segunda-feira, 10 de maio de 2010

O melhor para a criança

Carlos e Sofia conheceram-se quanto tinham quatro anos, e desde aí não se largaram mais. Pertenceram à mesma turma durante o primeiro ciclo, começaram a namorar no secundário, e aos vinte e três anos arranjaram um apartamento de 10 metros quadrados na zona mais manhosa da cidade. Ao todo tinham um sofá, uma mesa, uma cama e duas escovas de dentes, mas o frigorífico nunca estava vazio o suficiente para passarem fome. Foi mais ou menos na altura que Carlos arranjou um emprego razoável numa empresa de produtos alimentares que Sofia começou a vomitar por tudo e por nada. Foi à farmácia, urinou para cima do pauzinho, e quando os dois minutos acabaram e viu aparecer o sinal positivo sentou-se na borda da banheira a chorar e a rir ao mesmo tempo. Estava grávida.

A notícia apanhou Carlos desprevenido, e não se pode dizer que tenha ficado muito contente com o assunto. Pelo menos não de imediato. Sofia estava radiante. Fez um jantar especial, comprou uma garrafa de vinho, comeram ao som de música romântica e quando estava na sobremesa Carlos ajoelhou-se à frente de Sofia, levou a mão à barriga ainda encolhida e pensou que algures ali dentro estava um embrião feio e enrugado, que em breve cresceria para inchar a barriga da mãe e dali a uns tempos andaria a correr e a jogar futebol pela casa. Começou a chorar, Sofia também, e só se recompuseram para ligar aos seus pais a dar a notícia.

No dia seguinte Carlos saiu mais cedo do emprego e foi até uma livraria. Perguntou onde era a secção de paternidade, a senhora da loja disse-lhe que não havia tal coisa, e Carlos disse que ia ser pai, e que precisava mesmo de saber o que fazer com uma criança. A senhora indicou-lhe com o dedo uma prateleira pequena junto à secção de Medicina, cheia de livros com bebés e fraldas na capa. Carlos não sabia por onde escolher. Trouxe todo o tipo de literatura, na dúvida. Como tratar da higiene do bebé, doenças comuns nos recém-nascidos, o meu primeiro álbum, psicologia do adolescente. Quando estava na caixa pôs-se a folhear os livros, e encontrou na lombada de um dos volumes sobre partos problemáticos um pequeno anúncio que dizia em letras cor de rosa

VAI SER PAI? SABEMOS QUE ESTÁ ENTUSIASMADO… MAS NÃO SE ESQUEÇA DE CONTACTAR O CENTRO NACIONAL DE FORMAÇÃO PARENTAL. LIGUE JÁ 808 22 22 34 PARA SABER QUAL O CENTRO MAIS PRÓXIMO DA SUA ÁREA DE RESIDENCIA.

Carlos pagou os livros e levou o saco cheio para a paragem do autocarro onde se sentou a folheá-los. Estava a meio de um capítulo sobre cordões umbilicais quando o autocarro chegou.

Sofia ficou impressionada com ele, mas continuou a ver o seu catálogo de roupa para grávida onde desenhava uma circunferência a marcador à volta das peças que queria. O catálogo estava quase todo marcado com circunferências azuis. Carlos agarrou no telefone e ligou para o número, descobrindo que o Centro Nacional de Formação Parental mais próximo era, na verdade, a dois quarteirões de sua casa.

- Amanhã vou inscrever-me – disse ele, e Sofia beijou-o apaixonadamente. Passaram a noite a discutir sobre carrinhos de bebés, e na manhã seguinte Carlos foi até ao Centro. Era realmente perto, a cinco minutos de sua casa. Quando lá entrou viu uma pequena sala de espera com uma série de homens sentados e uma recepcionista atrás de uma secretária que o convidou a aproximar-se.

- Bom dia. Eu vou ser pai – disse Carlos com todo o orgulho.

- Bem vindo ao Centro Nacional de Formação Paternal. Preencha só esta pequena fichinha e já o chamamos.

Carlos sentou-se numa das cadeiras e preencheu a ficha com dados pessoais e informações sobre a gravidez da esposa. Passados alguns minutos um homem de óculos e calças verdes aproximou-se dos homens sentados e disse:

- Façam o favor de entrar.

Carlos entregou a ficha à senhora da recepção e seguiu os outros futuros pais para dentro de uma pequena sala com cadeiras e painésie enormes nas paredes, cheios de imagens de bebés e diagramas explicativos. Os futuros pais sentaram-se.

- Ora muito bom dia. Sejam bem vindos ao Centro de Formação Parental. Desde já os meus parabéns pela maravilhosa notícia que é a chegada de uma nova vida. Tenho a certeza que nos vamos dar muito bem, tendo uma coisa tão emotiva e importante que nos liga a todos. O meu nome é José Cartacho e serei o vosso formador.

O formador distribuiu uma série de folhas. Carlos olhou para uma das suas.

- O que acabei de distribuir é um índice geral da vossa formação. Terão vinte e duas aulas teóricas, e doze aulas práticas. O vosso exame teórico só poderá ser realizado quando tiverem terminado todas as aulas teóricas, e só poderão ir a exame final quando completarem as doze horas de formação prática. Compreendido?

Carlos ouvia com atenção, e escrevia algumas notas na sua agenda. O índice de aulas incluía “Anatomia Pediátrica”, “Teoria da Fralda”, “Biberão e seu aquecimento” e “Aspectos técnicos da montagem de carrinhos”.

- Escusado será dizer que convém estudar o bastante para passarem nos exames, e serem uns pais excepcionais. Mas pelas vossas caras vejo já que vai tudo correr bem. Começamos?

A primeira aula, “Considerações gerais sobre a gravidez”, foi elucidativa. Carlos tirou imensas notas, e quando regressou a casa contou a Sofia que o centro de formação era óptimo e que ia ser um pai maravilhoso.

As semanas passaram-se. Carlos adquiriu o livro teórico, com o qual acompanhava as aulas atentamente. Tirava notas, completando as informações do livro com as achegas do formador e dicas que seriam importantes no decorrer do exame. Pela décima nona aula, “Roupa a condizer e aspectos da estética infantil”, Carlos estava confiante nas suas capacidades e inscreveu-se para o exame com antecedência e sem medos.

Na véspera não dormiu. Leu o livro vezes e vezes sem conta, desenhou esquemas, e pediu ajuda a Sofia no estudo dos vários tipos de toalhitas higiénicas. Às nove da manhã estava ele e mais uma série de futuros pais no centro de exames, na mais nervosa expectativa. O examinador chamou-os, entraram para dentro de uma sala com computadores individuais e começaram o seu exame. Das vinte e cinco perguntas Carlos tinha a certeza que tinha errado pelo menos uma, e bloqueou o suficiente na questão sobre as chupetas para não conseguir responder. Suava abundantemente quando recebeu a folha com o resultado, no fim do exame. Tinha passado. Deu um salto para o ar, e correu à cabine telefónica mais próxima para ligar a Sofia. Ela chorou de emoção.

De volta ao centro de formação, o seu formador deu-lhe os parabéns, e preparou-o para as aulas práticas. A primeira temática, “Pegar, adormecer e transportar o bebé”, foi a mais delicada. Treinavam com bonecos de plástico, mas logo na primeira aula Carlos sentiu uma comoção imensa ao agarrar o seu boneco. Imaginava-se já com um filho verdadeiro, de carne e osso, que chorava e gritava o seu nome. Imaginava-o já a correr pela casa, a ir para a escola, a apresentar-lhe a namorada e a pedir-lhe aprovação para o casamento. Pediu uns minutos ao formador, e saiu até à casa de banho para se acalmar.

- Não sei se aguento tamanha pressão – disse Carlos a Sofia, à noite, quando procurava adormecer.

- Se passaste no exame teórico também passas neste. Tantos tipos irresponsáveis que tiram a Licença de Paternidade e tu não conseguias porquê?

- Mesmo assim… Estou nervoso.

- Cala-te e dá-me um beijo, vá.

Deram o beijo, mas Carlos demorou a adormecer.

O dia do exame chegou, e Carlos foi até ao centro de exames treinando mentalmente a limpeza da área genital e irritada. Quando chegou a sua vez e começou a prestar provas no teste do adormecer e do arroto, começou a ganhar mais confiança. Nos exames utilizavam bebés verdadeiros, e o seu, um bebé loiro e muito gordo, parecia calmo e tranquilo aos seus braços, arrotando com facilidade e adormecendo rapidamente. O examinador passou por ele e escrevinhou qualquer coisa numa folha de papel. Carlos pousou o bebé no berço e seguiu com o seu exame, entrando na sala seguinte com um sorriso confiante nos lábios.

A prova do carrinho correu-lhe mal. Chocou duas vezes com o carrinho de outros dos examinados, e por três vezes o bebé gritou de pânico ao sentir a roda do carrinho presa num dos obstáculos do circuito. O examinador nem sequer olhou para ele, e passou-o à sala seguinte com frieza. Carlos seguiu para a prova de mudança da fralda, mas o bebé que lhe calhou, um pretinho de olhos grandes, urinou-lhe em cima da camisola e agitou-se nervosamente, pelo que a fralda ficou mal colocada e deslizou pelas pernas abaixo assim que o examinador pegou no bebé ao colo para avaliar a prestação de Carlos.

Por esta altura Carlos estava tão nervoso e impaciente que entornou leite e deixou o biberão sobreaquecer na última prova, pelo que não pôde alimentar o seu bebé sem lhe queimar a língua. Sentiu-se enjoado e tonto, à medida que avançou para a sala de espera onde aguardaria o resultado. Poucos minutos depois o examinador chegou à sala, distribuindo pelos futuros pais as folhas com os resultados. Alguns pais estavam sorridentes, e um ou outro levou a mão à cara. Chegou a sua vez, e Carlos recebeu a folha e quase a amachucou enquanto lia. Tinha reprovado. Atingira uma nota muito alta na temática do Adormecer e Arrotar, mas chumbara a Condução de Carrinho em Cenário de Rua e Mundaça de Fralda e Higiene Íntima; mais do que suficiente para reprovar no exame.

- Carlos Saldanha? – perguntou examinador, olhando para ele.

- O próprio.

- Lamento imenso, mas a sua nota não lhe permite obter a Licença de Paternidade aprovada pelo Estado.

- E agora? Quando poderei repetir o exame?

- Repetir o exame?

- Sim. Não me diga que não posso repetir…

O examinador esboçou um sorriso compreensivo e paternalista, e deu-lhe uma palmadinha nas costas.

Uma semana depois, tocaram à porta e Sofia foi abrir. Já começava a notar-se a barriga arredondada.

- Boa tarde, o que deseja? – perguntou. À sua entrada estava um homem de fato, que se identificou como agente do Centro de Formação Parental. Ao seu lado estava um segundo homem, vestido em roupas casuais e aparentemente nervoso.

- Boa tarde. Sofia Saldanha?

- É a própria.

- Que bela gravidez. Muitos parabéns! Na sequência da reprovação do seu marido, Carlos Saldanha, no Exame de Formação Parental, o Estado atribuiu-lhe um novo pai para a criança.

Sofia olhou do homem de fato para o segundo homem, que lhe acenou sem saber o que dizer. Estava envergonhado.

- Desculpe? – perguntou Sofia.

- Como deve saber, o seu marido reprovou no exame de Formação Parental; e como tal não poderá desempenhar as funções de pai dessa criança. O examinador deliberou que o senhor… - o homem de fato procurou qualquer coisa nos papéis que trazia consigo - … Carlos Saldanha não se encontra preparado para a responsabilidade de ser pai. Aqui tem o substituto.

O segundo homem deu um passo em frente, estendendo a mão a Sofia.

- Jorge Sousa. Muito prazer.

- Isto é um disparate! Não conheço este homem! – disse Sofia, dando um passo atrás.

- Não se preocupe, terá ainda uns meses para o conhecer melhor. Está de…?

- Dois meses e meio.

- Ora óptimo! Até o bebé nascer terá muito tempo para se familiarizar com o novo pai da criança, e quando ela nascer não saberá a diferença!

- Ouça, deve haver aqui alguma confusão. Isto não está certo! Terei de esperar pelo meu marido para falar com ele sobre isto – disse Sofia – Senhor Jorge Sousa, peço imensa desculpa, mas como deve compreender…

Jorge Sousa ia dizer qualquer coisa, mas foi interrompido pelo homem de fato que já arrumava os seus papéis numa pesada mala:

- Ah, senhora Saldanha, mas o seu marido não deverá regressar a casa hoje.

- Perdão?

- O Estado atribuiu-lhe um segundo pai, mais competente. Aqui o Jorge Sousa obteve a pontuação máxima do Exame, e por isso será um pai maravilhoso. Para evitar confusões, manteremos o seu marido Carlos Saldanha afastado do seio familiar durante tempo indeterminado. Sabe, para não interferir com a sua gravidez, ou o crescimento da criança.

- Está louco! O que fizeram ao meu marido!? – Sofia atirou-se para a frente, mas Jorge segurou-a.

- Deixo-vos a sós para se conhecerem melhor. Que família bonita! Muito boa tarde! – disse o homem de fato, despedindo-se profissionalmente e descendo as escadas do prédio rodeado pelos gritos de Sofia.

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3 comentários:

Paulo39 disse...

Muito bom!

Que imaginação!

Renato Rocha disse...

Tinha esta ideia na cabeça desde que comecei com as aulas de código da estrada. Nota-se, né?

Paulo39 disse...

Pois claro! lol