segunda-feira, 22 de março de 2010

A Cebola

Ouve-me. Sabes que estou aqui. Ouve-me. A minha voz. Estás a ver? Sentes a minha mão? Não precisas de ficar assim, seca essas lágrimas. Ouve-me. Sou eu, estou aqui e não vou sair de ao pé de ti. Desculpa se te fiz sofrer. Desculpa se de alguma maneira te deixei sozinha no mundo, sem saber que portas abrir. Eu devia ter-te dado a chave, aquela chave, a única chave para abrir a única porta que mais desejavas, e ficar contigo para sempre até ao fim dos tempos. Consegues ouvir-me? Consegues ouvir a minha voz? Decora-lhe o timbre, porque ela vai ser agora uma constante na tua vida. Não te quero deixar, muito menos assim, sozinha, sem ninguém para te amparar. Estou aqui.

***

"Pelo amor de Deus" pensou Carl, fechando o livro. Não queria acreditar que tinha gasto dinheiro de uma forma tão tremendamente despropositada. Cinco parágrafos inteiros com aquele tipo de monólogo lamechas e filosófico. "A única chave para abrir a única porta"? Mas que raio? Atirou o livro para cima do sofá, e ficou parado a olhar para a sua sala vazia. E agora, ia ler o quê? Repensou as suas prioridades, e levantou-se para ir à cozinha. Acendeu a luz, e gritou.

- Boa noite - disse-lhe o espírito. Carl empalideceu. Podia jurar que à sua frente estava o seu pai; mas isso não fazia sentido. O seu pai morrera há vinte anos atrás, ainda Carl era uma criança.

- Não me vens dar um abraço? - perguntou o seu pai. Estava vestido com uns calções de praia e uma camisa com grandes flores desenhadas.

- Pai...?

- Dá-me a mão - disse o seu pai. Carl pensou em chorar, se não tivesse a certeza que estava a enlouquecer.

- Regressei do mundo dos mortos por ti, meu filho. Dá-me a mão. Anda ter comigo.

***

Sara parou de mexer os dedos, e descansou-os sobre o teclado. Era demasiado mau para ser verdade. Clicou na pequena cruzinha no canto superior do ecrã e encostou-se na cadeira. Estava a dar à história um clima demasiado espiritual e filosófico. Como podia explorar a história de um pai e de um filho daquela maneira? Porque não manter a simplicidade, dedicar-se a escrever o seu livro sobre um pai e um filho e não sobre um espírito com calções de banho? Calções de banho!

Olhou para a sua parede. Metidos em molduras douradas estavam uma série de artigos de jornais, diplomas, menções honrosas. Um dos jornais dizia A RAINHA DA FANTASIA TEM 17 ANOS; outro, SARA GOMES VENDE MAIS QUE SARAMAGO, DIZ ESTUDO DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE EDITORES E LIVREIROS; um terceiro anunciava a festa de lançamento do último livro da triologia As Fadas do Meu Quintal, a tresloucada história de espíritos e fadas passada no Ribatejo. Ao centro da parede um desenho de criança, assinado pelo pequeno Luís, que entretanto morrera de leucemia mas enviara a Sara uma carta desesperada avisando que por não ter muito tempo de vida gostava de saber o que aconteceria à Fada Sofia antes de morrer. Sara atirou a cara para cima das mãos, e começou a chorar.

Abriu outro documento ainda a limpar as lágrimas, e escreveu O LUÍS MORREU COM SEIS ANOS; e escrever aquilo foi para ela uma experiência quase visceral. Não sabia o que era saber que ia morrer, e ainda por cima ter como último desejo ler um estúpido e idiota livro sobre fadas ribatejanas. Não conseguia compreender, mas sentia que agora tinha uma responsabilidade maior. Havia um após inteiro de ressaca emocional depois do emotivo final da sua triologia, em que a Fada Sofia não conseguira salvar o seu amor a tempo da enraivecida investida dos caçadores ribatejanos. Agora era tempo de mudar, era tempo de escrever algo maior.

- Agora está na altura de esquecer o Luís e a sua leucemia. Está na altura de escrever para MIM, e não para eles. Está na altura de ser eu própria.

Tocou um telemóvel.

***

- Pelo amor de Deus, mas que é esta merda?! - perguntou o assistente de realização, enraivecido. O telemóvel parou de tocar, e houve um burburinho no estúdio enquanto toda a gente se revirava nos seus lugares para descobrir o culpado. O estagiário do departamento de iluminação tinha a cara vermelha como um tomate, enquanto arrancava a bateria ao telemóvel calando-lhe o som.

- Tirem esse idiota do estúdio, por favor! - gritou o realizador.

- Vamos ter de repetir? - perguntou a actriz, secando as lágrimas, levantando-se da cadeira em frente à parede cheia de recortes.

- Só a última parte. Precisamos da maquilhagem, por favor! - gritava o assistente de realização, correndo freneticamente. A senhora da maquilhagem correu a retocar o rímel da actriz, que respirou fundo. O director de fotografia dava uma descompostura no estagiário, que começava a chorar e era corrido do estúdio. O realizador bebia café. O operador de câmara trocava de objectivas, e cinco pessoas passeavam pelo cenário fazendo ajustes e procurando retomar a cena o mais cedo possível. O estagiário desapareceu por uma porta, e o director de fotografia veio pedir desculpa ao realizador. Ele aceitou.

- Quanto tempo? - perguntou ele.

- Cinco minutos, a maquilhagem ainda não está pronta - disse o assistente de realização.

Passaram-se cinco minutos. "Acção!". A gravação seguiu.

***

O cinema estava practicamente vazio, apesar dos convites. Sal estava na primeira fila, preparando-se para apresentar o seu filme às quatro pessoas que apareceram para ver a estreia. Não sabia bem o que dizer, nem como o dizer. "Senhoras e Senhores, bem vindos. Este é o meu filme. Ninguém o quer ver, e lá terão as suas razões. Se quiserem podem sair agora, enquanto é tempo. Tem três horas e meia, é comprido. São proibidas pipocas".

Sim, era isso que queria dizer; mas não o fez. Levantou-se e olhou de frente para toda aquela multidão.

- Boa noite - disse. Não era bem isto que imaginava. Onde estava a sua esposa, ao seu lado, na primeira fila? Onde estavam os críticos? Os seus admiradores? Os estudantes de cinema, ávidos de novas experiências? Limpou a garganta com um grunhido - Bem vindos à apresentação oficial do filme "Sara, pétala caída" - fez uma pausa. Alguém na sala bocejou, mas por causa da luz não conseguiu ver quem. Começou a suar.

- O que vão ver é o resultado de um longo processo de dezassete anos, ao tentar desenvolver uma personagem que sempre viveu comigo. O fantasma de uma mulher, de uma mulher ideal e idílica, que procura escrever sobre a beleza e a honestidade sem se vender ao capitalismo artístico que a rodeia. É sobre sermos honestos com a nossa essência interior, e integrá-la em tudo o que fazemos. Sem pressões, sem medos. Sem represálias. Sem reservas.

Podia sentir outro bocejo a acontecer. Simples e conciso, vá.

- Sem mais demoras, vamos projectar o filme. Er - suava imenso, faltava-lhe o ar. O que dizer, o que não dizer? - Talvez fosse interessante, antes de... Talvez... - bufou. Desapertou a gravata. A luz era forte para caraças. Não conseguia ver as faces que bocejavam. Onde estava a sua mulher, os críticos, os aplausos?

- Sara - disse ele, antes de cair. O público caiu sobre ele, tentando acordá-lo, e ao lado uma figura feminina olha-o com carinho e tranquilidade. Virá ela do mundo dos mortos? Traz consigo uma chave, com a qual abre uma porta que está à sua frente. Os espectadores afastam-se apavorados do realizador caído, procurando ajuda. Sara abriu a porta, passa por ela, aproxima-se dele e beija-o na testa. Ele abre os olhos.

- Bem vindo - diz ela, carinhosamente. Ele sorri, porque Sara voltou.

***

Os aplausos fazem tremer a sala. Há assobios. Os actores aproximam-se da berma do palco, sorrindo. A actriz que faz de Sara está sorridente, aceitando as flores que vão sendo atiradas. O actor de faz de realizador sorri também por entre o bigode suado. As luzes abrem-se, a sala está iluminada, o público vibra. Grita-se "Bravo!". A actriz que faz de Sara aceita mais flores, agarra a mão do outro actor, dobram-se numa vénia rendida ao público. O teatro está quente, e Boris sua abundantemente. Aplaude também, do meio da multidão extasiada. Não percebeu. Não percebeu o porquê da porta, o porquê da chave, o porquê do espírito retornado de Sara, muito menos que pessoa é aquela que vem do Além buscar o tipo de bigode.

Boris procura por entre as cabeças, e vê a actriz mais uma vez. Não foi para perceber a história que ali veio.

Espera por ela frente à porta dos artistas, porque o enorme segurança não o deixa entrar. Está um frio de rachar. Treme. Esfrega as mãos nas calças, agarra-se ao cigarro e fuma-o incessantemente. Pensa na peça. Pensa no que lhe vai dizer. "Estavas muito bonita". "Não percebi". "Não te meteu nojo beijares o tipo dos bigodes?". "Não beijo melhor do que ele?". "Eu sei que as coisas correram mal, mas porra. Vim ver a tua peça. Já te disse que estás muito bonita?".

Boris apaga o terceiro cigarro, acende outro. A porta abre-se, Boris caminha curvado na direcção da pessoa que sai. É ela.

- Sam - diz ele, e ela assusta-se. Já não tem a maquilhagem para lhe dar aquele ar pálido de morta, mas àquela luz e com aquela expressão assustada parece uma escultura de mármore branco. Boris sente uma dor no peito, apertadíssima.

A ela passa-lhe o susto, e a sua expressão ganha a textura de uma pedra.

- Vai-te embora, Boris.

- Sam, por favor.

Sam caminha rua abaixo, e o enorme segurança segura Boris.

- Larga-me - diz Boris, tentando soltar-se - Larga-me, porra!

O cigarro cai no chão enquanto Sam entra no carro fazendo todo o esforço para não olhar para trás. O carro arranca, Sam vai-se.

Boris é solto pelo segurança, mostra-lhe um dedo e ofende-o de todas as formas possíveis. O carro dela desapareceu por uma esquina. Boris desce a rua, entra num bar, vai beber. Mete conversa com uma mulher, entorna uma bebida, sai do bar ao pontapé. Senta-se numa escada, olhando a rua quieta à sua volta à espera de ser assaltado ou espancado. Acende o último cigarro, olha para as poças da chuva. Finalmente retira o telemóvel e marca o número que sempre soube de cor.

- Sam - diz ele, com uma voz apagada e pouco audível por entre o bafo de bebida - Ouve-me. Sabes que estou aqui. Ouve-me. A minha voz. Estás a ver? Sentes a minha mão? - diz ele, e a seguir pensa "estás bêbado" - Não precisas de ficar assim, seca essas lágrimas. Ouve-me. Sou eu, estou aqui e não vou sair de ao pé de ti. Desculpa se te fiz sofrer. Desculpa se de alguma maneira te deixei sozinha no mundo, sem saber que portas abrir. - lembrou-se da peça, de Sara que na verdade é Sam abrindo uma porta com uma chave, uma chave que agora compreende para que serve - Eu devia ter-te dado a chave, aquela chave, a única chave para abrir a única porta que mais desejavas, e ficar contigo para sempre até ao fim dos tempos. Consegues ouvir-me? Consegues ouvir a minha voz? Decora-lhe o timbre, porque ela vai ser agora uma constante na tua vida. Não te quero deixar, muito menos assim, sozinha, sem ninguém para te amparar. Estou aqui.

Boris desliga o telemóvel e vai para casa.

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