sexta-feira, 25 de junho de 2010

A chuva

Paulo, de fato e gravata, botões de punho caros, sapatos engraxados ao ponto de serem espelhos e uma mala de pele preta era a personificação de um estereótipo. Quem o visse poderia cheirar o aroma dos cheques passados em seu nome. O seu trabalho era livrar pessoas que ganhavam muito mais do que ele de problemas temporários ou consequências desagradáveis de um acidente ou outro, como um homicídio mal explicado ou a presença de um cabelo do cliente num local de um crime violento. Saía de mais um julgamento onde o juiz soubera imediatamente qual seria o veredicto, para isso lhe bastou ver Paulo entrar pela porta. Às portas do tribunal, uma mão porca estendeu-se a seus pés e uma voz embriagada pediu-lhe uns trocos.
- É meio-dia e quarenta – disse Paulo, olhando para o seu estereotipado relógio de marca – E já está bêbado?
O vagabundo aos seus pés sentou-se direito contra a coluna do edifício, e mandou a manga grossa do casaco coçado sobre as latas vazias.
- Ora essa, sotôr, eu não estou embriagado.
- Se eu lhe der uma moeda vai ao supermercado a esquina comprar outra lata de cerveja?
- Quanto muito uma sopinha. Ou um salgadinho.
Paulo sorriu abertamente, e escondeu-se na sua autoconfiança. Racionalizou que se este homem aproveitava os trocos que a solidariedade alheia lhe disponibilizava de forma tão mal aproveitada, mais um troco ia apenas enviá-lo para uma bebedeira ainda mais profunda e humilhante. Perguntou-se, isto tudo em apenas alguns segundos, porque estaria este homem sentado ao sol, de roupa porquíssima, à espera que lhe caia dinheiro aos pés, quando podia estar, sei lá, a tirar um curso superior para encontrar um emprego como o seu; com certeza porque era um preguiçoso.
O estereotipado advogado abandona o estereotipado vagabundo, que lhe lança um dedo médio energético, pimba. O advogado desce as escadas, caminha até ao seu carro (descapotável), e nele entra preparando-se para ir até casa.
Um sinal vermelho e as suas memórias das aulas de código indicam-lhe uma paragem, e Paulo trava. Olha à sua volta, para a cidade que se estende à sua frente. Um sol abrasador que faz brilhas qualquer superfície minimamente polida lança reflexos lindíssimos sobre os prédios dos dois lados da rua. Uma faixa de luz, esmagada pelo peso dos arranha céus que o rodeiam, mostra um pedaço de céu lá muito ao cimo. Paulo olha para ele, admirado com o calor que está, fascinado com a beleza natural do mundo onde vive, e perguntando-se que serão aqueles pontos negros.
Os pontos negros deixam de ser pontos para serem formas, multiplicam-se cobrindo o céu, e atrás das formas que deixam de ser formas para ganharem volume aparecem mais formas e mais pontos, mostrando que atrás se aproximam mais do que quer que lá venha. Paulo semi-cerra os olhos para melhor distinguir o que cai do céu. As formas ganham forma, e Paulo distingue corpos. Começa a chuva. Dezenas, senão centenas, caramba, até milhares de corpos de pessoas, crianças, homens, velhos, mulheres de todas as formas e feitios, chovem dos céus e estatelam-se no chão como pesos mortos. Uns caem sobre os carros estacionados, partindo vidros, outros atingem os passeios e o asfalto da estrada e desmancham-se num desagradável florir de órgãos internos e fluidos salpicantes, outros atingem pessoas que passeiam pela rua, multiplicando o número de corpos estendidos. Começam gritos, as pessoas abrigam-se dentro das lojas, debaixo dos carros, e a chuva continua torrencial. Corpos e mais corpos caem sobre a cidade, partindo vidros, quebrando árvores, atingindo transeuntes, esmagando carros. Paulo baixou-se, desaparecendo debaixo do banco do carro, e aterroriza-o o som dos crânios e das pernas e dos braços dos corpos que chovem a baterem no capot e no tecto do carro.
Durante quantos segundos ou minutos ou horas dura a chuva depende da pessoa a quem se faz a pergunta. Os que lá estavam diriam que foram horas, repletas de um pânico e de uma incredulidade bloqueadora de pernas. Quem viu tudo das suas janelas, no alto dos prédios, sem levar com nenhum pedaço de pessoa em cima mas vendo-os cair como uma chuva de granizo de mau gosto diria que tudo não demorou mais do que vinte a trinta segundos. O tempo pouco importa, importam as consequências, e terminada a chuva quando os céus não tinham mais nenhum corpo para cuspir, uma camada espessa de não-identificados corpos abandonados cobria a rua.
As cabeças de quem assistiu começaram a sair de dentro dos carros e de dentro das lojas, e das janelas dos prédios em volta, e um silêncio pesadíssimo marcou a solenidade da situação até que uma mulher, que lá teria as suas razões, soltou um guincho estridente e pareceu despertar as cordas vocais de quem tinha um grito semelhante preso na garganta. A rua encheu-se de choros e berros, enquanto Paulo rastejou de dentro do seu carro e olhou em volta. No cimo do se capot, de cabeça pendurada como uma galinha depenada na montra do talho, estava o vagabundo bêbado, mais morto do que nunca.
Paulo enfiou a cabeça debaixo do chuveiro e deixou-se ficar a descansar na água quente. Depois saiu da banheira, salpicando o chão, e enrolou-se no toalhão turco. Foi até à sala, descalço, e olhou outra vez para o pequeno terraço que dava para o mar. Sete corpos retorcidos estavam deitados em posições impossíveis, dois em cima de uma espreguiçadeira, outro atingira uma das plantas e os restantes espalhados junto ao canteiro das orquídeas. Paulo observou-os, e perguntou-se até que ponto poderia manter o pequeno-almoço no devido local. Foi até à sala e ligou a televisão. Um qualquer representante da autoridade pública, repleto de medalhas e insígnias na farda verde, declarava o estado de calamidade pública no país, aconselhando as pessoas a irem imediatamente para casa ou, se já lá estivessem, não saírem para a rua. Não quis adiantar um número de vítimas possível, mas sublinhou que tudo estava a ser feito para compreender as ramificações do fenómeno. Paulo mudou para um canal internacional, e outro indivíduo com as suas medalhas e farda de cerimónia decretava o estado de calamidade pública noutra língua qualquer. A situação repetiu-se nos canais ingleses e franceses. Vídeos amadores da chuva de corpos eram transmitidos, enviados às estações de televisão por espectadores russos, iraquianos, sul-africanos, brasileiros, peruanos, americanos, coreanos ou australianos. O fenómeno era global. Paulo desligou o televisor, já chegava de más notícias, e perguntou-se o que iria fazer com os corpos no terraço. Deveria deixá-los ali a apodrecer, varrê-los para o terraço debaixo visto que o seu vizinho estava fora do país, ou até ligar para o com certeza bloqueado número de emergência? Não querendo parecer insensível, foi à cozinha e fritou um bife de peru para o almoço.
Até às oito da noite os desenvolvimentos tinham sido muitos. Relatos surpreendidos de todo o planeta chegavam aos diversos governos, informando que grupos inteiros de desfavorecidos, pobres, crianças abandonadas, doentes terminais e outro tipo de classes sociais baixíssimas tinham desaparecido misteriosamente das associações, creches, hospitais, casas de repouso, ou até das savanas africanas. As imagens assustadoras de um vídeo amador mostravam uma favela brasileira completamente vazia, deserta como uma cidade abandonada. E depois de alguns casos pontuais de pessoas que reconheceram alguns dos corpos caídos pelas ruas, começou a gerar-se o rumor de que tudo aquilo não passava de uma vingança contra o mundo moderno e capitalista que ignorava os mais fracos e oprimidos.
Ao que parecia, e isso só comprovava o facto de Paulo ter reconhecido o vagabundo morto no cimo do seu carro, os pobres e abandonados tinham deixado os seus locais reservados a quem é pobre e desfavorecido para choverem sobre o mundo que continuava a sua vidinha sem eles. Líderes religiosos profetizavam o óbvio fim do mundo, e a condenação dos pecadores; os políticos desfaziam-se em desculpas pela forma como as autoridades lidavam inutilmente com a situação; e manifestações pela cidade exigiam pedidos de desculpas formais de algo ou alguém, porque alguma organização ou algum político corrupto teria culpa com certeza.
Passaram-se dois dias, e Paulo estava a ficar sem bifes de peru para cozinhar. “Isto é absurdo”, pensou, e saiu à rua para comprar alimento. Não poderia usar o carro, porque muitas ruas estavam ainda impedidas. Máquinas destacadas pelos governos atravessavam as ruas, varrendo os corpos e empurrando-os e amontoando-os sem cerimónias quando todos perceberam que uma identificação eficiente era impossível. Mesmo ali, na sua rua, dois montes gigantescos de corpos observavam-no como duas torres de degradação. O cheiro começava a ser enjoativo, pelo que helicópteros ocasionais sobrevoavam a área dispersando um pó perfumado e que, pelo aroma, parecia incluir na sua composição um qualquer tipo de desinfectante.
Paulo observou que outras pessoas, mas poucas, tinham tido a mesma ideia que ele. Juntou-se a uma pequena multidão à porta de um supermercado, cujo letreiro caíra havia momentos sob o peso dos corpos que tinham chovido. Uma confusão enorme gerou-se entre aqueles que desejavam entrar no supermercado. O dono da superfície, vendo todo aquele potencial de compra, ofereceu-se para afastar o letreiro caído com a ajuda de braços voluntários. Logo um grupo de homens se reuniu e empurrou com esforço o contorcido pedaço de metal colorido, até que um corpo de uma pequena criança negra caiu como um peso morto em cima de uma senhora que por ali esperava e soltou um grito apavorado. Outros dois corpos caíram de cima do letreiro, e alguém gritou que estavam a chover pobres outra vez. Uma abertura foi disponibilizada finalmente, o letreiro removido, e a multidão entrou no supermercado agitando notas e garantindo que pagava bom dinheiro por cada garrafão de água e por cada lata de detergente. Paulo olhou em volta e sentiu-se subitamente esmurrado no estômago emocional que todos temos, e que é esmurrado em todas as ocasiões em que a nossa sensação de normalidade é violentada por algum acontecimento fantástico. “Um mundo de ricos”, pensou, “será melhor ou pior? Se morrem todos os pobres, e se sobrará apenas os ricos e as notas e as moedas, de que valerá esse dinheiro?”. Paulo entrou pelo supermercado, e depressa compreendeu que se não se despachasse as águas engarrafadas iam desaparecer, assim como os artigos de farmácia e primeiros socorros. Havia no ar a sensação de que aquela era uma situação idêntica à de qualquer filme de terror, onde uma catástrofe limpa parte da população e a restante tem de lutar pela sobrevivência. Era ver todos aqueles advogados, empresários, enfim, fatos de marca com peras, a correr por entre as prateleiras e a agarrar o que pudessem com as mãos, mãos essas que estendiam notas de dezenas de euros aos funcionários das caixas. Enquanto Paulo esperava na fila, o preço do litro de água engarrafada passou de 60 cêntimos para trinta e cinco euros e meio, e enquanto pagava um funcionário do supermercado foi colar uma etiqueta que dizia ESGOTADO sobre o placard dos produtos de primeiros socorros.
Paulo arrastou-se pelo meio da multidão, paparicando um pacote de bolachas de chocolate e trazendo alguns alimentos. A rua estava deserta, fora, claro, a omnipotente presença de todos os corpos por ali deitados. Ao pé de uma ambulância, dois corpos em cima um do outro contorciam-se. Paulo parou, petrificado, pensando que o que mais faltava era que todos aqueles corpos se levantassem e andassem por aí a comer os vivos, aí sim seria um filme de terror autêntico e um salve-se quem puder. Mas o corpo que estava por cima levantou-se, olhou em volta e, estupefacto, Paulo viu a face de uma rapariga nova aparecer por entre os farrapos de gabardine que lhe escondiam o corpo. Era uma cara bonita, de olhos claros, e com as bochechas repletas de fuligem.
- Hei – disse a rapariga, aproximando-se dele – Por favor, água.
Paulo viu-a aproximar-se. Teria dezasseis anos, talvez menos.
- Água – repetiu a rapariga.
Paulo tirou de dentro dos saco uma garrafa de plástico e as mãos sôfregas da rapariga agarraram-na, puxando-a na direcção da sua boca gretada. Bebeu quase meio litro de uma vez, engasgando-se de vez em quando, e quando parou olhou para Paulo nos olhos e disse:
- Desculpe-me, tem de me desculpar mas estava a morrer de sede.
- Tu…
- Eu.
- Porque estás assim vestida? A que pobre coitado é que roubaste essas roupas?
- A ninguém. São minhas. Deram-mas há anos.
- Tu és pobre.
- Sou.
- Vives na rua?
- Vivo.
- E… - Paulo olhou para os céus, e a rapariga percebeu a pergunta não formulada.
- Se caí de lá de cima? Sim.
A rapariga voltou a beber água, desta vez mais calmamente.
- Como assim, caíste?
- Como todos estes que estão para aqui espalhados – disse ela com toda a calma – Aterrei num parque de diversões, em cima de um castelo insuflável.
Dizia tudo aquilo com toda a calma deste mundo, agarrada à água como se lhe pertencesse.
- Tens comida?
Paulo estendeu-lhe um pão, e ela comeu-o. Sentaram-se do outro lado da rua, num banco de um pequeno jardim onde, pelo ar deserto da relva, uma das máquinas escavadoras já tinha passado.
- Isto foi Deus a puxar o autoclismo – disse a rapariga sem cerimónias. Mastigava de boca aberta – Limpando do mundo todo o lixo que estava a mais.
- Isso é uma coisa terrível de se dizer, não achas?
- Não. É a verdade que todos os que sobreviveram pensam, só que eu ponho-a por palavras. Tudo quando era pobre, escória da sociedade, indigente, maltrapilha, doente ou infectado. Choveram todos dos céus e vieram cair aos vossos pés.
Paulo olhou em volta para os corpos estendidos na rua.
- E vocês que pensavam que nós éramos um incómodo quando estávamos vivos – disse a rapariga com uma gargalhada.
- Ninguém pensava tal coisa.
- Ai não? Olha para eles, a lutarem por uma garrafa de água ou por uma caixa de aperitivos – disse a rapariga, apontando para a entrada do supermercado – Repara na preocupação. Nem quando lhes cai o maior pecado da humanidade à frente dos pés são capazes de parar para pensar e tirar a cabeça de dentro do próprio rabo.
A rapariga deu uma dentada no pão e mastigou de boca aberta.
- O que viste? – perguntou Paulo.
- Onde?
- Lá em cima, antes de caíres.
- Nada. Quando dei por mim estava a descer e a ver a cidade estendida à minha frente, e à minha volta caiam outros mal vestidos e porcos e doentes como eu. E gritavam, e berravam, e choravam também.
- Isto é um sonho, ou uma alucinação.
A rapariga olhou para Paulo de lado, com um esgar sarcástico na boca coberta de farinha.
- Diz-lhe isso a eles – apontou para os corpos. Ao longe, uma máquina empurrava uns quantos para perto de um dos montes.
- Tens onde passar a noite?
- Ei, nem penses que me vais levar prá cama – disse a rapariga.
- Tens onde passar a noite ou não? Há mais pão de onde esse veio, e roupa lavada também.
- A sua senhora não fica com ciúmes?
- Eu não tenho nenhuma senhora, não te preocupes.
Paulo sentiu-se estranho por ver uma estranha adormecer no seu sofá. Lá fora, as luzes de dezenas de helicópteros cruzavam os céus, e aqui e ali havia ruídos de máquinas a funcionar. Amanhã seria dia de trabalho, mas tudo indicava que tal nunca viesse a acontecer. Teria de esperar quanto tempo até que o mundo voltasse a rodar normalmente? Adormeceu.
No dia seguinte Paulo acordou com alguém a remexer por entre os móveis da sala e vestiu o roupão para ir até lá e expulsar a rapariga de casa. Estaria com certeza à procura de mais comida, dinheiro, jóias, ou talvez dos três. Pensou até que seria capaz de violência física. Abriu a porta do quarto e atravessou o corredor. A rapariga estava de pé no centro da sala, e um homem musculado tinha numa mão o seu pescoço nu e na outra uma arma apontada à cabeça dela. Um segundo homem musculado, de bigode, percorria a casa, pontapeando gavetas e revirando móveis. Viram-no entrar na sala, e o homem que segurava a rapariga disse qualquer coisa em italiano. O segundo homem olhou para Paulo e estendeu-lhe uma pistola.
- Está carregada. Não tentes nada estúpido. Diz-me onde está o dinheiro e ninguém se magoa.
Paulo levantou os braços e baixou o queixo, porque a sua postura geralmente intimidatória e auto-confiante podia jogar contra si numa situação tão delicada.
- Na gaveta debaixo do televisor estão cerca de quinhentos euros em dinheiro. É tudo.
- E as jóias?
- Sou solteiro.
- Dá-me a carteira.
- Está no quarto, tenho de a ir buscar. Podem baixar as armas? Olhe para ela, está nervosa.
A rapariga tremia descontroladamente, sem tirar os olhos do cano apontado ao meio dos seus olhos. O primeiro homem não tirou a arma do lugar. O segundo homem apontou a arma ao peito de Paulo.
- Siga.
Foram ao quarto, Paulo deu-lhe a carteira, e o homem correu as gavetas e as cómodas à procura de mais qualquer coisa. Não encontrou. Regressaram à sala. O segundo homem lançou mais um olhar pela casa e disse qualquer coisa em italiano. O primeiro homem largou a rapariga, atirando-a com desdém para cima de uma cadeira, e seguiu o outro porta fora. Deixaram-na aberta, sem cerimónias.
A rapariga começou a chorar, e Paulo só baixou os braços depois de ouvir os passos dos dois homens desaparecerem corredor abaixo. Foi até à porta, fechou-a, ia trancá-la se não tivesse sido obviamente arrombada e depois aproximou-se da rapariga.
- Tem calma – disse estupidamente à rapariga que tremia. A sala estava caótica.
Paulo percorreu as gavetas de uma cómoda que, milagrosamente, tinha escapado ao ataque. Por graça não se sabe se de algo ou alguém divino ou simplesmente na Senhora Coincidência, era onde Paulo guardava uma jarra onde colocava por brincadeira os trocos ocasionais que encontrava nos casacos e nos bolsos das calças, imaginando que um dia cheio daria um bom pé de meio para comprar algum livro de arte ou algum CD de música clássica. O jarro estava a meio. Agarrou-o, enfiou-o no bolso do roupão e foi até ao quarto, onde procurou pela gaveta onde guardava alguns relógios. Retirou os dois mais caros, felizmente intocados como o jarro dos trocos, e colocou-os também no bolso do roupão. Foi para a sala.
- Eles levaram tudo – disse a rapariga. Estava levantada, de frente para o frigorífico aberto. Ainda tremia. Sem gabardine, apenas com uma camisa de noite e umas calças de ganga, parecia muito mais magra do que no dia anterior.
- Vou comprar mais ao supermercado. Espera aqui.
- Vou contigo – disse ela imediatamente – Se eles voltam estou lixada.
- Não voltarão, sabem que daqui já levaram tudo o que podiam.
- Mesmo assim.
- Ok.
Paulo não pensou muito, até porque lhe saberia bem a companhia. Também ele não queria ir sozinho. Desceram até à rua. O supermercado estava quase vazio. Lá dentro pouco restava de alimentos ou bens de primeira necessidade. Um cartaz dizia SÓ EM ARMAZÉM, PEDIR À ENTRADA. Paulo aproximou-se do homem que reconheceu como sendo o proprietário.
- Vim buscar água – disse.
- Quanto? – o proprietário olhou-o de alto abaixo.
- EU sei que estou de roupão, mas tenho dinheiro. Dê-me um garrafão. Dois, talvez.
- São cento e setenta euros.
- Perdão?
- Cada.
- Ouça, eu…
- Pisgue-se.
- Trouxe dois relógios, valem cada um muito mais do que cento e setenta euros.
- Para que quero eu dois relógios?
- Ora, para os vender.
- Hoje tive aqui uma senhora que me deu noventa e dois euros por uma caixa de pensos. Acha mesmo que vai haver alguém a quem vou conseguir vender dois relógios desses?
- Ouça, eu..
- Já lhe disse, pisgue-se.
- Não pode fazer…
- Ai isso é que posso.
O proprietário dobrou-se e regressou com uma caçadeira na mão.
- Isto é simplesmente exagerado – disse Paulo, forçando um sorriso cordial – Eu compreendi, vamos embora. Tenha calma. Já é a segunda vez que me apontam uma arma hoje, estou a ver que os tempos mudam depressa. Nós vamos embora.
Paulo e a rapariga iam sair quando o proprietário lhes deu uma ordem para pararem.
- Já agora dê-me lá esses relógios, vá.
Paulo olhou o proprietário nos olhos. A caçadeira ainda ali estava.
- Dá-lhe isso, vá – disse a rapariga, quase se escondendo. Paulo tirou os relógios do bolso do roupão e sentiu-se estúpido por os estar a dar assim. Atirou-os para cima da mesa. O proprietário olhou para eles de soslaio e pareceu satisfeito.
- Tenham um bom dia e voltem sempre.
Paulo e a rapariga saíram para a rua, onde os corpos ainda espalhados se apodreciam carcomidos pelas moscas. Os helicópteros que passavam lançavam o pó com aroma e desinfectante, mas o cheiro a podre parecia já entranhado nos corpos, nos prédios, no chão da rua e nos carros abandonados. Paulo olhou em volta, sem saber bem o que fazer, e sentiu dentro do bolso do roupão o jarrão de trocos que, na situação económica onde se encontrava, de nada valeriam.
- Num mundo de ricos, hein? – disse a rapariga.
- O que tem?
- Mesmo num mundo de ricos onde sobre dinheiro a todos vai sempre haver alguém que seja menos rico que os outros ricos todos, porque todos os ricos têm tendência a serem mais ricos do que os outros.
- Confundiste-me. Vamos para casa – disse Paulo, e a rapariga seguiu-lhe as passadas sem sentir a necessidade de se explicar; e antes de chegarem ao prédio, o chão por baixo dos seus pés, sobre o qual até ali caminhavam procurando não pisar os corpos caídos, desapareceu como que por magia e em vez dele Paulo sentiu nas solas o ar gelado da atmosfera. Do bolso voou o seu jarrão de trocos, e Paulo viu-o descer ao seu lado como um companheiro involuntário apanhado nas garras da gravidade. Quando deu por si estava a descer, e a ver a cidade estendida à sua frente.
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