sexta-feira, 28 de maio de 2010

Um dia de sol no Atlântico Sul

Havia uma velhota a flutuar em cima de um barquinho. O barquinho era de borracha, insuflado, e ia perdendo ar. À sua volta, em todas as direcções, estendia-se o oceano atlântico. Azul escuro, espelhando o sol, como um enorme planalto de gelatina em movimento. A velhota abriu o casaco de malha, despiu-o, dobrou-o com todo o cuidado como se estivesse em casa a arrumar a roupa que passara a ferro e colocou-o sobre a borda do barquinho. Olhou para cima. O Sol do meio-dia parecia derretê-la como a um gelado, secá-la como a uma febra na grelha. Tinha a pele feita num caco, e um escaldão enorme no pescoço e nos braços. O único pensamento na cabeça da velhota, equilibrada no centro do barquinho, era:

“O que terei feito ao meu neto, ao meu rico neto, para ele se ter zangado assim comigo?”

Onde estava o seu neto, agora que pensava nisso? Não sabia. Olhava à volta, com toda a calma. O pescoço doía-lhe mesmo, meu Deus! Virava-se em bloco, para um lado, para o outro, e nada. Só água e nenhum sinal do seu neto, do seu rico neto.

“Que água bonita!” pensou a velhota. Lembrava-se de viver num sítio muito longe dali (ou seria perto? Ou seria ali? Onde estava ela, agora que pensava nisso?) um sítio onde não tinha tanta água assim, toda junta daquela maneira. De repente lembrou-se de estar dentro de água, uma água mais doce e verde do que aquela. Lembrou-se do irmão nos seus calções, do cheiro a grelhados e a eucaliptos, do som dos cavalos e do sino da igreja. De onde viera então toda aquela água à sua volta? Onde era a igreja? Não sabia onde estava, agora que pensava nisso. Mas talvez se conseguisse encontrar a igreja poderia orientar-se, voltar para casa, pedir à mãe que lhe desse um gelado de limão. Mas onde estaria a igreja? Talvez lá dentro estivesse o seu neto, o seu rico neto.

Onde estava o irmão? Podia jurar que o tinha ouvido gritar “Salta, Amélia! Sua mariquinhas!”, e podia jurar que tinha saltado sim, e que agora estava dentro de água, no fundo do rio, de bochechas cheias como balões e os olhos fechados com toda a força, os braços estendidos e as pernas como as de um sapo, a patinhar, a patinhar, a patinhar. Veio ao de cima e toda a gente junto ao rio a aplaudiu, e o irmão saltou a seguir, e depois era hora de ir almoçar porque a mãe os tinha chamado.

O barco cheirava a plástico e borracha. Onde estavam os eucaliptos? Podia jurar que os tinha visto por ali.

“Meu neto, meu rico neto. Onde estás?” perguntou ela a si própria, ao mar, ou ao barco de borracha. “O que terei feito para o meu rico neto se ter esquecido aqui de mim?”

Ele viria buscá-la logo logo, tinha a certeza. Estaria ocupado com o trabalho, provavelmente. Tinha um emprego muito desgastante, era advogado, estava sempre a trabalhar, aquele rapaz! Ele viria buscá-la logo logo, ela tinha a certeza.

Ai, mas a noite anterior tinha sido tão bonita! Sentira-se uma rainha. O seu neto tinha-a trazido no seu carro até ao iate, tinha-a ajudado a subir os degrauzinhos, tinha-lhe dado o seu jantar favorito, que era muito melhor do que a comida do lar. Tinha-lhe dito que tirara o dia para estar com ela, com a sua avó querida. Disse-lhe que desde que os seus pais tinham morrido que se sentia sozinho, mais sozinho do que nunca e com imensas saudades dela, da sua avó querida. E que se a avó precisasse de alguma coisa era só dizer-lhe, sem hesitações, sem cerimónias nenhumas! A avó tinha chorado como uma madalena, tinha-lhe dito pobre rapaz, sozinho no mundo com a tua velha avó, fraca e encolhida. Olha para ti, sozinho sem pais, sem uma noiva, uma rapariga simpática que cuide de ti. Deixa lá meu rico neto, que quando Deus Nosso Senhor me levar para o Reino dos Céus, tudo o que foi meu em terra irá direitinho para ti, meu netinho, meu querido!

De maneira que agora (uma? Dez? vinte horas depois? O Sol ia rodando no céu e a velhota ainda não encontrara a igreja) a velhota ali estava, num barquinho de borracha, com mar à sua volta, só com mar à sua volta. O seu neto, o seu rico neto voltaria com certeza para a vir buscar, o pobrezinho. Era tão bom rapaz.

Triângulos negros apareceram de dentro de água, primeiro um, depois dois, depois vários, circundando o barquinho como os carros num carrossel. A velhota espreitou pela borda do barco.

“Que peixes bonitos!” pensou ela; e algures debaixo do seu corpo encolhido o barco de borracha começou a perder ar e a esvaziar-se.~

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1 comentário:

What disse...

Não é que esteja mal escrita... Mas odeio esta história.
A sério, faz-me mesmo mal.