domingo, 3 de junho de 2012

Frase Apropriada # 3

Aqui, no alto da estrela, é o lugar de Roog-Sen.

Catherine Clémen, A Viagem de Théo

Aqui, no alto da estrela, é o lugar de Roog-Sen. O Senhor do Brilho. Aquela Coisa Que Tudo Governa. Os Selvagens dão-lhe todo o tipo de nomes mas o meu favorito é Roog-Sen, que em dialecto selvagem significa “aquele com grandes abas no vestido”.

De capa longa, de facto, com abas finas e esvoaçantes, o Senhor do Brilho atravessa a superfície da estrela e controla o seu brilho, a sua temperatura, a sua radiação. Como estão as fusões nucleares esta manhã? Bem? Mais ou menos? Com que podemos contar: um dia calmo ou uma sucessão de explosões de magnetismo?

“Ele é poderoso mas bom”, explica Ualy, o chefe de uma das maiores tribos selvagens do único planeta que orbita o sol de Roog-Sen. “Se lhe conferirmos honras e dedicarmos sacrifícios de carne ele cura as nossas doenças”. Ualy mostra-me uma bebé gorda e lindíssima, de aspecto amarelo e convalescente. Trata-se da sua filha, agora curada de uma suposta doença que a fazia chorar noite e dia. Ualy acredita que o sacrifício da sua esposa e mãe da bebé foi suficiente para amainar a feroz sede de sangue de Roog-Sen.

“As interpretações variam de tribo para tribo, mas todas elas me acham uma espécie de senhor do universo”. Roog-Sen, o Senhor do Brilho, tem a postura do artista pop amado pelos rebeldes. O seu vestido longo dobra-se em pregas elegantes sobre o sofá. “Não há muito que possa fazer senão sorrir e acenar, se bem que por vezes me choque todos aqueles sacrifícios que fazem em minha horna. Mas não posso intervir de maneira nenhuma... Infelizmente”.

Desde a implementação do Tratado de Júpiter que Roog-Sen, que na verdade se chama Yuligarin Connery, é o responsável pelo controlo e manutenção de uma das muitas estrelas artificiais instaladas em Gaius-9. Ele e mais alguns colegas, espalhados por vários sistemas solares, são a alma da experiência científica mais prodigiosa do saber humano.

“Quando me convidaram fiquei obviamente boquiaberto. Desliguei o holograma e caí esmagado numa poltrona antiga, do estilo séc. XXII: era um dos selecionados! A partir daí foi um sonho tornado realidade”

O pequeno Yuligarin Connery nascera no seio de uma família de mercadores de média-galáxia e desde cedo ajudara o pai com o negócio. Relembra que “um dia cheguei ao escritório dele e disse: Pai, quero embarcar numa das naves e conhecer outros mundos. Ele mandou-me ir estudar cosmologia e deixar-me de disparates. Fiquei furioso. Hoje sei que subjugar-me foi a decisão acertada”.

O pai de Connery orgulhar-se-ia da sua própria insistência apesar de, ao incentivar os estudos do filho, não saber na altura que ajudaria a criar uma das mais brilhantes mentes que a astrofísica já conhecera. Estudante exemplar, Connery distinguiu-se na Universidade de Marte onde viria a regressar apenas sete meses passados para lecionar a cadeira que completara com 20 valores. “Fui o segundo melhor do planeta, logo a seguir a um tipo que morreu de ataque cardíaco meses depois e nunca cheguei a conhecer. Por isso brinco e digo que foi o colesterol de um colega que me valeu a carreira”.

Quando Reginauld Bitender, Secretário Geral dos Assuntos da Ciência e da Tecnologia, iniciou o longo e moroso Processo Génesis, o nome de Connery surgiu imediatamente nos primeiros rascunhos da proposta. “Convidámo-lo para o painel de discussão. Queríamos os melhores. Ele aceitou, contribuiu, foi material nas decisões relativas ao projecto” recorda Bitender. E garante: “Sem ele, Génesis teria continuado a ser uma promessa eleitoral por cumprir”.

Connery desmistifica. “Tive a sorte de trabalhar com os melhores. Négid, que viria a tornar-se minha esposa; Newton de Frigh, fantástico antropólogo. Gunelímbridge Triuk, um dos mais afáveis planetólogos que já conheci... e olhe que é difícil encontrá-los de bom humor!”

A colocação em prática do Projecto Génesis levou muito mais tempo do que se pensava e custou a Connery uma longa jornada pelos meandros da ética.

“Os mais conservadores defendiam que o que estávamos a fazer era imoral”, relembra, “mas também não apresentavam grandes objecções além dessas. A ciência é feita de imoralidades, basta estudar o ano em que alguém se lembrou de clonar bebés que tinham morrido a tenra idade, de maneira a suavizar o choque dos pais. Hoje, milhares de homens e mulheres clonados crescem sem a mínima deficiência psicológica ou emocional. Que mal houve nisso?”

“O mal estava todo no princípio do Projecto” continua a defender Taranculus Gaius, director do Centro para a Defesa da Dignidade Humana. “Criar civilizações em tubos de ensaio gigantes! Que tamanha presunção! Imagine quando as pobres vítimas das garras afiadas do progresso científico descobrissem ser nada mais nada menos que micróbios debaixo de um microscópio!”

As discussões entre Gaius e Connery foram acesas: durante mais de setenta e dois anos representaram as duas facções nas quais se dividia a Humanidade. O historiador Eternáligh Ben, autor de Neo-Génesis, conta-nos que “nessa altura a opinião pública estava fortemente dividida. Conheço casos de casais que se separaram devido a discordâncias quanto ao Projecto. Era algo demasiado radical para a maioria das pessoas. Mesmo assim, Connery soube lidar com a situação. Trouxe uma visão calma e séria ao debate. Apresentava-se como apaixonado descobridor da verdade e não como um político”.

Talvez por isso Connery seja ainda hoje o símbolo do Projecto Génesis na cabeça de muitos humanos. Uma recente sondagem no Sistema Solar Original revelou que 67% dos humanos é a favor da continuação do Projecto Génesis; e essa fatia da população subiu de uns tímidos 23% desde há duas décadas atrás.

“As pessoas sabem que o que estamos a descobrir é sério e tem valor” explica Connery. “Aprendemos como se formam as sociedades humanas, qual o significado dessa coisa abstracta a que chamamos “natureza humana”. Aprendemos que factores como a religião, a solidariedade e a cooperação são ferramentas essenciais em qualquer sociedade em formação. E, mais do que qualquer outra coisa, montámos um espelho gigante onde nos revemos. Todos os dias vejo, a partir da estrela, atitudes de enorme compaixão e outras de enorme violência entre os habitantes do planeta pelo qual sou responsável. São humanos e ponto final”.

Para Connery, a palavra “selvagem” é um insulto, e a condescendência com que os seus admiradores são tratados provoca-lhe um enorme desconforto. “São tão selvagens como nós éramos há apenas alguns séculos atrás. Pensar que os meus bisavós possuíram casas de banho em casa, ou tiveram de cozinhar utilizando fornos eléctricos, ou criar os seus filhos sem o recurso a robótica especializada... E garanto-lhe que daqui a uns séculos olharemos para trás e chamar-nos-emos de “selvagens” com uma grande gargalhada”.

Entretanto, os habitantes do planeta de Roog-Sen continuarão sem saber a verdade sobre o seu mítico herói. O seu “Senhor do Brilho” não é mais do que uma personagem mágica que lhes acende o sol todas as manhãs.

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