Estava sem ideias nenhumas, absolutamente nenhumas. Sem inspiração, como se costuma dizer. Andava pela casa a comer bolachas, a beber água fresquinha, procurando pelos canais ou pelas estantes algum divertimento. Encontrei algumas coisas, desisti rapidamente. Não tinha ideias.
Isto não estava bem, nada bem mesmo. Fui à minha gaveta dos documentos, peguei num enorme dossier e vasculhei pelas micas repletas de documentos importantes. Encontrei um cor de rosa, retirei-o da mica, reli o seu conteúdo. Sim, estava lá o número de telefone. Peguei no telemóvel. Marquei o número.
- Estou sim muito boa tarde?
Uma voz feminina respondeu-me do outro lado:
- Inspiração, boa tarde. Em que posso ajudá-lo?
- O meu nome é Renato Rocha, e sou vosso cliente há já largos anos. Tenho tido alguns problemas criativos, e gostaria de saber o que se está a passar.
- Pode dizer-me em que área criativa, por favor?
- Escrita.
- Tem aí o seu número de inscrição?
Repeti-lhe o número, que estava no papel cor de rosa.
- Muito obrigado, aguarde só um pouco.
A voz feminina desapareceu, e foi substituída por uma música dos Beatles tocada em flauta de pan. Olhei para o relógio, passaram-se dois minutos, a voz regressou:
- Sr. Renato Rocha?
- Estou aqui.
- Eu lamento muito, mas a sua inspiração foi cortada.
- Desculpe?
- A sua inspiração foi cortada, não há nada que lhe possa fazer.
- Mas eu tenho pago as mensalidades a tempo e horas, deve haver algum engano.
- Ouça, o registo que aqui tenho é que não paga a mensalidade desde Setembro, e que desde Outubro lhe foi cortada a inspiração.
- Quero contactar com uma musa, sendo assim.
- Sr. Renato Rocha, eu lamento mas isso não vai ser possível, se não paga a mensalidade…
- Mas eu pago, tenho aqui as facturas, posso mostrar-lhe.
A voz feminina afastou-se do telefone, pareceu trocar algumas palavras com o seu superior.
- Sr. Renato Rocha, vou passá-lo a uma colega, está bem?
- Passe lá, então.
- Cólicença.
Houve um clique, os Beatles em flauta de pan regressaram por momentos.
- Estou? – disse uma voz, outra feminina – Sr. Renato Rocha?
- O próprio.
- Bom dia, como vai? Olhe, realmente as informações que temos aqui é que não pagou as mensalidades.
- Isso não é possível. Escrevo regularmente para um blog pessoal, para além de levar a cabo alguns projectos íntimos e pessoais na área da escrita. Deve haver um engano.
- A última ideia sua registada com sucesso foi em Setembro, e depois não há mais registos…
- Ouça, estou a ligar de um telemóvel e não quero gastar o saldo todo com esta conversa. Se me pudesse enviar uma assistente técnica em agradeceria imenso.
- Sr. Renato Rocha, só poderemos enviar uma musa se tiver as mensalidades em dia.
- Quando a musa cá chegar eu mostro-lhe as facturas. Tenho-as aqui, à minha frente.
Houve uma pausa, em que a voz feminina pareceu falar com alguém.
- Diga-me a sua morada, então.
Eu disse-lhe a minha morada.
- Muito bem, vamos enviar uma musa. Muito bom dia.
E nesse momento tocaram à campainha. Larguei o telemóvel, fui até lá, espreitei pelo óculo, abri a porta. Uma mulher lindíssima, morena, de longos e ondulados cabelos acastanhados, olhava para mim. Tinha um vestido simples mas colorido, e calçava duas pequenas botas castanhas que lhe subiam até meio das canelas. Além disso, trazia uma mala de couro na mão, como aquelas que os médicos à antiga costumavam transportar.
- Renato Rocha? – perguntou a musa.
- O próprio.
- Posso entrar?
Abri-lhe a porta, a musa entrou.
- Bela casa – disse-me ela.
- Será que pode ajudar-me? Tenho tido imensos problemas de inspiração…
Sentámo-nos no sofá, e a musa colocou descontraidamente a mala de couro no meio do tapete da sala.
- Fale-me do que se passa.
- Nada de mais, apenas que não tenho ideias para histórias novas ou, pior, tenho-as mas não as consigo executar.
- Tem andado a dormir mal?
- Às vezes.
- Come bem?
- Com regularidade.
- Tem algum problema de maior na sua vida que o possa estar a preocupar?
- Nada, apenas esta falta de inspiração…
- Ora vamos lá ver isso.
A musa estendeu o braço, agarrou na mala, arrastou-a para os seus pés e abriu-a. De lá puxou um estetoscópio colorido. Colocou-o nas orelhas, e ligou a outra extremidade, fria e platinada, à minha testa. Silêncio. A musa fechou os olhos em concentração.
- De certeza que tem andado a dormir bem? – disse ela baixinho. Olhou-me de lado, com os olhos brilhantes, uma espécie de desafio para descobrir se eu lhe estava a mentir ou não.
- Sim, bastante bem.
A musa voltou a fechar os olhos, mudou o disco metálico do estetoscópio de sítio, apalpando a minha testa. Finalmente terminou o exame, e guardou o estetoscópio.
- Sabe, ás vezes acontece. São coisas destas. Aborrecidas, mas assim mesmo. Faz parte. Talvez alguma pequena falha no sistema informático, poderemos ver isso. Consigo está tudo bem, é uma questão de ver na central se a sua ligação está com um sinal forte e activo… Mas… Há formas de apressar estas burocracias… - disse-me a musa, agarrando-me a mão, puxando-a para junto de si. Cruzou as pernas, e colocou a minha mão sobre o seu joelho. Olhei para ela, e ela sorriu-me como quem olha para um gelado de que gosta imenso.
- Você está louca. Está a tentar seduzir-me? – perguntei-lhe.
- Não… Porquê? Sente-se seduzido?
A musa inclinou-se, tentando desesperadamente aproximar os seus lábios dos meus. Eu dei-lhe um ligeiro empurrão, levantei-me do sofá.
- Muito obrigado, mas não. Faça lá o que puder fazer, quando lhe der jeito. E assim.
A musa pareceu pessoalmente ofendida, quase. Levantou-se, fechou a mala, olhou para mim com uma cara desafiante de “tu é que perdes” e saiu de minha casa, agitando as ancas como em sinal de despedida.
Esperei mais alguns dias, não muitos. Depois voltei a escrever.
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