quinta-feira, 10 de junho de 2010

Ouroboros

André sentiu uma pequena inquietação nos circuitos quando a Beta Seis entrou na sala e se sentou à sua frente. Estava, de certa forma, arrependido por ter feito o download daquele terrível sentimento humano; mas compreendia melhor do que nenhum outro robot a fraqueza física e os motivos de constantes tristezas pelos quais os seres humanos com certeza teriam passado. Ver aquela robot era como se um pequeno curto-circuito lhe estivesse a empatar o funcionamento nano-electrónico da barriga. Sabia que aquilo era só um mero “sentimento”, mas agora que o “sentia” parecia muito mais real do que quando lia a sua definição nos manuais da escola.
A aula era a de História Humana e Robot, com um dos poucos professores que parecia realmente excitado com a matéria que transmitia. Dizia-se que o professor Max tinha realmente feito download de uma coisa chamada “entusiasmo”, um dos mais raros sentimentos humanos. Nunca um professor de liceu teria dinheiro para pagar tamanho sentimento, pelo que a história era um rumor e apenas isso. Nas que o professor Max tinha o que os dicionários de termos humanos descreviam como “entusiasmo” era inegável.
- Bom dia a todos, parafusos – disse Max quando entrou, carregando consigo os cilindros de vidro com as aulas digitais – Como rodam essas rodas dentadas?
Max dizia sempre a mesma coisa, numa alusão aos princípios da história dos robots. André lembrava-se de ver um dia na aula de Cultura Humana um filme chamado Metrópolis, com um andróide extremamente pouco realista representado na capa. Os robots seus colegas riam-se, e faziam pouco de tudo e mais alguma coisa, mas para André havia uma espécie de nostalgia ao ver imagens ou vídeos (uma desactualizada forma de comunicação humana) com os primordiais robots do séc. XXI. Sentia-se, pensava às vezes, como um Homo sapiens sapiens se teria sentido ao ver os seus antepassados peludos a viver em cavernas. Dera tudo isso em História Pré-Humana. Tirara um dezanove.
- Vamos primeiro que tudo à nossa oração da manhã.
Os alunos levantaram-se. O retrato holográfico de um cúbico robot, com ar antiquado mas rodeado por cores platinadas, surgiu no centro da sala.
- Oh Cubo, enorme Cubo, bem oleado sejas entre os robots, e que a tua bateria dure para sempre. Nós, robots teus filhos, te saudamos, porque sem a tua cubidez nenhum de nós existiria. Obrigado, mil obrigados, Cubo bem oleado entre os robots – disse a turma em uníssono. A imagem holográfica desapareceu. Max continuou.
- Hoje pegamos no assunto da aula passada, a Nano- Revolução e a Praga. Quem me pode fazer um resumo?
Um andróide transparente na segunda fila levantou o braço. Max apontou para ele com uma antena.
- O professor tinha dito que a Nano-revolução permitiu ao Ser Humano desenvolver uma inteligência artifical mais complexa e realista, em comparação com os cânones humanos.
- Exactamente. E mais?
Um robot esférico piscou algumas luzes, e começou a cuspir alguns sons electrónicos.
- Hum, não é bem assim – respondeu Max – O que aconteceu é que a Praga destruir PARTE da população, não toda. Cerca de meio por cento dos Seres Humanos conseguiram escapar, poréeeem…?
Outro andróide, na terceira fila, levantou o braço.
- Sim?
- Assim que chegaram à Base Lunar deram conta que a Praga tinha vindo com eles, incubada num rapazinho pequeno. E que não poderiam fugir da Praga porque se tratava de uma bactéria desenhada especificamente para matar Seres Humanos.
- Que por sua vez foi construída por…?
- Er… Pelos russos?
- Nop.
- Iranianos?
- Nem por sombras.
- Ah! Os Gays.
- Exactamente! Então, Seres Humanos chegam à Base Lunar, etc… chegamos ao…?
A turma silenciou-se.
- Racionamento de Asimov – disse Max. Houve um suspiro na turma. “Ahhh, era isso”. – Continuemos. Como grande parte dos Seres Humanos que se tinham salvado da Praga na Terra iam morrer ou da Praga ou de fome, por falta de mantimentos, um senhor chamado Gastor Proust, que era o capitão militar humano da altura, decidiu que era melhor guardar algum vestígio da raça humana, quer biológico quer do seu conhecimento.
- E aí surge o Cubo – disse André, subitamente.
- Exactamente, André. Aí surge o nosso caro Cubo.
Os andróides silenciaram-se em sinal de respeito. Max continuou após uma breve pausa.
- Gastor Proust programou o nosso Grandioso Cubo para armazenar toda a informação contida em todos os vastos volumes do conhecimento humano. Ciência, arte, literatura, tudo o que vocês estudam em Cultura Humana estava dentro do Cubo. Isso, claro, e as células estaminais.
- O meu pai comprou uma coisa dessas – disse um pequeno robot, o mais novo da turma, fazendo rodar o seu braço em forma de gancho.
- É bem possível, Salu. É graças ao Cubo que todo o conhecimento humano, incluindo a forma que os humanos encontraram para fazer inteligência artificial como a nossa, que todos nós estamos aqui hoje. É graças à eterna benevolência do Cubo que essa informação foi usada, depois da morte de todos os Seres Humanos, para fazer os primeiros robots. O Grandioso Cubo fez-nos a todos com a sua fantástica magnificência, e por isso lhe devemos agradecer e venerar. Quanto às células estaminais, o tal Gastor pensou que um dia, talvez, os robots poderiam utilizar essas células e outros vestígios biológicos para recriar a raça humana, trazendo-a de volta como se nenhuma Praga tivesse acontecido.
- A minha mãe diz que isso levanta questões filosóficas – disse Salu, o robot do braço em forma de gancho.
- E levanta mesmo – continuou Max – Quem somos nós para mexer e utilizar assim numa dádiva que nos foi dada pelo Cubo? Ele poderia ter destruído as células, mas não. Logo, haverá nelas alguma importância. Mas poderemos mesmo utilizá-las a nosso belo proveito?
A turma ficou silenciosa. A campainha tocou.
- Páginas 78 a 89 lidas até amanhã do vosso Digi-manual – gritou Max por cima do ruído dos alunos a levantarem-se - E quero aquelas projecções holográficas sobre a Base Lunar feitas até segunda feira!
André apanhou o primeiro Holo-bus, transferindo-se em dois micro-segundos até casa. Tocou à campainha, e a mãe abriu-a.
- André, ainda bem que chegaste! Tenho uma coisa para te mostrar!
André seguiu a mãe até à cozinha, e olhou em volta. Em cima da mesa estava um cilindro prateado. Lá dentro, uma amálgama de coisas castanhas nadava num líquido azulado.
- O que é?
- Bem, a pergunta é mais: o que será? – disse a mãe, excitadíssima – Foi o teu pai que mo comprou. Fazemos anos de casados. É um feto humano, André!
- Um feto humano… - André colou o sensor de movimentos ao vidro do cilindro, procurando sentir qualquer coisa.
- Estou demasiado velha para tratar da casa sozinha, e uma mãozinha extra não magoa nada! Já viste? É o nosso primeiro humano! Há que cuidar bem dele, levá-lo á revisão, mas de resto é muito auto-suficiente!
André sentiu o feto mexer ligeiramente. Estava fascinado.
- Não fiques com essa carinha, vá. Depois o pai arranja-te um para brincares. Agora vai olear os mecanismos para lanchares. Anda, que já te pus a bateria a carregar.
André foi, imaginando-se a saltar pela casa com o seu novo brinquedo: um humano novinho em folha. Como os miúdos na escola ficariam com inveja!
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