domingo, 14 de março de 2010

Evolução a uma voz (e a uma segunda voz que lá aparece por acaso mas que não sabe muito bem do que está a falar)

























Terminei ontem de madrugada de ler o livro “Evolução a Duas vozes”, que por si só é uma ideia interessante. Alguém se lembrou de convidar dois lados opostos da discussão criacionismo/evolução e dividir o livro em duas partes, dedicando 90 páginas a cada um dos lados. Do “lado” da Evolução estava Teresa Avelar, bióloga especialista em biologia evolutiva e um nome constante na literatura portuguesa publicada sobre o assunto; do “lado” do criacionismo, um nome conhecido de todos mas visivelmente fora do contexto: Padre Carreira das Neves, o maior especialista português em teologia bíblica mas, como veremos mais à frente, ignorante em relação a aspectos básicos da evolução.

Teresa Avelar surpreendeu-me; não é por concordar com ela que a vou elogiar, mas sim porque a sua metade do livro é um resumo equilibrado, bem argumentado e escrito de forma simples e facilmente perceptível ao grande público. Começa por nos apresentar Charles Darwin, descrevendo a sua biografia em paralelo com a história da “ideia” da selecção natural e respectivas repercussões no pensamento da época. Segue-se um brilhante resumo, em apenas 16 páginas, das provas existentes que comprovam e acrescentam às ideias de Darwin a quase garantia que a evolução aconteceu. Por fim, Teresa Avelar concentra-se nos argumentos muitas vezes apresentados pelos criacionistas CONTRA a evolução e contra Darwin, explicando sucintamente o porquê do falhanço intelectual de todas essas tentativas (incluindo o meu favorito, “Evolução leva a racismo, fascismo e comunismo”).

Do outro lado, o que esperamos? Os argumentos criacionistas? Seria interessante; mas como alguém se lembrou de convidar um especialista na Bíblia, Padre Carreira das Neves, o “lado” contrário ao da evolução perde toda a capacidade argumentativa. Apesar de ser visível que Carreira das Neves percebe muito da Bíblia (basta ler as 3500 páginas dedicadas a descrever verbo a verbo e frase a frase a criação bíblica de Adão e Eva), é também visível que a sua visão sobre a evolução é ignorante e superficial. Repete incessantemente que a evolução trata da “evolução do Universo”, e que (e esta fez-me rir) o evolucionismo não tem “qualquer capacidade cientifica para falar em pecado ou em aliança”. Isso é suposto demonstrar o quê? Que uma teoria no campo da biologia que procura explicar a variedade das espécies e a sua respectiva evolução ao longo de escalas de tempo geológico não explica um particular ramo da crença cristã? Ei, a evolução também não explica como funciona o meu microondas; isso deve querer dizer alguma coisa!

Carreira das Neves possui todas as características de quem é inteligente (uma vez que não tenta por um momento defender o literal criacionismo bíblico, que aliás repudia, sendo esse o único elemento com o qual concordo nas suas 90 páginas e, para mim, a sua melhor mensagem a transmitir ao leitor sobre o tema que deveria estar a tratar), mas ao mesmo tempo perde-se em curtas referências à ciência que só lhe ficam mal. No meu parágrafo favorito, Carreira das Neves explica que Deus não pode ser limitado pelas actuais teorias da relatividade e física quântica, uma vez que Deus está FORA do tempo e espaço! Que coincidência. Que criatura é esta, então, que existe fora do espaço e do tempo, indefinível por definição, exterior a qualquer escrutínio científico ou intelectual?

Tristemente, Carreira das Neves não perde nem um parágrafo a definir Deus, muito menos a explicar-nos que justificação tem para acreditar em tal entidade; em vez disso, apresenta todas as suas teses e opiniões (que vão saltando entre temas como pecado original, São Paulo, Criacionismo Bíblio e o “fundamentalista ateu Richard Dawkins” sem qualquer fio condutor) com o óbvio pressuposto que esse Deus existe, criando no leitor um sentimento de vazio intelectual. Cita inúmeras obras com grande frequência, curiosamente escritas por Padres, católicos ou teólogos mas nunca por pessoas que não concordam com ele; numa das suas citações, a qual, diz “em meu entender, diz tudo o que também eu gostaria de dizer como conclusão”, lê-se:

“Deus é Absoluto, não precisa de nenhuma coisa, de nenhuma relação exterior a Si, para ser Quem é. Deus acompanha cada uma das criaturas, mas permanece igual a si mesmo. Deus é”.

Ora, o que podemos extrair desta citação? A meu ver, absolutamente nada. Deus é, Deus é infinito, Deus é isto, Deus faz aquilo; sem nunca haver uma única definição de Deus apresentada ao leitor.

A mensagem geral de Carreira das Neves é a de que, ao contrário do que é defendido (e muito bem) por Teresa Avelar, a ciência e a religião devem manter um diálogo aberto e democrático, porque ambas procuram responder às interrogações do Homem. Ora, isto é impossível. Não pode haver “diálogo” entre duas áreas do conhecimento humano tão diferentes. Enquanto que a ciência reúne dados e chega a conclusões, a religião tira conclusões e depois vai escolher os dados que a comprovam; basta ver a interpretação completamente arbitrária do Padre Carreira das Neves em relação ao Génesis, defendendo que aquela sua interpretação é que é a correcta porque ele sabe ler em aramaico e era isto ou aquilo que o autor que escreveu o Génesis queria dizer.

Diz Teresa Avelar: “O facto de existirem pessoas que conseguem conciliar uma actividade científica com crenças religiosas não implica que os dois sistemas de pensamento sejam logicamente conciliáveis: significa apenas que as pessoas conseguem funcionar com contradições. Os cientistas excluem o sobrenatural da ciência que praticam – ou seja todos os cientistas, crentes ou não-crentes, tornam-se “operacionalmente ateus” no laboratório.

Resumindo. Será esta uma boa introdução ao debate “Criacionismo e Evolução”? Sim, se quiserem saber mais sobre apenas um dos lados do combate. Eu, que comprei o livro EXACTAMENTE por apresentar uma oposição à evolução e selecção natural, vi-me desapontado ao terminar a minha leitura. Li primeiro a parte de Teresa Avelar e só depois Carreira das Neves, mas talvez seja mais engraçado ler ao contrário para melhor compreender o abismo que os separa, e o contraste na qualidade da prosa, capacidade de comunicação e conteúdo. Vale a pena espreitar as 90 páginas de Teresa Avelar e tentar ler por entre a aborrecida e confusa prosa de Carreira das Neves. Todas as oportunidades para aprender devem ser aproveitadas, certo?

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