quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O meu dia

São onze da noite, e como está na altura de completar o meu diário gráfico para o apresentar amanhã, vim para aqui escrever.

O curioso é que não tenho nada sobre o que escrever. Podia falar-vos de imensas coisas, sobre a minha opinião sobre uma quantidade enorme de assuntos; mas não me apetece falar sobre nada disso. Estou aborrecido, sem tema, sem qualquer coisa para dizer; por isso vou falar do meu dia.

Tive aulas de manhã, pelo que acordei cedo e não tomei banho porque o meu esquentador decidiu desenvolver personalidade própria. Desliga-se quando mais preciso dele, e quando não preciso decide começar a funcionar; um bocado como os sinais vermelhos quando temos pressa.

Depois regressei a casa, passei umas horas a jogar, adiando a inevitável verdade; tinha de adiantar o meu diário gráfico. É o que estou a fazer agora. Mesmo. Neste preciso momento.

Depois almocei, e a tarde foi correndo, e por volta das cinco fui até ao estádio do Benfica ver o treino do meu irmão mais novo. Se tudo correr bem e se não se fartar do futebol, daqui a uns anos vai ganhar mais por mês do que eu na vida toda.

Depois regressei a casa, passando pelo McDonalds para usufruir de uma calórica recompensa pelo fim do período escolar, e vim para casa. Quando entrei dei logo pelo cheiro, mas só quando fui até à sala é que vi o anão morto. Estava irreconhecível, e uma poça de sangue espalhava-se pelo chão da sala e sujava o tapete de Arraiolos que a minha avó fizera para pôr à frente do sofá. O tapete é bastante bonito, em tons de castanho e creme, com padrões agradáveis mas não pesados. Além de ser esteticamente agradável, dá muito mais conforto à sala, e parecendo que não aquece-nos os pés.

De qualquer forma, o anão morto estava sujá-lo. Pensei imediatamente na primeira coisa que me veio á cabeça, que foi, obviamente, será que conheço alguma lavandaria que me possa tirar esta nódoa sem estragar o tapete todo?

Depois de alguns momentos de reflexão, cheguei às minhas conclusões. Número um, não conhecia nenhuma lavandaria competente à qual desejasse entregar a custódia, ainda que temporária, do tapete de Arraiolos. Número dois, o anão tinha de sair dali, ou iria manchar não só o tapete mas também a cobertura do sofá.

Agarrei-o pelos pés, que estavam descalços, e arrastei o anão para fora da sala até ao hall de entrada. Pelo caminho foi deixando um pequeno rasto de sangue, e percebi rapidamente que o deveria limpar logo antes de secar. Fui buscar a esfregona ao pequeno armário com produtos de limpeza, e molhei-a na banheira, e esfreguei o chão.

A propósito, sentiram o sismo ontem de madrugada? Eu não. Acordei com o barulho de pedrinhas a caírem dentro das paredes, o que não faz muito sentido mas, juro, foi o que ouvi. Não dei por nenhum sismo, senão ter-me-ia levantado e atirado para a ombreira da porta mais próxima. Só de manhã é que, quando cheguei a escola, toda a gente estava a comentar que tinham acordado em quase pânico com o abalo. Fiquei um pouco abalado (que má escolha de palavra), uma vez que isto significa que pode haver outro sismo e que eu tenho um sono demasiado pesado para poder acordar e correr para a minha salvação a tempo.

O anão estava agora a sujar-me o hall de entrada, por isso fui buscar um plástico que tinha no quarto, levantei a cabeça do anão (que curiosamente era a única coisa que estava a sangrar) e deslizei o plástico por debaixo da mesma, voltando a deitá-la cuidadosamente. Procurei pelos documentos do anão, mas não encontrei nada que o identificasse.

Estudei as minhas opções. Poderia chamar a polícia. Mas isso significava que eu seria o principal suspeito, uma vez que só eu estive na casa durante esse dia e não havia sinais de entrada forçada.

Por isso fiz aquilo que achei mais correcto naquele contexto e situação: tapei o anão com o plástico e fui jantar.

Fiz uma massa que estava deliciosa, com atum e maionese. A maionese é daquelas de marca, que vem num frasco com uma tira de papel amarela e azul. Heins qualquer coisa. Para quem não sabe, é a melhor maionese do mundo. É também cara, pelo que às vezes é substituída cá em casa pela marca branca Pingo Doce. A do Pingo Doce também não é nada má, mas mesmo assim… Sente-se a diferença.

Portanto, jantei, lavei a louça, vi o telejornal, e depois desliguei o televisor com a preguiça de quem tem trabalho pela frente e não o quer fazer. Como a preguiça com a qual vos estou a escrever isto, com o diário gráfico e as aguarelas abertas ao meu lado esperando serem utilizados em estonteantes obras artísticas.

Já vos disse que devia estar a adiantar o diário gráfico?

De qualquer forma, fui buscar um cobertor e fita cola daquela castanha, grossa e larga. Enrolei o cobertor à volta do anão, e colei as pontas com fita cola (junto à sua cabeça, que teimava em sangrar e em me sujar o plástico que entretanto se inclinara e deixara escorrer sangue até debaixo do armário, o que significava que teria mais tarde de DESVIAR o armário para poder limpar o sangue na totalidade, o que era uma chatice). Abri a porta da sua, olhei em volta, e arrastei o anão até ao elevador. Puxei o elevador. Tocou-me o telemóvel.

Era o meu pai a perguntar-me sobre as prendas de Natal. Disse-lhe que podia receber o que ele quisesse, que o importante era não ter de comer bacalhau cozido na Consoada.

Disse ao meu pai que tinha de ir adiantar o diário gráfico, e desliguei o telemóvel. Foi nesse momento que a minha vizinha da frente, uma senhora simpática e bem parecida que insiste em me cumprimentar sempre quue nos cruzamos no elevador, abriu a porta de casa e saiu. Trocámos um olhar silencioso, e eu sorri-lhe abertamente, desejando boa noite. Ela desejou-me boas noites também, e perguntou se estava tudo bem. Eu disse que sim, e consigo? Ela disse-me que estava tudo bem, tirando o facto de ter acordado na madrugada anterior por causa do sismo. Eu disse que não, não tinha sentido nada, e ela disse-me que naquela idade já não tinha um sono tão pesado como quando era nova, e que acordava com qualquer barulhinho. Eu disse-lhe que era curioso, porque eu tinha um sono pesado e por isso não tinha sentido o sismo, e ela disse-me que ainda bem, porque ter-me-ia assustado de certeza, e eu disse que sim, muito provavelmente me assustaria. Ela perguntou-me o que estava eu a fazer ali, a arrastar um cobertor com fita cola e com um pé descalço saindo de uma das pontas, e eu não respondi, mas olhei para baixo. Um dos pezinhos do anão estava saído do cobertor, mostrando as unhas pequeninas e os dedos pequeninos. Ela perguntou-me se estava tudo bem, e eu disse que sim, e corri até ela e dei-lhe um murro na cabeça. Não esperava que ela caísse à primeira, mas foi isso que aconteceu. Entrei na casa dela (vivia sozinha), e fui buscar um cobertor, e enrolei-a no cobertor, e colei as pontas do cobertor com fita cola castanha, e arrastei-a para ao pé do anão. O elevador chegara, entretanto. Já repararam que os elevadores são como os sinais vermelhos de que falava há pouco? Quando estamos mais atrasados é quando um idiota se esqueceu de fechar bem a porta no sexto andar, e por isso temos de esperar um tempo infinito ou usar as escadas.

Abri a porta do elevador, e o meu telemóvel tocou outra vez. Era a minha mãe. Atendi, e disse-lhe que estava a meio do meu diário gráfico e que tinha mesmo de acabar. Ela foi compreensiva, desligou, e eu pude arrastar os dois cadáveres para dentro do elevador.

Desci até ao rés do chão, e abri a porta do elevador, e arrastei os dois corpos até à entrada do prédio, e abri a porta, e fui até ao carro da minha mãe, o qual não posso conduzir mas do qual tinha uma cópia da chave. Ainda vou em 12 ou 13 aulas de condução, mas estou a ficar muito melhor. Já consigo dominar a embreagem, o que é difícil. O equilíbrio entre carregar no acelerador e largar a embreagem tem de ser perfeito, para que o carro não vá abaixo ou arranque com violência. Estou a praticar bastante, e espero daqui a umas aulas dominar os pedais na perfeição.

Abri o porta bagagens do carro, que por acaso estava mesmo á minha porta e virado de costas para a mesma, e voltei ao hall de entrada, e puxei cada um dos cadáveres para dentro do porta bagagens aberto, e olhei em volta. Não estava ninguém à vista. O meu telemóvel tocou. Era a minha avó, a perguntar se estava tudo bem, e se eu tinha jantado. Disse-lhe que sim, tinha jantado muito bem, e que agora ia beber um chá e acabar o meu diário gráfico. Ela congratulou-me pelo fim das aulas, e eu sublinhei o gosto pelo facto de amanhã ser o último dia de aulas. É, realmente, maravilhoso. Pensar que tenho duas semanas para viver a minha vidinha calma sem preocupações de maior.

Fechei o porta bagagens, meti a chave na ignição, deixei a porta entreaberta, e voltei para casa. Fui ver televisão, porque estava a dar um filme fantástico. Entretanto adormeci, depois fui à casa de banho, lavei os dentes, essas coisas. Quando voltei à sala fui à janela, e o carro da minha mãe tinha desaparecido. Voltei para o sofá, onde me espreguicei por mais uns momentos antes de vir para aqui, adiantar o meu diário gráfico. Está muito melhor agora, a propósito. Estou a trabalhar a todo o vapor.

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1 comentário:

Paulo39 disse...

Muito bom!
Original, como sempre ;)

"Por isso fiz aquilo que achei mais correcto naquele contexto e situação: tapei o anão com o plástico e fui jantar."
LOL, esta matou-me! xD