O dia estava claro: as nuvens pareciam pequenos pedaços de
algodão doce a esvoaçar ao vento, e o sol brilhava forte através de uma fina
camada de água vaporizada. Havia, portanto, sombras definidas e suor na pele, e
as crianças que brincavam na rua faziam-no de boné e protector solar. Mas isso
agora não interessa nada.
Nesse dia atravessei uma passadeira pondo-me à frente de um
taxista. Eu sei; erro crasso. O taxista obedeceu ao código da estrada
buzinando-me com pressa, e eu atravessei tranquilo e nas calmas, só para lhe
mostrar quem mandava ali. O tipo, furioso, pôs a cabeça de fora e mandou-me ir
dar uma curva. Eu dei; virei-me para trás, atravessei a passadeira no sentido
contrário e dei outra meia volta para atravessar outra vez. Entretanto o tipo saiu
do táxi e preparava-se para me mandar a um sítio, algo que eu só poderia
concretizar de cócoras, quando um enorme, verde, azul, vermelho e amarelo
portal se abriu sob os meus pés e me atirou deste para Outro Mundo.
Caí de rabo sobre uma pista de pedra polida e olhei em
volta. Havia dragões por todo o lado, pequenos como moscas, e cuspiam uma
labareda equivalente à de um fósforo. Um dos sacanas ainda me conseguiu queimar
e portanto levantei-me, pisei-o com força, e só aí me apercebi que estava de
cabeça para baixo. A gravidade tinha sido invertida e eu estava de pé no tecto
de uma enorme sala. Lá em baixo, por entre uma nuvem de infestantes dragões,
podia ver uma modesta mesa feita de água e uma cadeira construída à base de
conceitos filosóficos. Saltei, na esperança de cair de nuca lá em baixo e
acordar do terrível pesadelo, mas saí levitando como uma Alice a descer o
buraco e comecei a gritar como a menina inocente que me sentia. Aterrei sobre a
mesa de água e, em vez de ficar molhado, apercebi-me que estava a ficar era
seco. Confuso, procurei gritar segunda vez mas um dragão entrou-me pela boca
aberta e não tive outro remédio senão engoli-lo sem querer.
- Pára tudo! – berrou uma voz. Olhei para a minha direita e
a minha cabeça virou-se para a esquerda. Aproximava-se um enorme cachorro, de
cabeça e focinho absolutamente enormes coroando um corpinho pequeno e que vestia
um manto verde repleto do que me pareceram ser dedinhos decepados de bebés.
Enojado, disse ao cachorro:
- Afasta-te!
E ele:
- Primeiro é “afaste-se se faz favor”, que não me conheces
de lado nenhum para me falares assim. E segundo.
Fiquei à espera do segundo.
- Então? – perguntei.
O cachorro aproximou-se de mim, com todos os dedinhos de
bebés bamboleando ao sabor do vento.
- Engoliste um dos meus dragões e isso é coisa que eu não –
disse o cachorro.
- Que tu não quê?
- Que você não quê.
- Que você não quê?
- Que eu não tolero nem ao meu mais íntimo – respondeu o
cachorro.
- Quero sair daqui.
O cachorro encolheu os ombros.
- Está.
Todos os seus pequeninos dedos de bebés estalaram uns nos
outros ao mesmo tempo, como uma psicadélica marcação de ritmo numa música de
outro mundo. Desapareci e voltei a existir num enorme descampado. Um homem
malcheiroso observou-me enquanto mastigava um pedaço de pão.
- Onde estou? – perguntei-lhe, à espera de o ver cuspir um
submarino russo ou qualquer coisa parecida.
O tipo abriu a boca e disse.
- Xabregas.
Levantei-me. Vi um autocarro da Carris e uma
família de classe baixa a discutir aos altos berros por causa do ranho da
criança. De volta a Lisboa, pensei, satisfeito. Foi um alívio daqueles. Começara
a procurar um caminho para casa quando o vagabundo abriu a boca e cuspiu um
submarino russo.
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