sexta-feira, 4 de junho de 2010

Partir a boca de uma figura mitológica

Somnus estava com as asinhas a dar a dar, e eu esmurrei-o uma vez mais.
- Ei, calma! Olha os meus dentes!
Os que restavam, pelo menos. Levantei-me, tirando o joelho de cima do peito dele e afastei-me, fechando e abrindo os punhos. Estavam doridos. Somnus cuspiu uma golfada de dentes e sangue para o chão, e procurou levantar-se.
- Estás a adorar isto, não estás? – perguntou-me ele.
- Razoavelmente. Normalmente sou totalmente contra violência, mas neste caso abro uma excepção. Sabes há quantos meses não durmo uma noite decente?
- Tenho tudo escrito na minha agenda.
- Oh, sarcasmo. Fantástico, mesmo fantástico.
- Sabes o que significa “monoteísmo”, por acaso?
- Sei pois.
- Significa que não me devias estar a esmurrar a mim, já me reformei há muito tempo. Jeová pode ser que te ouça, com a diferença que não vai aturar levar na boca.
- As modas pouco me dizem respeito. És tu a personificação do sono, é contigo que tenho de falar. Posso sentar-me?
Somnus indicou-me uma cadeira, e eu sentei-me olhando em volta.
- Bela gruta que aqui tens.
- É um T4.
- É verdade que o Hades tem fogo a sair da cabeça?
- Porque é que teria fogo a sair da cabeça?
- Sei lá, vi num filme da Disney. Podia ser.
- Sabes, não és o primeiro gajo com insónias que me vem pedir satisfações.
- Sério?
- Sério. Mas nunca ninguém me tinha batido assim.
- Estou mesmo irritado, só isso.
- Pois que seja, e eu até te percebo. Mas hoje em dia há químicos para isso.
- Já fui a um médico, e em princípio a situação se resolverá brevemente, mas tinha de vir registar o meu desagrado. E aquela, porque não faz nada para te defender?
A mulher que estava sentada no sofá, enterrada sob três enormes almofadas, bocejou.
- Aergia, muito gosto em conhecê-lo.
- Vem cá de vez em quando visitar-me – disse Somnus, limpando a areia das asinhas que tinha na cabeça – Vens esmurrar-me outra vez ou já terminaste?
- Ela é tua namorada ou assim?
- Não. Só cá vem de vez em quando. Sente-se bem aqui.
Aergia adormecera entretanto.
- Ouve, se estiveres com pesadelos posso ligar ao Ícelo. Tenho a certeza que se o esmurrares como me fizeste a mim resolverás a situação.
- Pronto, pronto. Já me sinto mais calmo, e percebo que não o deveria ter feito. Não foi de bom tom.
- Entrares assim na minha gruta, nem te apresentas e começas logo ao murro…
- Renato Rocha, muito gosto.
Somnus caminhou até uma mesa e agarrou numa pequena lança prateada. Apontou-a a mim.
- Muito gosto é o caraças. Sai já da minha gruta antes que chame a segurança.
- Ok, ok. Desculpa mais uma vez.
Vim-me embora. A noite passada dormi que nem um bebé.
.

Sem comentários: