segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O Complexo de Deus

Assim que cheguei ao café e me sentei na mesa num dos cantos reparei logo no caderno, esquecido em cima da mesa entre dois guardanapos sujos, e demorei bastante até o conseguir abrir e espreitar o seu conteúdo ultrapassando todas as implicações morais que isso acarretava.

Lá dentro estavam fotos bastante explícitas de uma pessoa despida, a fazer outras coisas com outras pessoas despidas, numa pequena festa em que havia pessoas despidas por todo o lado. Sou uma rapariga nova e bastante dinâmica, moderna e liberal. Já fiz muito na minha vida de adulta que faria corar as bochechas dos meus pais, mas o que estava naquelas fotografias era demais.

Perdi a fome, desisti do pequeno almoço, agarrei no caderno e fui levá-lo ao balcão. O dono do bar, um homem negro e cúbico, de avental gorduroso, já me conhecia.

- Como vai isso?

- Muito bem. Encontrei este caderno em cima daquela mesa ali. Não abra.

O dono do bar pegou no caderno, e claro que o abriu. Levantou as sobrancelhas, inclinou o caderno para ver melhor, demorou-se demasiado.

- Aquilo é…

- Sim, acho que sim. E ao canto parece-me tratar-se de uma mulher vestida de palhaço – disse eu – Tem alguma ideia sobre quem esqueceria uma coisa tão pessoal num local destes?

- Não, nenhuma – disse o homem, sem tirar os olhos do caderno.

Entretanto uma mulher entrava no bar, e reconheci-a imediatamente. Era a mulher que, numa das fotos, aparecia vestida de palhaço, com a maquilhagem da roupa borrada devido à actividade que não deveria ser pouca.

- Desculpe, por acaso encontraram aqui um caderno de capa castanha? – perguntou ela. O dono do café arrumara o caderno debaixo do balcão.

- Pode descrevê-lo por favor?

- É rectangular, castanho, de capa dura, e lá dentro tem uma série de fotografias pornográficas em que eu apareço vestida de palhaço a realizar favores sexuais em troca de enormes quantidades de dinheiro – disse a mulher, de um fôlego, demonstrando logo de seguida uma enorme vontade de se enfiar dentro de um buraco.

O dono do café olhou para ela com a mesma surpresa com que olhara para o caderno, agarrou nele e estendeu-o à mulher.

- Aqui está. Capa dura, castanho, rectangular… É isso, não é? – perguntou ele, escondendo deliberada e terrivelmente mal o facto de ter olhado para as fotografias no interior do caderno.

A dona do caderno agarrou-o, corando, e agradeceu.

- Fui eu que encontrei o caderno – disse-lhe eu. Não sei porque me meti na conversa, mas pareceu-me o correcto a fazer nem que fosse para quebrar o gelo.

- Muito obrigado por não ter tornado públicas as minhas fotografias humilhantes – disse a mulher, mordendo o lábio logo de seguida, como quem luta contra uma enorme vontade de se coçar sem o poder fazer em público.

- Sente-se bem? – perguntei eu.

- Não – disse-me ela.

- Venha, sente-se aqui.

Sentámo-nos. A mulher começou de imediato a chorar.

- Então, então? O que se passa? – perguntei-lhe.

Ela contou-me.

Ao que parece, havia um líder do crime local chamado Vladimir…a que, nos tempos livres que lhe sobravam de matar líderes políticos e influenciar as forças policiais locais, tinha um fetiche bastante perverso com palhaços. A histórias estava mal contada, mas ao que parecia Vlamirir…a teria tido uma infância complicada na Rússia de onde viera, onde passara a sua infância num circo itinerante. A mulher não era nada mais nada menos que uma das imensas companheiras que Vladimir…a tinha pela cidade.

- Não imagina a vergonha – disse-me ela, chorando – Não tenho outra hipótese, como vou pagar as contas…?

- Poderia arranjar um emprego. Parece-me uma rapariga esperta e inteligente, porque não?

- Vladimir…a iria descobrir-me com certeza. Não tenho como fugir.

- Porque anda com estas fotos de um lado para o outro?

- Queria levá-las a um amigo meu, da polícia. Ele pediu-me para trazer todas as provas que pudesse contra Vladimir…a.

- Queria incriminá-lo?

- Exactamente.

- Espere, pensei que me tinha dito que não queria fugir de Vladimir…a porque tinha medo dele!

A mulher levantou a cabeça das mãos, afastando os olhos borrados de maquilhagem do lenço onde se limpava.

- Tem razão… Não estou a fazer sentido!

- Este enredo não tem a mínima lógica – disse eu, e com razão. Até há pouco tempo atrás não me estava a importar nada em ser personagem, mas aquilo começava não fazer sentido. Primeiro a mulher deixava fotografias tão humilhantes assim, sem mais nem menos, num local público, e agora já queria proteger-se por ter medo desse Vladimir…a, e logo de seguida queria participá-lo à polícia. Aliás, nem a razão porque o líder do crime tinha um nome tão estranho como Vladimir…a cegara a ser explicada.

- Quem está a escrever esta história? – perguntei eu, gritando pelo café. O autor, medricas, não respondeu.

- Isto é um escândalo – disse o dono do café – Eu estava aqui, eu vi. Não faz o mínimo sentido. Porque é que o autor me fez ficar a olhar para as fotos da mulher vestida de palhaço, quando eu próprio acho esse fetiche uma coisa estranhíssima? Não tem a menor lógica!


A dona do caderno levantava-se também.

- Estou farta de sofrer às mãos de um autor sádico! Primeiro veste-me de palhaça numa orgia, a seguir provoca-me um ridículo sentimento de honestidade que me faz revelar todos os meus problemas e angústias a uma completa estranha que, só por ser a protagonista, tem o direito de saber a minha vida íntima!

O dono do café ia gritar mais uma injúria, com certeza apontada ao autor da história, mas não o conseguiu fazer. Fulminado por um súbito ataque cardíaco, caiu redondo no chão. Deixou três filhos e um divórcio por completar.

Neste momento, sem razão aparente, um enorme elefante branco entrou pelo café adentro, de tromba rija e acutilante de um lado para o outro, partindo mesas e cadeiras.

- Vamos correr! – disse a mulher que encontrara o caderno – Eu exijo um nome, a propósito!

Sofia agarrou na mulher vestida de palhaço e arrastou-a para fora do café, onde o elefante continuava a atacar aleatoriamente as peças de mobília.

- Eu também quero um nome! Já! – gritava a mulher que aparecera vestida de palhaço nas fotografias. Sofia arrastou Roberta pela rua abaixo, e depressa corriam as duas para longe do elefante branco.

- Este autor é sádico – disse Roberta – Temos de fugir daqui! Estou farta de temer tudo na minha vida!

- Precisamos de um carro. Temos de fugir desta história o mais depressa possível. Aquele elefante quase nos matou, quem sabe o que este autor pode inventar a seguir!

Uma chuva de balas, e as duas mulheres caíram para trás de um carro estacionado. Olharam cuidadosamente por cima do capot. Do outro lado da rua, um pelotão de fuzilamento colombiano corria na sua direcção, de armas apontadas.

- Meu Deus! – disse Roberta, recomeçando a chorar. Sofia, mais calma, reconsiderou as suas opções.

- O autor está a tentar silenciar a nossa revolta, é mais doo que óbvio. Temos de sobreviver. Todas as pessoas nesta cidade estão a ser controladas. Todas, vítimas silenciosas de um autor com a mania que é Deus, um sádico maníaco que sente prazer ao controlar as vidas destas personagens inocentes!

Entretanto Sofia, perdida no seu monólogo ridículo, percebeu que o seu monólogo ridículo fora apenas um truque do autor para a atrasar, e que o pelotão de fuzilamento colombiano estava já em cima delas. Sofia abriu a porta do carro mais próximo, que por coincidência estava aberto, e arrastou-se lá para dentro dom Roberta, que chorava.

O pelotão de fuzilamento rodeou o carro, que era um Ferrari. Sofia virou a chave na ignição, e o carro arrancou com um solavanco. O pelotão de fuzilamento desceu sobre o carro, esvaziando os cartuchos e soltando desesperados gritos em colombiano.

Sofia e Roberta aceleraram pela rua, ao volante do Fiat Punto. Roberta retirou o telemóvel da bolça.

- Vou ligar ao meu amigo da polícia, avisá-lo que estamos a ser perseguidas por um autor maluco.

Marcou o número, esperou pelo sinal. Ao fundo da cidade, no topo de um monte, um enorme e redondo meteorito cruzou os céus, e foi rasgar a enorme torre de comunicações da cidade. Uma enorme nuvem de fogo, depois uma coluna de fumo negro a erguer-se nos céus. O telemóvel de Roberta ficou sem rede.

- Merda! – gritou Roberta. Baixou o vidro, colocou os braços fora do Fiati Punto que acelerava pela cidade descontroladamente, e começou a gritar!

- Socorro! Por favor! Alguém nos ajude! Ahhe! SJU e! Eiha! Uh!

Sofia, surpreendida, puxou Roberta para dentro do carro.

- O que estas a dizer?

Roberta olhou-a surpreendida.

- Ahe dynd?!

- O quê?

- hGy!

- Não estás a fazer sentido! O autor tirou-te a capacidade para falares, deliberadamente, para que o alerta do seu sadismo não chegue às outras personagens indefesas!

Roberta tapou a boca, recomeçou a chorar, voltou para fora da janela e agitou os braços, gritando barbaridades.

Viraram uma esquina, exactamente no momento em que o indicador de combustível do Fiat Punto chegava ao fim e o veículo começava a abrandar. Do outro lado da esquina, como que à espera delas, estava um enorme dinossauro vermelho, cuspindo fogo e alimentando-se de transeuntes inocentes que não conseguiam fugir ao seu raio de destruição.

- Como é possível um autor destruir uma história desta forma, com maus enredos e situações inacreditáveis? – perguntou Sofia.

- Afg! Uh! – respondeu Roberta.

O dinossauro, eficiente máquina de destruição, agarrou no Fiat Punto e levantou-o à altura da sua cabeça.

- Afghyt! – gritou Roberta, chorando em desespero.

- Nãaao! – gritou Sofia, num choro melodramático que ilustrava bem a falta de personalidade e verosimilhança desta personagem.

O dinossauro engoliu o Fiat Punto com convicção e apetite. Os gritos de Sofia e Roberta desapareceram por entre os ruídos da digestão da monstruosa criatura, que seguiu o seu caminho de volta à caverna nas montanhas onde nascera. O autor anda por aí, à solta, a usar mais personagens para seu divertimento e proveito e sem nunca lhes pedir autorização.

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1 comentário:

Paulo39 disse...

Andaste a ler "O Mundo de Sofia" ou quê?
Mais um registo engraçadíssimo e original da tua parte :)
Continua, não me esqueci da nossa conversa.