terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma história de vampiros

Malaquias estava na cozinha a preparar o pequeno-almoço quando tocaram à campainha e ele foi abrir. Assim que puxou a porta para ver quem era um punho rijo entrou-lhe pelo hall adentro e atingiu-o na boca. Se Malaquias não fosse um vampiro, e por isso insensível à dor física, aquele murro teria trazido consigo uma pesada dor de cabeça e quem sabe um estalar desagradável do maxilar. Ainda assim, dois dentes pequenos e agudos saíram a voar da sua boca e aterraram na carpete. Malaquias levou as mãos à boca, cambaleou para trás completamente apanhado de surpresa, e viu o autor do murro afastar-se a correr da sua porta, desaparecendo na rua escura.

Malaquias dobrou-se sobre a carpete, apanhando os caninos arrancados, e não pôde evitar um sentimento de raiva. Ajoelhou-se, procurando meter as ideias no lugar, e ainda pensou em sair feito doido pela noite, procurando o engraçadinho e mostrar-lhe o que sabia fazer aos testículos de alguém que o chateava. Tudo coisas que aprendera na Coreia, durante a guerra.

No entanto, o choque sentido ao ver os seus caninos ali estendidos na carpete fê-lo bloquear completamente. Ficou de joelhos e mãos no chão, de gatas. Alguém entrou em sua casa.

- Então? Estás bem?

Um braço agarrou-o e puxou-o para cima.

- Morto é que não deves estar, por isso não há-de ser assim tão mau. Eu vi tudo, Malaquias. Vamos à polícia.

Malaquias virou a cabeça. Era Sofia, a sua vizinha. Às vezes era mais do que sua vizinha, especialmente depois de se ter divorciado do marido.

- Digo o quê à polícia? Que me arrancaram dois dentes?

- Isso é agressão, Malaquias – Sofia estava com o seu cachecol roxo e com o seu barrete a condizer enfiado até à linha das sobrancelhas, e ajudava-o a levantar-se com as luvas da neve. Era uma exagerada, não estava assim tanto frio à noite.

- Viste quem foi?

- Vi. Quer dizer, pareceu-me ter visto. Que era um homem enorme tenho a certeza, e era careca.

- Como sabes?

- Ele passou por mim a correr, e meteu-se dentro de um carro. Acelerou rua abaixo ainda há bocado. Anda, senta-te aqui.

Sentaram-se os dois nas cadeiras da cozinha, e Sofia foi fechar a porta da rua.

- Carlos.

- Desculpa?

- Carlos. É o nome dele, Carlos.

- Então viste-o!

- Não, mas só pode ser ele. Careca, enorme, e com a lata de me entrar em casa e partir-me dentes. Só poderá ser ele.

- Que fizeste a esse Carlos?

- Ele acha que sou um perigo para a comunidade.

- Queres gelo?

- Não tenho circulação, lembras-te?

- Ah. Como podes ser um perigo para a comunidade?

- É isto de ser vampiro.

- A mania que as pessoas têm de discriminar! Quer dizer, só porque os vampiros têm fama de atacar pessoas indefesas e chupar-lhes o sangue?

- Ele tem dois filhos pequenos.

- E isso é justificação? Vou fazer café, mas a seguir vamos à polícia. Ias jantar?

Sofia afastou o copo de sangue que estava em cima do balcão para chegar à máquina do café.

***

Sofia conhecia um advogado, que por alguma razão achou que aquele caso era imprescindível para chamar a atenção das pessoas para a comunidade de vampiros no país. Aceitou tratar de tudo pro bono, e duas semanas depois estava o julgamento marcado. Malaquias levou o seu fato e uma gravata azul (não convinha ser vermelha). Estava nervoso.

- Tens de te acalmar. O Paulo é de confiança – Paulo era o nome do advogado.

- Ontem cheguei a casa e tinha carne crua pendurada na campainha – disse Malaquias – Vou ter de mudar de casa rapidamente. Ninguém gosta de mim no meu bairro.

- Não percebo porque necessitas da aprovação de um grupo de pessoas que te partiu os dentes e te pendura carne crua à porta de casa.

- Não preciso. Mas se me mudo dali já não seremos vizinhos.

Houve uma pausa. Sofia começou a brincar com o cachecol.

- Só vizinhos? – perguntou Sofia.

- Sim. Não seremos vizinhos, mas podemos continuar… Tu sabes.

- Verbaliza.

- Podemos continuar com os nossos, er, encontros amorosos.

Antes que Sofia pudesse responder, quase de certeza positivamente, Paulo aproximou-se de fato, gravata e pasta de pele na mão.

- Ora aí estão, andava à vossa procura. Pronto?

Malaquias levantou-se.

- Nada de respostas compridas e descritivas – disse Paulo – Tudo sins e nãos. E tenta ao máximo que te pareças com a minoria discriminada que representas.

***

- Paulo Marques, representando Malaquias Sousa, o queixoso. Sr. Dr. Juíz, hoje será um dia histórico neste tribunal – anunciou Paulo. Tinha uma qualquer qualidade egocêntrica, e movia-se como se fosse a estrela numa série de advogados da televisão – O meu cliente, Malaquias Sousa, sofreu no passado dia 23 um dos mais ferozes ataques à sua identidade, mas temos hoje a possibilidade de reaver a honra perdida do meu cliente e mostrar que vivemos numa sociedade tolerante em relação a outras culturas, e intolerante em relação a quem não as respeita.

- Eu só lhe pedi para se apresentar – disse o juiz olhando para os papéis à sua frente. Teria no mínimo cento e cinco anos, e usava um antiquado par de óculos castanhos – Leio aqui que o queixoso é um vampiro.

- É verdade, Sr. Dr. Juiz.

- Ou seja, alimenta-se de sangue humano.

- Sangue, Sr. Dr. Juiz.

- Humano, correcto?

- Não necessariamente. Verá no processo que o meu cliente é o número 678 da Liga dos Vampiros Vegetarianos Europeia.

- Isso soa-me a uma má série de livros para adolescentes que houve aqui há uns tempos.

- Aqui está o problema com a nossa sociedade, Sr. Dr. Juiz. Partimos imediatamente para o estereótipo do vampiro sanguinário dos livros para adolescentes.

- Não, neste caso o vampiro era vegetariano e brilhava ao…

- Garanto-lhe que o meu cliente não se alimenta de sangue humano, se era isso que estava a perguntar – interrompeu Paulo. O juiz olhou para Carlos, um homem enorme e sentado com maus modos na cadeira da acusação.

- E qual é a acusação?

- Invasão de propriedade e agressão qualificada. O réu entrou em casa do meu cliente e partiu-lhe propositadamente os dois caninos, sinal inequívoco da agressão não só física como à identidade cultural do meu cliente, criando um dano físico irreparável.

- Sr. Dr. Juiz, o meu cliente não fez de propósito para partir aqueles dentes específicos – o advogado de defesa tinha-se levantado – Não era a sua atenção partir nenhum dente específico, ou sequer partir qualquer dente. Muito menos provocar algum dano físico irreparável.

- Mas conseguiu transfigurar o meu cliente! – disse Paulo. Era muito dramático.

- O seu cliente não parece minimamente desfigurado. Olhe, está a bocejar.

Malaquias fechou rapidamente a boca.

- Isso é porque está a avaliar o seu aspecto de uma forma parcial e simplesmente racista. Para o meu cliente, vampiro há mais de três séculos, perder os seus caninos é perder uma parte integrante do seu corpo e da sua identidade.

- Pode explicar-me porque é que deu um murro ao Sr. Sousa? – perguntou o juiz.

- Só falo na presença do meu advogado – respondeu Carlos, cruzando os braços.

Houve uma pausa.

- Sua Majestade, eu dei um murro no Malaquias mas foi em legítima defesa – disse Carlos. O advogado fez-lhe sinal para se calar.

- Está a dizer que foi até casa do meu cliente, tocou à campainha, esperou que ele a abrisse e depois o esmurrou na cara em legítima defesa? – Paulo levantou os braços sarcasticamente.

- O Malaquias é um vampiro. Não queremos vampiros a viver no nosso bairro. Eles são esquisitos.

O juiz olhou para o advogado de Carlos.

- Ou você controla o seu cliente ou este julgamento vai acabar daqui a muito pouco tempo.

O advogado engoliu em seco.

- Sr. Dr. Juiz, é inegável que um vampiro, que por definição se alimenta do sangue de pessoas indefesas, é um potencial perigo para a comunidade do meu cliente.

- De que forma foi o meu cliente um perigo para a comunidade? – perguntou Paulo.

- Sou eu quem faz as perguntas – disse o juiz. Paulo desculpou-se.

- Ele é um vampiro, Sr. Dr. Juiz – disse o advogado de Carlos. “Duh”, apeteceu-lhe acrescentar.

- O que significa ser um vampiro vegetariano? – perguntou o juiz.

- Um vampiro vegetariano é aquele que se alimenta exclusivamente de sangue de origem não-humana, como é o caso de sangue de vaca, coelho, porco, peru, ou outros animais. Nunca humanos – explicou Paulo.

- Ainda assim. É um vampiro, Sr. Dr. Juiz – disse o advogado de acusação.

- Eu já ouvi isso. Mas poderá dizer-me de que forma o facto de o Sr. Malaquias ser um vampiro se apresenta como justificação suficiente para o seu cliente o ter esmurrado? – perguntou o Juiz.

- Sr. Dr. Juiz, o meu cliente achou que estava a agir nos melhores interesses da sua…

- Por outras palavras, o Sr. Malaquias estava a tentar chupar o sangue da carótida do seu cliente no momento da agressão?

Houve uma pausa.

- Não – disse Paulo com um sorriso.

- Não, Sr. Dr. Juiz – repetiu o advogado de acusação.

- Então porque raio acha que pode defender esse homem? Ele entrou pela casa do Sr. Malaquias e partiu-lhe os dentes, por amor de Deus! – O juiz não conseguia perceber.

- E temos outro problema, Sr. Dr. Juiz – disse Paulo levantando um dedo – O meu cliente é modelo.

- Isso é um problema?

- De facto, se tivermos em consideração que o meu cliente foi o mais recente contratado para representar a comunidade de vampiros num cartaz da Liga para a Igualdade. Escusado será dizer que sem os caninos afiados lhe será impossível aceitar o trabalho.

O juiz dirigiu-se à defesa.

- O seu cliente indemnizará o Sr. Malaquias na quantia referente ao contrato de trabalho perdido, e a esse valor será acrescentado dez mil euros por danos morais. Além disso, pagará na íntegra a colocação e manutenção de uma prótese dentária na forma dos dois caninos perdidos.

- Sr. Dr. Juiz, apresentarei um recurso que…

O juiz riu-se, mostrando um par de dentes caninos afiados e compridos.

- Não apresentará coisa nenhuma. Terminámos.

***

- Eu nem precisei de falar – disse Malaquias.

- Foi melhor assim, pareceu mais indefeso e aterrorizado com a situação – disse Paulo, conduzindo-o pelos corredores do tribunal – Espere algum tipo de retaliações no seu bairro, mas com dez mil euros poderá facilmente mudar de casa.

- Obrigado, Paulo.

- De nada, meu caro.

Cumprimentaram-se. Paulo afastou-se com o queixo levantado e a postura de quem sai de cena. Sofia agarrou em Malaquias e puxou-o para dentro de uma casa de banho, onde lhe espetou um beijo e o abraçou.

- Dez mil euros! – disse ela.

- Vou doá-los à Liga pela Igualdade. Quero ajudar outras pessoas como eu.

- Não percebo porque é que és tratado como algum tipo de monstro. Se as pessoas te pudessem conhecer…

- Ora, eu…

- Morde-me. Já.

- Desculpa?

- Quero que te alimentes do meu sangue e que me faças vampira. Quero viver para sempre ao teu lado, Malaquias.

- Não achas que devíamos primeiro falar sobre isto?

- Não. Esta história está quase a chegar à sétima página e se nos perdemos em diálogos ou considerações filosóficas as pessoas deixam de a ler. Morde-me.

Malaquias olhou em volta, e ia espetar-lhe os dentes no pescoço quando se lembrou que não tinha dentes.

- Oh pá.

- O que é?

- Terás de esperar pelas próteses.

- Eu espero. Por ti, espero para sempre.

- Sabes que viver para sempre é aborrecido, não sabes?

- Estás a brincar? Vou poder ir ao funeral da minha mãe e de todas as outras pessoas que odeio. Vai ser lindo.

***

As próteses deram alguma sensibilidade dentária a princípio. Treinara primeiro em alguns nacos de carne, e compreendera que era como andar de bicicleta. Depois de três lombos e duas entremeadas, Malaquias já se sentia confiante para morder a carótida de Sofia e transformá-las numa vampira. Entretanto tinham vivido juntos e adorado a experiência, pelo que se sentiam à vontade para avançar com aquele grande passo.

- Vai doer? – perguntou Sofia, sentando-se ao lado de Malaquias. Estavam na sua sala, era de noite, e a lareira estava acesa.

- Um pouco, quando os dentes entrarem. Mas depois tens de te manter quieta para eu te beber algum sangue. Vais-te sentir tonta, mas depois passa.

- Estou tão nervosa, Malaquias – estava nervosa mas tinha um sorriso de expectativa na cara. Estava realmente feliz – Vamos a isso.

Malaquias dobrou-se sobre ela, deu-lhe primeiro um beijo na boca e depois desceu até ao seu pescoço. Abriu a boca, o maxilar estalou, e encostou os dentes afiados à pele clara de Sofia. Deu uma dentada com a maior suavidade que conseguia. Sofia deu um pequeno salto, e o sangue começou a escorrer pescoço abaixo. Malaquias bebeu-o, chupando-o com os dentes e com os lábios, e foi aí que o pedregulho partiu a janela e foi embater na têmpora direita de Malaquias caiu sobre o peso da pedra, e consigo arrastou metade da pele do pescoço de Sofia.

Ela gritou, e levou as mãos à ferida que se abria. Começou a sangrar. Malaquias tentou levantar-se, mas viu a sala a andar à roda e a pedra caída a um canto. O chão estava cheio de vidros. Sofia gritava, caída ao chão, e Malaquias conseguiu levantar-se finalmente. Olhou lá para fora mas não viu ninguém. Voltou-se para Sofia. Ela esperneava descontroladamente no chão, e a carpete e o sofá estavam cheios de salpicos de sangue. Malaquias atirou-se para a frente, agarrou no cachecol de Sofia, encostou-o à ferida e procurou controlar-se. Sangue. Sangue. Sangue. Sangue. Era sangue. E mais sangue. E era doce, o sangue. O sangue de vaca também, e o de porco, e o de peru, mas o de humano era ainda melhor. Era mesmo muito melhor.

Malaquias desceu sobre Sofia e começou a beber do sangue, às golfadas, descontroladamente. Tentou estancar a hemorragia, mas abria a bocas para beber os repuxos ocasionais. Era uma situação um pouco inconsistente. Sofia estava absolutamente branca, e parara de se mexer. Malaquias sentiu-a ficar quieta debaixo do seu corpo, e olhou para ela de olhos muito abertos e quase vivos.

- Sofia?

Sofia não respondeu. Malaquias não se mexeu.

- Sofia?

Sofia não se mexeu. Malaquias ia começar a chorar, achava ele, quando Sofia deu um salto para a frente, engoliu ar e começou a tossir.

- Aurgh! – fez a garganta dela.

- Calma, calma!

Malaquias arrastou-a para cima do sofá, ajudou-a a acalmar-se.

- Estou viva – disse ela entre soluços – Estou viva.

Malaquias olhou para a boca dela, e viu dois dentes pontiagudos.

- Não necessariamente.

Sofia olhou para Malaquias.

- Tens sangue na boca.

Malaquias olhou para ela.

- Tu estiveste a beber o meu sangue enquanto eu me estava a esvair ali deitada? – perguntou.

Malaquias continuou a olhar para ela.

- Inacreditável! Eu estava a morrer e tu estavas a beber do meu sangue!

- Hei, tecnicamente fui eu que te salvei. Eu não tive culpa, levei com uma pedra na cabeça e… Se não fosse eu a matar-te previamente, tu estarias morta.

- Só podes estar a gozar! Agora é suposto agradecer-te?

Sofia mexeu-se, o cachecol desceu ligeiramente e outra golfada de sangue voltou a sair-lhe do pescoço aberto.

- Oh, lindo, simplesmente lindo! – Reposicionou o cachecol.

- Anda, eu ajudo-te…

- Pára! – gritou ela, afastando-lhe as mãos – Não acredito que fizeste isto!

- Morder-te? Tu é que pediste!

- Não, estares a ver-me esvair-me em sangue e começares a bebê-lo!

- Eu estava a beber sangue enquanto procurava estacar a hemorragia.

- Uau!

- Não, a sério!

- Sai-me da frente. Por favor não me dirijas a palavra.

Sofia levantou-se do sofá completamente decidida, sapateou por cima dos vidros caídos e saiu porta fora. Malaquias olhou em volta para a sala toda suja e começou a lamber as almofadas.

.

Sem comentários: