domingo, 11 de abril de 2010

Senha azul

- Boa tarde, em que lhe posso ser útil? – perguntou a senhora com bons modos, ajeitando os óculos rectangulares e cor de rosa no topo do nariz afiado.
Salem Quaid explicou a situação, mexendo as mãos presas pelas algemas enquanto falava. Descreveu a sua detenção, deu o nome do inspector-geral responsável, e o seu número de processo.
- E ao que vem? – perguntou a senhora, remexendo no computador e teclando o número de processo.
- Preso político.
- Execução por enforcamento ou injecção letal? – perguntou a senhora.
- Isso não me disseram – confessou Salem – Mas espero que seja por injecção.
A senhora dos óculos rosa abriu-se num sorriso afável.
- Todos esperam, Sr. Quaid – voltou a olhar para o computador com um interesse profissional - Ora cá está. Número de processo AS345, presidiário Quaid, Phillip Harvin Salem, 47 anos, caucasiano, um metro e setenta e nove, data de nascimento sete do oito de dois mil e dois. Causa da detenção duas, primeira ofensa dirigida ao Partido Unitário, segunda obstrução à justiça agravada. Confere, Sr. Quaid?
- Confere – disse Salem, remexendo as mãos. As algemas eram extremamente desconfortáveis. Atrás de si juntara-se agora outro homem, também algemado, esperando a sua vez.
A senhora dos óculos cor de rosa assinou um impresso, e estendeu-o a Salem depositando-o sobre o balcão.
- Siga pelo corredor à direita e quando chegar a uma salinha tire uma senha. É só aguardar.
- Sabe dizer-me se vou ser enforcado? – perguntou Salem, genuinamente preocupado.
A senhora derreteu-se noutro sorriso.
- Isso não lhe posso dizer, lamento imenso. Não se esqueça da senha.
Salem atravessou o corredor, chegou a uma pequena sala e observou os dois cospe-senhas existentes, um em cada lado da sala. O da esquerda era vermelho, o outro azul. Uma rapariga nova e bastante bonita aproximou-se dele com um dossier onde parecia apontar informações.
- Sr. Quaid? – perguntou ela, olhando-o nos olhos.
- O próprio.
- Bem vindo ao nosso centro de execução estatal. Queira aguardar um momento, por favor.
A rapariga foi até ao outro lado da sala. Os seus ténis pareciam práticos e confortáveis, e faziam barulho sobre o linóleo. Uma pequena máquina embebida na parede cuspiu uma pequena tira de papel, que a rapariga arrancou e leu com rápido profissionalismo.
- Senha azul, Sr. Quaid. Deste lado – disse ela, apontando-lhe para o lado direito da sala.
- Azul é bom – disse Salem, suando da testa. Deduzira imediatamente que as senhas vermelhas e as senhas azuis distinguiriam os mortos por enforcamento e injecção letal.
- Azul é bom, Sr. Quaid – confirmou a rapariga, com um pequeno sorriso – Injecção letal administrada. É o seu dia de sorte.
- Deve ser realmente. Ouvi dizer que o enforcamento é extremamente doloroso.
- Algum dos seus amigos já foi enforcado? – perguntou a rapariga com outro sorriso, enquanto preenchia qualquer coisa no dossier.
- Alguns, mas não sobreviveram para contar a história – Salem riu-se, e a rapariga olhou para ele parando de sorrir. Salem soltou uma gargalhada, atirando a cabeça para trás, e levou as mãos algemadas aos olhos. Quando voltou a olhar para a rapariga os olhos estavam cheios de lágrimas.
- Ouça, o meu lugar não é aqui. Aquilo de que me acusam, é tudo falso. Eu sou escritor, pelo amor de Deus. Tudo o que fiz foi escrever uma peça de teatro. Não sou nenhum terrorista. Não fiz mal a ninguém.
A rapariga estendeu-lhe a fita de papel que ainda há pouco saíra da máquina. Levantou-lhe as sobrancelhas e mordeu o lábio inferior.
- Olhe, lamento muito. Eu sei que deve ser uma chatice, mas que quer que lhe diga? Este é o meu trabalho.
- Você é muito bonita. Pode dar-me um abraço? – pediu Salem, mordendo as mãos nervosamente.
- Senha azul, Sr. Quaid.
- Obrigado – respondeu Salem, atravessando a sala para a direita e retirando uma senha azul. Seguiu por um imenso corredor, e deu por si noutra sala, esta maior, enorme. Filas e filas de cadeiras estendiam-se até ao infinito, cobertas por homens e mulheres todas vestidas com os mesmos fatos de detenção, iguais ao de Salem. Cada um dos homens e mulheres tinha uma senha azul na mão.
Durante vinte minutos Salem percorreu as filas das cadeiras. Os outros presos olhavam-no com maus modos, outros choravam. A um canto, uma luta começou, entre dois enormes gorilas que competiam por uma senha amarrotada. Salem afastou-se da briga, e quase chocou com um rapaz pequeno e de cabelo encaracolado.
- Ups, desculpe, senhor.
- Eu é que peço desculpa.
- Ei, qual é o seu número, senhor? – perguntou o rapaz.
Salem olhou pela primeira vez para a sua senha. Era o 176.875.008.
- Meu Deus, que número enorme – comentou Salem.
- É assim mesmo. Como chegam presos para executar todos os dias, os serviços ficam sobrecarregados e não há tempo para matar toda a gente como deve ser.
- Que idade tens tu?
- Mais do que te interessa – respondeu o rapazinho.
- O que é que faz aqui um rapazinho como tu?
- Estou a brincar. A minha mãe trabalha no Serviço de Apoio ao Pré-Executado. É como vos chamam.
- E ela deixa-te andar por aqui?
- Não tem outro remédio, fecharam a minha escola. Mandaram executar a directora, depois os professores, e depois as funcionárias. A minha professora de matemática tirou senha ainda a semana passada, e anda por aí a chorar pelos cantos. Diga-me, senhor, chegou à muito tempo?
- Acabei mesmo agora de…
- Então óptimo – disse o rapazinho, determinado e despachado – Vou fazer-lhe uma visita guiada para ficar a conhecer os cantos à casa. Está a ver aquilo ali ao fundo?
Salem seguiu a indicação do rapaz. Havia uma pequena porta amarela no meio da parede cheia de azulejos brancos, na parede lá muito ao fundo.
- Ali é onde trabalha a minha mãe. Se precisar de alguma coisa ou se lhe apetecer só desabafar é com ela que tem de falar. Fique sabendo que não há perdões estatais, por isso ela não lhe consegue salvar a pele mas ao menos pode apoiá-lo pesicologicamente e dar-lhe ebuçados para a tosse. Mas só das 9 às 18 e 30, porque ela não faz horas extraordinárias. E na porta ao lado estão as casa de banho. Use-as à hora do almoço, porque costumam estar menos cheias por essa altura. Já conheceu o velho Smith?
- Não tive esse prazer.
- Óptimo, então vou levá-lo lá. Pode fazer bom dinheiro com essa senha novinha em folha, senhor. Venha, venha!
O rapazinho saiu a correr, saltitando por entre as cadeiras ocupadas por presos de senhas na mão. Corria com a agilidade com que Mogli saltita pela floresta, deduziu Salem. Seguiu-o.
Foi dar com o rapazinho a um dos cantos da sala, onde umas quantas cadeiras tinham sido arrancadas das filas onde se encontravam e foram aglomeradas umas ao lado das outras, formando um pequeno quadrado. Lá dentro, sentado ao centro, estava um homem magríssimo, quase esquelético, cujos cabelos e barbas eram tão brancos e longos que mal se conseguia ver a distinção entre um e o outro.
- Velho Smith, tenho aqui uma visita para si! Ande lá, senhor – o rapazinho puxou-o.
- Carne fresca! – disse o Velho Smith, olhando para Salem – Como vai? Chamo-me Smith.
- Salem Quaid.
Cumprimentaram-se.
- É novo por aqui!
- É verdade.
- Está a sentir-se bem?
- Até agora toda a gente me tratou maravilhosamente.
- De entre todos os centros de execuções estatais este é o mais agradável – disse o Velho Smith – e também ajuda ter aí o pequeno como companheiro. Mas deixemo-nos de coisas. Mostre-me lá a sua senha – disse Smith. Salem estendeu-lha.
- Pelo poder da Administração Central! Que número enorme! Pode ganhar bom dinheiro com isto! Simpatizei consigo, até o deixo escolher!
- Dinheiro por aqui significa coisas – explicou o rapazinho, encostando-se à orelha de Salem.
- Coisas?
- Sim. Desde que caiba nos bolsos, para quando os inspectores chegarem cá não encontrarem nada suspeito e estar tudo escondidinho.
O Velho Smith arrastou a sua velha carcaça até ao canto da sua “sala”, e trouxe de lá uma fronha de almofada. Despejou o seu conteúdo aos pés de Salem, revelando uma infinita quantidade de pequenos objectos.
- Chocolates, cigarros, preservativos, tampões para os ouvidos, consolas pequeninas, revistas pornográficas… É só escolher.
- Em troca desta senha?
- Claro. Como acha que deixei crescer esta barba toda? Estou aqui à 23 anos.
- Como fugiu da execução?
- Fui trocando. Sempre tive jeito para o negócio. Umas coisinhas aqui e ali compram senhas mais recentes. Cá vou ficando, enquanto os vejo irem-se um a um. Aposto consigo vinte maços de tabaco em como vou cá estar quando chegar a sua vez! – o Velho solou uma gargalhada esplêndida.
- Sendo assim posso escolher o que quiser?
- Esteja à vontade. Com a condição de levar uma destas senhas mais antigas. Se for apanhado sem senha está tramado.
Salem estava indeciso entre uma revista pornográfica e uma embalagem de bombons de licor quando um enorme estrondo atravessou a sala e todas as cabeças se viraram na mesma direcção.
- Inspecção relâmpago! – gritou uma voz a um megafone. O agitar de corpos e objectos foi impressionante, enquanto os presos escondiam coisas nos bolsos ou em locais estratégicos da sala.
- Ena! – gritou o Velho Smith. Atirou a revista e os bombons para os braços de Salem, assim como uma senha velha e amarrotada, e repetia-se enquanto guardava tudo dentro da fronha – Siga, siga, siga!
Salem afastou-se, olhando em volta sem saber bem para onde ir. O rapazinho desaparecera. Enfiou a custo a revista e os bombons nos bolsos e procurou sentar-se a um canto.
Um grupo de homens armados atravessou a sala. Dois enormes cães abriam caminho por entre a multidão de presos, ladrando furiosamente. Ao centro da comitiva, protegido por uma dúzia de gorilas armados, ia um homem de fato e gravata que segurava o megafone.
- Inspecção relâmpago! À minha ordem toda a gente se levanta! Levantou!
Todos os corpos da sala se levantaram.
- Todos quietos! Quem se mexer leva um tiro!
Salem não se mexeu; se bem que a ameaça de levar um tiro não parecesse grande problema para alguém condenado a morrer.
A comitiva alinhava agora um grupo de homens e mulheres, escolhidos aleatoriamente. Os guardas armados remexiam nos bolsos, retirando bugigangas, enquanto os cães ladravam furiosamente e a voz ao megafone continuava a cuspir frases.
- Todos vós são parasitas sociais, a escória do nosso país! Nenhum de vós ama nem respeita o Partido Unitário, e o Partido Unitário não vos respeita a vós! Estão aqui porque aqui foram colocados, e não sairão daqui senão para morrer! E quem esconder coisas no cu vai para a morgue mais cedo!
Dois guardas encontraram alguma coisa acusatória, e começaram imediatamente a espancar um dos homens de pé. Ele caiu, cuspiu sangue, e foi pontapeado até não se conseguir mais levantar. A comitiva reorganizou-se, voltou a abrir caminho pela multidão e saiu da sala em segundos. O homem estendido no chão lá permaneceu, e dois outros presos arrastaram-lhe o corpo até um canto onde não estivesse a incomodar quem passava.
- Isto é terrorífico! – disse Salem.
- Bem vindo – disse o Velho Smith a alguns metros de distância, retirando a fronha de debaixo de uma laje do chão e sorrindo-lhe abertamente.
***
Salem Quaid não se lembrava quantas senhas já tinha tido, mas sabia que fumara muitos cigarros em troca delas; e a última vez que encontrara preservativos dentro do prazo de validade usara-os bem, passando uma agradável tarde na casa de banho das senhoras, trancada por dentro, com a rapariga bonita que distribuía as senhas. Chamava-se Anna, e engraçara com ele. O seu caso era fogoso, e enquanto durasse Salem tinha mais uma razão para ir trocando de senha em senha e manter-se por ali, à espera da morte.
O Velho Smith morrera há pelo menos 17 anos, altura em que a sua amizade com Salem estava tão sedimentada que fora ele a herdar o negócio da fronha. Era assim conhecida, a Fronha. Até o rapazinho, agora crescido, agora um homem, também ele preso e de senha azul na mão, já usufruíra dos seus serviços para arranjar tabaco; aliás, era ele (e, secretamente, a sua mãe) que providenciava muitos dos produtos disponíveis na Fronha, vindos do mundo exterior.
A inspecção passara há algumas horas, pelo que só regressaria no mínimo dali a dois dias. Salem e o rapazinho, que agora era um rapagão, estavam sentados em duas cadeiras e fumavam cada um o seu cigarro.
- Rapaz, sabes que te considero como um filho, não sabes?
- Ora, Salem. Pareces o meu pai a falar, cala-te com isso.
- Não, é verdade. Estou numa idade em que devo repensar a minha vida. Sabes há quanto tempo estou neste lugar? 22 anos. Era um piolho minúsculo quando aqui cheguei. Usavas fraldas.
- Não exageres.
- O tempo passou depressa, e está na hora de tomar algumas decisões.
- Hum, hum – disse o rapaz, desinteressadamente.
- Não posso ir muito longe daqui, mas quero que me arranjes uma coisa através da tua mãe. Pagarei senhas frescas e muito tabaco por isto que te vou pedir.
- Diz-me.
- Preciso que me tragas um anel.
- Um anel?
- Sim. De brilhantes. Uma coisa que brilhe, não sei. Tenciono pedir Anna em casamento.
- Estás louco. Achas que ela vai aceitar?
- E a mim que me importa?
- Eu arranjo-te o anel, mas duvido que ela aceite. Vais ser executado, Salem. Achas que ela te quer como marido?
- Ainda aqui estou, à espera. Não estamos todos? Não esta ela tão à espera da morte como eu? Com a diferença de que a morte dela quando chegar chegou, e a minha ainda vou negociando em troca de alguns maços de tabaco. Arranja-me o anel, que te fico agradecido.
***
Encontaram-se na casa de banho, para que o rapaz lhe pudesse dar o anel com toda a descrição.
- Acho que é de diamantes, Salem. É um anel caro.
Salem segurava-o nas mãos, orgulhoso, vendo-o reflectir cintilantemente as luzes pálidas por cima dos urinóis.
- É lindíssimo, Anne vai adorar.
Lá fora, o som dos cães.
- Oh, merda – disse o rapaz, empalidecendo e saindo a correr. Voltou pouco depois – Salem, a Fronha! A inspecção tem a Fronha!
Salem tirou os olhos do anel.
- Estava debaixo da laje, não a podem ter descoberto.
- Ora espreita! Encontraram-na, estão a remexer e a espancar a torto e a direito! Esconde o anel!
Salem atirou-se para cima de um dos lavatórios, agarrou num sabonete e fechou-se nos dos cubículos. Sabia o que tinha que fazer, e como. Fizera-o, para esconder certos objectos valiosos ao longo dos anos. Baixou as calças e alçou uma das pernas.
Os cães entraram pela casa de banho, seguidos pelos homens de armas.
- Não se pode já mijar em paz? – gritou o rapaz, fingindo-se surpreendido. Atiraram-no contra a parede, revistaram-lhe os bolsos, e encontraram um maço de tabaco. Enquanto era dominado, outros dois homens de armas partiam ao pontapé as portas dos diversos cubículos. Finalmente chegaram ao de Salem.
- Não se pode defecar em paz? – gritou ele, em concordância com o amigo. O rapaz soltou uma gargalhada.
- A senha – exigiu o homem de gravata; sempre o mesmo, ao longo de todos aqueles anos, sempre com o mesmo megafone na mão.
Salem estendeu-lhes a senha.
- Sr. Quaid, presumo? Um dos mais antigos hóspedes desta espelunca. Pode informar-me por favor o porquê de estar aqui há 21 anos e ter em sua posse uma senha retirada há apenas três dias?
- Sabe, Sr. Lankin – disse Salem com voz grave – Eu viajo no tempo.
Levou um murro enorme, de um punho volumoso. Este tinha sido um mau dia para começar a experienciar a vida; mas já que ia casar e que tinha um anel colocado num sítio extremamente apertado e privado, pareceu-lhe bem ser coerente e responder mal aos guardas. Nunca tivera a coragem de o fazer, mas fartara-se de esperar.
Agora no chão, Salem levava de três lados, cada um dos três guardas pontapeando-o com as botarras enormes. A pancadaria durou alguns minutos, e depois a inspecção relâmpago evaporou-se.
- Isto é que é viver a vida – disse o rapaz, apoiando-se num urinol e procurando levantar-se.
***
Salem estava sentado num dos lugares mais vazios da sala. A porta ao seu lado, em tons azuis, tinha um pequeno letreiro a dizer “Execuções”. Por ali entravam os homens com as senhas mais antigas da sala, para nunca mais voltarem. Salem segurou o pedaço de papel azul nas suas mãos, despedaçado pelos anos e pelas mãos que o haviam agarrado.
- Acho que o que estás a fazer é um disparate – comentou o rapaz, a seu lado.
- Eu tentei.
- Eu tinha-te dito que ela ia recusar.
- Sim, tinhas.
- É necessário fazeres isto?
- Quando tiveres mais idade perceberás. Estou demasiado farto desta sala e de esperar. Chegou a minha vez.
- Não precisa de chegar, só chega porque queres – disse o rapaz – Tenho aqui outras senhas, fresquinhas. Deixam-me que ta dê. Larga essa senha velha. Que se passa contigo? Tens tantos anos pela frente!
Salem não o ouvia, olhava para a porta.
- Que privilégio foi enganar a morte a teu lado, rapaz. Trata bem da nossa Fronha e da Anne por mim. Não a deixes casar com algum condenado à morte.
A porta azul abriu-se, e Salem sentiu pela primeira vez em 21 anos a emoção adiada de ouvir ser chamado o seu número.
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