domingo, 20 de junho de 2010

Carta ao Passado

Olá Renato,
Espero que estejas bem. Aliás, eu poderia saber se estás bem ou não, bastava que me dissesses em que data estás a receber esta carta. Com algumas voltas à memória, poderia recordar onde estava nessa altura, e com certeza repararia que fui muito mais feliz do que sou agora.
Escrevo-te do futuro, mais especificamente do ano 2037. Por esta altura tenho (e tens) 46 anos. O que preferes primeiro, o contexto social ou a tua vida privada? Sinceramente não sei por onde começar, mas como estou desempregado tempo é o que não me falta.
A economia não está melhor. Estamos a dever biliões a países como a Alemanha, a Suíça, Espanha e Somália. Muita gente começa já a mudar-se para a Etiópia, onde a vida parece melhor. Não sei porquê, mas talvez me mantenha por cá mais uns anos.
Não que seja pelo emprego, que cá não há. A maior parte da população é idosa, e por isso a população jovem tem de ter pelo menos três empregos para aguentar todas as despesas. Eu, por exemplo, fui até há pouco tempo produtor de um musical para a televisão, revisor de textos científicos e varredor de rua. Todos eles me consumiam tempo que eu poderia ter gasto com os meus filhos. Felizmente eles cresceram dois rapazes saudáveis e inteligentes, em parte porque sempre escondi livros (verdadeiros, sim, daqueles em papel e não e-books) para eles lerem e também porque nunca foram à escola.
Depois da Revisão Curricular Revolucionária de 2026, a escola passou a ser não só o centro de aprendizagem mas também o local onde os pais depositavam os filhos durante o dia. Assustei-me quando vi o horário dos meus filhos. Tinham aulas das seis da manhã até às dez da noite, porque os pais estão demasiado ocupados a trabalhar. A escola oferecia disciplinas onde todos os miúdos eram avaliados por um exame apenas, onde tinham de escrever uma lista de todas as palavras que tinham decorado durante os 12 anos anteriores. Outro dos problemas é a falta de qualificação, que acontece porque as escolas já não têm condições por serem repletas de funcionários e professores não qualificados. Assim, o investimento na educação tornou-se obsoleto, já ninguém liga nenhuma a uma licenciatura ou a um mestrado e por isso o Governo decidiu investir na des-tecnologia, de modo a simplificar tudo ao ponto de qualquer analfabeto que nunca foi à escola ser capaz de tirar um curso superior. Diziam que era apenas uma questão de democracia. Eu, por exemplo, tirei ontem o curso de medicina. Eu sei, eu sei; um dia inteiro para tirar um curso parece muito, mas isso é porque medicina é o mais complicado de todos. O curso de Artes, por exemplo, tira-se em quarenta e cinco segundos.
Apenas dois tipos de pessoas ganham bem hoje em dia: os políticos e os jogadores de futebol. Cada cidade tem aproximadamente vinte e cinco equipas de futebol, e por haver muitas há imensos campeonatos e imenso mercado de trabalho para todos os jogadores de futebol. O Governo criou até o Incentivo à Natalidade, incentivando os casais a terem mais filhos oferecendo-lhes caneleiras vitalícias para os pequenos. Os meus filhos não gostaram da ideia do futebol, e pensaram que talvez fosse interessante desenvolver um tipo de trabalho que ajudasse as outras pessoas. Um seguiu a área de apoio social, o outro a investigação médica. Ambos trabalham agora nas bilheteiras de um dos estádios de futebol. Não é mau de todo, pelo menos têm emprego garantido.
Quanto à saúde, estamos muito melhor. O número de hospitais triplicou, assim como as tecnologias e qualidade do serviço. É uma sorte danada para um por cento da população que pode pagar o seguro de saúde. Aos outros resta inscreverem-se nas religiões que vão aparecendo e que prometem milagres, ou ficarem em casa à espera que lhes passe a leucemia.
Ah, e a propósito, o casamento gay continua a acontecer e não é por isso que a sociedade está toda corrompida.
Passemos às trivialidades. A construção do TGV continua, a linha está já quase a Badajoz. A Oposição, composta por cinco bloquistas, dois Verdes e o cadáver ressequido de um comunista instalou na Assembleia um painel que mostra, em tempo real, a actualização da dívida nacional. O Governo da altura acusou-os de estarem a diminuir a confiança dos portugueses, e garantiu que até dali a dois anos tudo entraria nos conformes. Dali a dois anos, o número da dívida já não cabia no quadro, mas o Governo publicou uma declaração dizendo que estava tudo bem, e que se os portugueses achavam que estava tudo mal era porque estavam enganados. A população não percebeu que estava a ser tomada por idiota, e por isso votou no mesmo partido nas eleições que se seguiram.
A Apple lançou mais um iPod, com 40 mil GB de memória. Toda a gente começou a poupar nas contas do mês para o comprar, e agora podes ver as filas à porta das Finanças cheias de pessoas com iPod’s de quinhentos euros nas orelhas, segurando os papéis para pedir o Subsídio de Existência Inútil. É outra novidade futurista, que serve para apoiar aqueles que basicamente não querem trabalhar ou estão mesmo muito muito cansados ou aborrecidos.
E, já que gostas de ciência, ficam as últimas descobertas. O cancro está mais do que curado, pelo que uma série de celebridades que ganham dinheiro com as suas carecas e as suas sessões de quimioterapia deixaram de receber atenção e prémios-carreira. A depressão é a nova doença da moda, e és extremamente out se não tiveres um episódio psicótico pelo menos duas vezes por semana.
O contacto com uma civilização extraterrestre também foi outro grande acontecimento. Os extraterrestres vieram à Terra numa pequena nave de reconhecimento, e traziam uma cruz de madeira enorme. Os cristãos acharam que aquilo era a prova inegável de que a história bíblica era verdadeira, e perguntaram aos extraterrestres se aquele não era o maior Deus de todos e o mais simpático. Os extraterrestres disseram que sim, e que para acalmar a fúria de Cruxifork teriam de sacrificar setenta e sete infiéis terrenos. O Dia do Contacto ficou também conhecido como o Dia do Massacre.
Bem, e é tudo. Espero que esta carta sirva de aviso para algumas das coisas que te irão acontecer, e quiçá poderás mudar o futuro de alguma forma. Torna-te jogador de futebol ou assim.
Cumprimentos,
O teu Eu do futuro
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