo tanto o pai como o filho sabiam que aquela carreira em Medicina era muito improvável.

- Aqui o Grajolas, que gosta de homens – dizia-me o Marcos, sempre com uma entoação paternal. Os outros riam-se à gargalhada – É que se vai sentir um bocado à parte. Não é, oh Grajolas? Ah, ganda Grajolas!

O Grajolas mostrou-lhe o dedo do meio e um sorriso por entre o fumo do tabaco.

- Onde é aquela merda, porra? – perguntou o primo super responsável do Marcos.

- É já aí á frente, tá quase! – respondeu o Marcos, e depois virou-se para mim outra vez com a garrafa de vodka na mão – Toma, dá um golinho que deves estar com a boquinha seca.

- Não, obrigado.

- Epa, vá lá, isto é noite de festa!

- A sério, Marcos. Sabes que não gosto dessas coisas – respondia-lhe eu com o meu melhor sorriso amarelo. Ele tomou aquilo como uma ofensa pessoal.

- Epa, vais-me fazer esta desfeita…? Faço 18 anos, irmão! Logo hoje, que tava mesmo a ver que te apanhava com uma ganda bezana!

- Epa, oh Marcos! Ou me dizes onde é esta porra ou paro o carro!

- É já aqui, primão! Não stressa, não stressa! – disse o Marcos. O carro começou a abrandar, e consegui ver pela janela as cores vermelhas e roxas do tal bar “super fixe”. Chamava-se “Roxy’s”.

- Meus amigos – anunciou solenemente o Marcos com uma garrafa na mão esquerda e um cigarro na mão direita – Bem vindos ao melhor parque de diversões do mundo e arredores, patrocinado aqui pelo Marcão. A noite é nossa, meus queridos animais. Toca a enfrascar à séria, porque a noite é uma criança! Tchin tchin!

Saímos do carro um por um, e eu fui o último. A fachada do edifício estava coberta de neons com cores fortes, e as letras do nome, em itálico, estavam emolduradas pelos desenhos de duas simpáticas meninas semi-nuas. O Marcos viu a minha cara, que não deve ter sido muito entusiasmada.

- Aqui, irmão – disse-me ele ao ouvido – É só chicha!

No parque de estacionamento carros estacionavam e de lá saiam grupos de jovens como nós, e homens de fato caro e aspecto de quem leva no bolço muitas notas de cem.

- Oh Grajolas, se calhar ainda vemos por aqui o teu pai! Han? Han? – gritava o Marcos. O Grajolas voltou a sorrir-lhe por entre dois goles de bebida, e mostrou-lhe o dedo do meio.

Dirigimo-nos à entrada. A porta estava tapada por uma cortina vermelha, e de lá de dentro saía o som abafado de música da pesada. Dois homens quase carecas e absolutamente cúbicos iam deixando entrar pessoas, ou proibindo outras. “Somos imensos, somos barulhentos e somos menores”, pensava eu. “Não nos vão deixar entrar de certeza”. Mas isso nunca iria acontecer. Não com o Marcos. Ele arranjava sempre forma de dar a volta à questão, e com certeza inventaria uma desculpa, mentiria sobre as nossas idades e ainda faria amizade com um dos seguranças.

Não foi preciso. Assim que o Marcos se aproximou da porta, liderando o nosso grupo, um dos seguranças viu-o e a cara de brutamontes abriu-se num sorriso. Cumprimentaram-se com um aperto de mão afectuoso, e senti a esperança a abandonar-me completamente quando o Marcos apontou para nós ao falar ao ouvido do segurança, e ele sorriu mais uma vez e abriu a cortina vermelha. O Marcos virou-se para trás, levantou os polegares e entrámos. Encolhi-me, para ver se os seguranças conseguiam perceber que eu era menor e não era suposto ali estar, mas nenhum deles reparou. O Marcos veio agarrar-me pelo pescoço e gritou-me por cima da música: ~

- Diz lá se aqui o teu irmão não é um lábias do caraças? Eu podia ser ménagér dos Rolling Stones, irmão! Curtes a música?

Eu não percebi praticamente nada por causa da barulheira, e por isso disse que sim e sorri. Estava lá dentro, o mal estava feito. Assim que avançámos o suficiente para conseguirmos ver a primeira plataforma, com uma bailarina loira semi-nua que parecia feita de borracha, o Marcos começou a agitar os braços no ar como uma criança a ver um espectáculo de golfinhos. Os amigos estavam entusiasmados também, e o Marcos teve de os puxar pelas mangas para podermos continuar. O Grajolas estava absolutamente fascinado pela loira, e ficou especado a olhar para ela.

Eu fiz um esforço enorme para não olhar. Acho todas aquelas coisas terríveis. Primeiro tenho um respeito enorme por aquelas raparigas, porque não deve ser nada fácil subir para cima de um poste todas as noites e dançar semi-nua para umas dezenas de viciados em testosterona. Mas por outro lado tenho pena delas, porque não percebo porque é que se dignam a fazer uma coisa daquelas. Talvez dê dinheiro, e compense pagar as contas com a falta de dignidade. Para mim aquilo era uma óbvia exploração, e não me sentia nada confortável. A loura olhou para mim, como se eu fosse só mais um cliente a olhar-lhe para o decote, com a diferença de que eu não estava a olhar para lugar nenhum a não ser para a cara dela. Quando ela olhou para mim eu senti-me extremamente envergonhado, e quase estive para a cumprimentar com um “Boa noite”. Entretanto o Marcos chegou ao pé de mim e encostou a boca ao meu ouvido

- Epa, não te fiques só nessa que lá dentro há umas com o dobro da prateleira! Anda, vamos ao bar comprar um danoninho! Uhu! – soltou um uivo triunfante, e antes de avançar comigo permaneceu à frente da loura, a agitar o rabo ao mesmo ritmo que ela dançava.

Chegámos ao salão principal, onde uma plataforma central com postes cinzentos estava iluminada com pouquíssimas luzes lilases. Lá em cima, quatro raparigas dançavam ao ritmo da música. Estava tão alta que sentia batidas profundas na caixa torácica, como se me estivessem a bater levemente. À volta da plataforma central sentavam-se vultos indistintos de homens de bebida na mão e notas de cem na outra. Tudo parecia retirado de um livro de banda desenhada a duas cores, e todas as figuras eram difusas.

Conseguia ver os amigos do Marcos a furar por entre a multidão até ao bar. O Grajolas continuava lá atrás, arrebatado pela loura da entrada. O Marcos veio-se agarrar a mim outra vez:

- Diz-me lá se isto não é o paraíso na terra, irmão! Anda apanhar uma bezana, vá lá! Gajas! Gajas! Uhu!

Os amigos dele regressavam com pequenos copos cheios de um líquido que parecia gasolina.

- Ai a porra! Então vossemecês vão à fonte e não me trazem com que molhar os secos lábios, seus cães? - disse o Marcos, como se recitasse poesia. O primo disse qualquer coisa indistinta, que eu não percebi por causa da música. Ninguém ligou nenhuma ao Marcos; estavam demasiado preocupados a contemplar as mulheres nuas, que se deixavam deslizar pelos postes abaixo em posições estranhíssimas. Tudo aquilo estava longe da minha própria noção de sensualidade, e começava a perguntar-me se não me faltaria algum cromossoma masculino importante, uma peça chave para entender os mistérios do que é ser um verdadeiro macho. Comecei a ficar com dores de cabeça. O Marcos estava a dançar outra vez, aproximando-se de uma morena de curvas enormes e cabelo encaracolado. Os amigos aplaudiam. Eu passei os olhos pela sala mais uma vez.

Havia só mais uma morena, a terceira entre o sítio onde estava e o fundo da sala. Para além dela havia uma ruiva e uma loura, todas elas completamente nuas sem contar com alguns centímetros quadrados de tecido na virilha. Desviei os olhos, quase arrependido, e foi aí que reparei numa coisa que até aí não tinha reparado.

A morena, lá ao fundo. A descer pelo poste com as pernas abertas cada uma para seu lado, e com os cabelos castanhos a varrer o chão.

Fiquei a olhar para ela durante alguns segundos, e tentei estudar-lhe os movimentos por entre as luzes e o fumo.

- Epá, aqui o nosso menino já pescou ali qualquer coisa! – disse o Marcos, quando deu por mim a olhar para a morena – Queres um babete, oh seu maluco!?

Os amigos dele riram-se, e o Marcos aproximou-se de mim e olhou também para a morena.

- Epa, e não é que tens um bom gosto do cara… - mas calou-se. Ele já estava mais habituado àqueles ambientes semi-escuros, e por isso deve tê-la reconhecido mais rapidamente do que eu.

- Puto – balbuciou ele – Puto, eu juro-te por tudo.

Eu continuei a olhar para a morena, que entretanto saiu da sua posição da pernas para o ar e se endireitou junto ao poste.

- Puto, eu juro-te que não fazia a puta da ideia que… - continuava ele. Como que atingido por um raio, saiu do meu lado e colocou-se entre mim e a morena. Olhou-me bem nos olhos – Eu sei que isto esta cena é fodida, mas podes ter a certeza que eu não fazia a puta da ideia que isto ia acontecer, pa!

Eu tinha a certeza que o Marcos não sabia, mas de qualquer forma não fiquei zangado com ele. A morena mudou outra vez de posição, virou a cara para o sítio onde estávamos e parou de se agitar ao ritmo da música. Ela viu-me e reconheceu-me. Eu também.

Sim. Era ela. Mesmo àquela distância, com todo aquele fumo e luzes coloridas, eu conseguia reconhecer a minha própria mãe.

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2 comentários:

Renato Rocha disse...

Isso sinifica bocejo ou surpresa....?

Paulo39 disse...

não é bocejo, é tipo surpresa ya